quarta-feira, 22 de junho de 2011

Troca de escola

Foi num almoço na casa de minha avó como outro qualquer, mas que na saída, em vez de ir para o carro, ela me levou para a velha grande e misteriosa garagem. Correu um pouco a pesada porta de madeira, desapareceu no fundo escuro do espaço vazio e cheirando forte a mofo, e reapareceu com uma bicicleta empoeirada e já um pouco enferrujada.

- Toma, é sua. Não pude dar antes porque seu pai não permitiu.

Não sabia bem o que responder nem o que pensar, mas fiquei muito feliz e ao mesmo tempo desapontado por ganhar uma bicicleta nova naquele estado. Não era meu aniversário, nem qualquer outra data que merecesse sequer uma lembrança. quanto mais um presente. Até demorei um pouco para tomar posse dela e tomá-la com as próprias mãos. Sabia o porque daquela situação. Um pouco antes do meu aniversário eu fora expulso do colégio. Não interessou a ninguém, exceto minha mãe, saber o porque da expulsão, se havia sido justa ou injusta. Meu pai, principalmente, havia ficado fora de si com a situação. Eu nunca fui um anjo propriamente dito, mas aquele colégio de padres vindos de uma Europa em II Guerra Mundial também não era flor que se cheirasse. Fazia um bom tempo que eles estavam aos poucos convidando alunos considerados inconvenientes, leia-se pobres, mal ajambrados, filhos de famílias de esquerda ou com qualquer posição considerada incomoda aos interesses da escola, além de desajustados, a se retirar. Eu me encaixava em algumas categorias. Aproveitaram minha revolta com a expulsão ridícula de um amigo, Rogê Ferreira, sobrinho de um político da esquerda, e me chutaram no embalo. Não houve uma conversa civilizada para averiguar o que realmente acontecera. Inquieto, arteiro, disperso desde criança, se houvesse distúrbio da ordem já se sabia bem quem poderia ser apontada como responsável. Minha culpa estava definida antes, durante e futuramente. Naquela situação não havia o que fazer a não ser receber a bicicleta. Colocar toda história em pauta para discutir minha versão provavelmente significaria mandar a coitada da bicicleta de volta trevas da garagem fedida e escura, local dos infernos. Ela não merecia.

Não deu para sair pedalando porque o pneu estava vazio. Continuei com a bicicleta na mão, simplesmente olhando. Fazia muito tempo que não tinha uma. Muito tempo. A minha e de minha irmã foram roubadas quando ainda éramos crianças. Desde então pedalava nas bicicletas de primos e amigos. Aquela era minha. Demorei, mas sorri aberto e dei um beijo em minha avó sem largar a bicicleta. Ela ficou quieta, feliz, vendo minha reação. Deu as costas, foi até o Fusca, abriu a porta e puxou o banco para frente.

- Como a gente vai colocar esta bicicleta ai dentro? Se demorar muito ai olhando ela não vai poder encher o pneu e dar umas voltas. A tarde já vai acabar. Fez novo silêncio, olhou nos meus olhos com olhar grave. – Seu pai não queria que eu te desse esta bicicleta agora. Diz que você não se comporta bem, mas eu acredito em você. Comporte-se bem. Não brigue com seu pai.

Limpando a bicicleta em casa fiquei com um pouco de raiva de toda história. Afinal, ganhar uma bicicleta nova que esteja suja e enferrujada não é bem ganhar uma bicicleta nova. Deixar a coitada jogada seis meses no fundo daquela garagem úmida... Deu um bom trabalho fazê-la ficar apresentável. Enchi os pneus e sai para minha primeira volta, que não queria terminasse jamais. Voltei quando o cansaço já não deixava mais sequer lembrar por quais caminhos pedalei. A bicicleta era minha e pronto. Encostei na garagem, subi para jantar e antes de dormir ainda desci para olhá-la novamente. No dia seguinte mostrei para meus amigos e ninguém conseguiu entender bem porque uma bicicleta nova estava com cara de velha.

– É mentira do Arturo, disse um deles provocando, - Quem compra uma bicicleta nova usada? Só a família do Arturo.

Deixei passar sem responder, olhar fixo na minha bicicleta; minha! Deixei o pessoal sair para umas pequenas voltas, controlando aos gritos para evitar fossem longe de minha vista. Minha bicicleta! Mas todos andaram nela. Minha bicicleta!

Não demorou muito e passada a época dos passeios e corridas entre amigos a bicicleta passou a me lavar mais longe, algumas vezes bem longe. Meu pai nunca falou sobre o assunto bicicleta e minha santa mãe evitava expressar qualquer preocupação, se limitando a uma vez ou outra pedir um dolorido “meu filho... toma cuidado”. Se eles soubessem... E deviam saber de minhas aventuras porque sempre aparecia na casa de meus primos, que não era exatamente na outra esquina de nossa casa. Fofoca de família corre mais rápido que chamada de telefone.

Um dia fui até o supermercado fazer algumas compras para minha mãe e deixei a bicicleta parada na porta. Obviamente ela foi roubada. Fiquei perplexo. Naqueles tempos aquilo não era coisa que pudesse acontecer. De novo sem bicicleta e mal sabia que a partir de então por um bom tempo de minha vida. A adolescência chegara, amigos e primos tinham outros objetivos, e eu próprio mudei. Ou quase. Havia uma Sears e lá alguns modelos de bicicletas que de vez em quando ia dar uma olhada. Mas eram caras para mim e a coisa ficou por muito tempo na paquera.

