sexta-feira, 9 de agosto de 2013

My generation

Passamos pelo grupo de ciclistas paramentados, encapacetados, iluminados, piscantes, falantes, que ficou preso no semáforo da Estados Unidos com Nove de Julho. Fiquei curtindo em silêncio. Abriu o sinal e dei um “boa noite”. Do grupo, mais de cinquenta ciclistas, só um respondeu. Elogiei a resposta solitária. O resto do pessoal simplesmente ignorou seguindo em frente pedalando e conversando, mas era assim como motoristas que dirigem trancados em suas verdades, vidinha e pressa, e levam um passageiro ao lado que até pode ser o viva voz do celular.

Confesso que tenho sentido saudades da época que éramos uma meia dúzia de gente pedalando nesta São Paulo de classe média e alta, o muito extenso e conhecido Centro Expandido. Antes do mountain bike era muito raro cruzar com uma bicicleta. A maioria de nós, que não nos dizíamos ciclistas (“Ciclista é esportista”), quando se cruzava soltava algumas palavras cordiais, brincalhonas ou simpáticas, acabou se conhecendo e tendo algum grau de amizade. Quando ao acaso nos encontrava era o mínimo emparelhar os caminhos por um trecho, que facilmente se perdia, e colocar as fofocas em dia. Sempre dava tempo; sempre havia tempo; sempre havia vida, prazer. Éramos espécie rara, um tanto diferentes dos outros, mais livres, livres, completamente livres. Eles não entendiam, mas quem se importava.

A bicicleta oferecia uma liberdade impressionante de caminhos, paisagens e de espírito. O dia que vi fotos e soube que muitos chegaram pedalando ao Festival de Woodstock, o original, em 1969, percebi que estávamos vivendo com a bicicleta o nosso próprio paz e amor paulistano. Era maravilhoso.

Aquela era a era da inocência. Revolução bicicleteira? Até passava pela cabeça alguma coisa, mas em uma forma leve, utópica, divertida, sem os dramalhões de hoje. Não precisava. Era difícil ter problema com o trânsito ou de roubo; ou outro qualquer. O maior problema eram as bicicletas de baixa qualidade, mas achávamos normal carregar muitas ferramentas, cola, remendo, tesoura... Pneu furado? “Faz tempo que não fura”. “Quanto tempo?”. “Ah, uns dias...” A vida era agradável, mais ainda para nós, os usuários da bicicleta.

O grande momento da bicicleta era o Passeio Ciclístico da Primavera, criado por Caio Pompeu, que uma vez por ano enchia as ruas de ciclistas no entorno do Ibirapuera. Também havia a Prova Nove de Julho, no mesmo local, mas era para outro público. Só nas proximidades ou dentro de bicicletarias especializadas via-se um ciclista. “Nossa! Olha lá! Um ciclista!” Já havia conflitos, mas com os entregadores em bicicleta ou nos imensos triciclos, principalmente no Centro, onde estes achavam-se donos do pedaço e eram odiados por todos pedestres, sem exceção.

Nos primeiros dois anos do mountain bike o ambiente seguiu mais ou menos o mesmo, mas mais amigável, mais divertido ainda, cheio de festas, a maioria se conhecendo bem. Época de ouro! Em 1988 Renata Falzoni organizou o primeiro Night Biker, o primeiro passeio noturno organizado da história do Brasil. Saímos da Praça Charles Miller, Pacaembu, e fomos para o Centro. Não acredito que alguém, mesmo a Renata, fizesse a mais remota ideia do que aquela noite maravilhosa iria gerar. Aquilo deu nisto.

Um pouco depois veio o status e com ele o início do fim da era da inocência. Fomos incrivelmente felizes e não sabíamos.

Infelizmente não conheço mais ninguém. Sou mais um. Estou um pouco cansado de cumprimenta-los e passar por bobo. Conversar? Quem quer? Quem tem tempo? Quem se interessa? O celular quase diz tudo. Pode até ser normal (ou parecer normal), mas para mim é estranho e um tanto dolorido. Não consigo olhar para trás e ver o que imaginávamos para estes tempos, mas tenho certeza que esperávamos algo mais amigável, familiar, parecido com o que estávamos vivendo então. A sensação que dá é que hoje a maioria é motorista pedalando.

(Creio que tenha sido numa matéria na Bicycling sobre os que foram ao Woodstock pedalando, alguns fazendo longas viagens, cicloturismo paz e amor. Fiz uma pesquisa para ver se encontrava fotos, mas não consegui. Só quem viveu aquela época consegue dimensionar a real dimensão da esperança que se abriu com o que aconteceu no festival. Não qualquer termo de comparação.)
 

Um comentário:

  1. Questionamento sério e interessante em um belo texto e ótima trilha sonora!

    Passeios noturnos estão chatos. Gosto daqueles lentos que permitem que haja conversa e alegria. O bike party é um deles.

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