Confesso que tenho
sentido saudades da época que éramos uma meia dúzia de gente pedalando nesta
São Paulo de classe média e alta, o muito extenso e conhecido Centro Expandido.
Antes do mountain bike era muito raro cruzar com uma bicicleta. A maioria de
nós, que não nos dizíamos ciclistas (“Ciclista é esportista”), quando se
cruzava soltava algumas palavras cordiais, brincalhonas ou simpáticas, acabou
se conhecendo e tendo algum grau de amizade. Quando ao acaso nos encontrava era
o mínimo emparelhar os caminhos por um trecho, que facilmente se perdia, e
colocar as fofocas em dia. Sempre dava tempo; sempre havia tempo; sempre havia
vida, prazer. Éramos espécie rara, um tanto diferentes dos outros, mais livres,
livres, completamente livres. Eles não entendiam, mas quem se importava.
A bicicleta oferecia
uma liberdade impressionante de caminhos, paisagens e de espírito. O dia que vi
fotos e soube que muitos chegaram pedalando ao Festival de Woodstock, o
original, em 1969, percebi que estávamos vivendo com a bicicleta o nosso
próprio paz e amor paulistano. Era maravilhoso.
Aquela era a era da
inocência. Revolução bicicleteira? Até passava pela cabeça alguma coisa, mas em
uma forma leve, utópica, divertida, sem os dramalhões de hoje. Não precisava.
Era difícil ter problema com o trânsito ou de roubo; ou outro qualquer. O maior
problema eram as bicicletas de baixa qualidade, mas achávamos normal carregar
muitas ferramentas, cola, remendo, tesoura... Pneu furado? “Faz tempo que não
fura”. “Quanto tempo?”. “Ah, uns dias...” A vida era agradável, mais ainda para
nós, os usuários da bicicleta.
O grande momento da
bicicleta era o Passeio Ciclístico da Primavera, criado por Caio Pompeu, que
uma vez por ano enchia as ruas de ciclistas no entorno do Ibirapuera. Também
havia a Prova Nove de Julho, no mesmo local, mas era para outro público. Só nas
proximidades ou dentro de bicicletarias especializadas via-se um ciclista. “Nossa!
Olha lá! Um ciclista!” Já havia conflitos, mas com os entregadores em bicicleta
ou nos imensos triciclos, principalmente no Centro, onde estes achavam-se donos
do pedaço e eram odiados por todos pedestres, sem exceção.
Nos primeiros dois anos
do mountain bike o ambiente seguiu mais ou menos o mesmo, mas mais amigável,
mais divertido ainda, cheio de festas, a maioria se conhecendo bem. Época de
ouro! Em 1988 Renata Falzoni organizou o primeiro Night Biker, o primeiro
passeio noturno organizado da história do Brasil. Saímos da Praça Charles
Miller, Pacaembu, e fomos para o Centro. Não acredito que alguém, mesmo a
Renata, fizesse a mais remota ideia do que aquela noite maravilhosa iria gerar.
Aquilo deu nisto.
Um pouco depois veio
o status e com ele o início do fim da era da inocência. Fomos incrivelmente
felizes e não sabíamos.
Infelizmente não
conheço mais ninguém. Sou mais um. Estou um pouco cansado de cumprimenta-los e
passar por bobo. Conversar? Quem quer? Quem tem tempo? Quem se interessa? O celular
quase diz tudo. Pode até ser normal (ou parecer normal), mas para mim é estranho
e um tanto dolorido. Não consigo olhar para trás e ver o que imaginávamos para
estes tempos, mas tenho certeza que esperávamos algo mais amigável, familiar,
parecido com o que estávamos vivendo então. A sensação que dá é que hoje a maioria
é motorista pedalando.
(Creio que tenha sido
numa matéria na Bicycling sobre os que foram ao Woodstock pedalando, alguns fazendo
longas viagens, cicloturismo paz e amor. Fiz uma pesquisa para ver se
encontrava fotos, mas não consegui. Só quem viveu aquela época consegue dimensionar
a real dimensão da esperança que se abriu com o que aconteceu no festival. Não qualquer
termo de comparação.)
Questionamento sério e interessante em um belo texto e ótima trilha sonora!
ResponderExcluirPasseios noturnos estão chatos. Gosto daqueles lentos que permitem que haja conversa e alegria. O bike party é um deles.