A troca de escola foi a melhor coisa que poderia ter acontecido em minha vida. Descobri que eu podia não ser exatamente um aluno padrão, mas também não fugia muito à regra. Na nova escola a classe era mista. Naquela escola, dita de expulsos, com aquele pessoal, dito indisciplinados, eu me sentia gente. Não sei bem o que sentia na escola dos padres, mas não podia ser normal. No meio da minha gente a vida era leve, fácil, amistosa. Foram anos felizes. Ótimas amigas. Eu era então pedestre. E assim fiquei por muitos anos, mesmo depois que tirei carta. Dirigir era o máximo, mas caminhar trazia a magia da calma, e então era tudo que eu queria. As poucas vezes que tive uma bicicleta nas mãos foi maravilhoso, como um reencontro predestinado. Praticamente tão bom quanto as mulheres. Mulher é mais macia e aconchegante, sem dúvida. Foi por ai que conheci a expressão “casar ou comprar uma bicicleta”. Duvida cruel.

- Não dá para ter mulher sem casar? Acho que encontrei a fórmula mágica!

Só muitos anos depois do roubo voltei a ter uma bicicleta. Não era exatamente minha, mas de meu irmão, santo irmão. Não sei bem quantas vezes ele a usou, mas bem posso imaginar quantas vezes eu a pedi e ele me emprestou. Por um longo ano, este foi o tempo até que eu finalmente pudesse comprar a minha própria bicicleta, igual a dele, mas amarela. Infelizmente nunca saímos para pedalar juntos, e este é um dos vazios de minha vida. Mas meu irmão, em sua eterna boa vontade e sabedoria no bem levar as pessoas, sempre dispôs de sua bicicleta prata para quem quer que fosse pedalar com seu irmão caçula. Provavelmente percebeu que o moleque levado e inquieto acalmava depois de umas pedaladas. E assim foi e sempre será.

terça-feira, 14 de junho de 2011

O Estado de São Paulo
São Paulo Reclama

Folha de São Paulo

O mordomo sempre é o culpado

Mais um ciclista morreu no trânsito de São Paulo e o culpado sempre é o mordomo. Ops!, desculpe, o motorista. Vício de leitura. Mais uma vez. É tudo tão banal, automático, que a língua cai na obviedade da mesma resposta.

São Paulo produz números absurdos no que diz respeito às mortes no trânsito. Alguém deve ser responsável por esta situação, provavelmente o mordomo. Estes números se repetem há décadas sem que haja uma investigação mais profunda sobre as causas. Toda vez que morre alguém mais proeminente ou que o fato gere boa notícia os paulistanos acabam tendo uma nova conversa de péssimo gosto para os bares e esquinas. Do contrário nada. Falar sobre mortos desconhecidos e desinteressantes é muito. Discutir a questão para valer, ponderando fatos e nuances importantes? Nem pensar! Ai já é demais; fica chato. Enfim, deixa morrer..., os mortos e o assunto.

Morrem algumas dezenas de ciclistas. Morrem algumas centenas de motociclistas e morre muitas centenas de pedestres. Por ano. A imensa maioria de baixa renda e lá longe. Lá por aquelas bandas só dá notícia quando há efeito boliche, daqueles que o carro invade o ponto de ônibus. O resto é resto. Como diz a própria CET, o pedestre é o responsável pelo próprio acidente. O trânsito de São Paulo gera algo em torno de 1.500 B.O.s de IML por ano, (repito: há décadas), o que constitui literalmente uma guerra, ou genocídio. Há um órgão constituído que é responsável direto pelo trânsito. Mas toda vez que acontece uma tragédia o culpado é o mordomo. Literatura barata.

Av. Sumaré tem uma ciclovia que está abandonada. O projeto original desta ciclovia previa sua extensão da rua Turiassú (Palmeiras) até a av. Henrique Schauman, e, se não me falha a memória, dali até o Parque do Ibirapuera. Por que não foi implantado o projeto completo? E os outros projetos do Projeto Ciclista, da SVMA de São Paulo? Por que deu em nada os esforços da GTZ (http://www.gtz.de/en/aktuell/625.htm ) alemã, do ITDP (http://www.itdp.org/ ) e Fundação Clinton Brasil (http://www.clintonfoundation.org/) americanas, do I-Ce (http://www.cycling.nl/) holandês, e do Banco Mundial, para citar os mais importantes? Por que a questão do desenvolvimento da bicicleta como modo de transporte, melhorias para pedestres e pessoas com deficiência não sai da gaveta? Por que nada dá nunca certo? Por que a população acredita que não há projetos para humanizar esta cidade, para frear esta guerra? Quem melou a história? Quem melou estes esforços????

“Estamos fazendo algo, estamos começando a trabalhar”já afirmaram. Mas quem pergunta: “em que termos?”? Qual a história de bastidores das ciclovias da Radial e Pinheiros; da Ciclo Faixa de Domingo? Por que só estas saíram do papel? A que custo? Com que resultados? Para quem? Por que a CET está fazendo trabalhos só em algumas áreas periféricas? O que faz com que a escolha seja ali? Quantidade de ciclistas circulando nos locais? E o que mais há nesta história? E o resto da cidade? E os pontos críticos? Os locais de maio índice de acidentes? Por que deu tanta confusão com a ciclovia de Parelheiros? Quem assinou o projeto? Por que assinou? Em que condições? Quem é responsável de fato, pelo que manda a lei? Será que alguém que é crucial para estes projetos tem algum medo com relação ao uso da bicicleta? Qual é o enrosco? Qual é o babado entre quatro paredes? Qual é a história não contada?

Infelizmente sempre que há uma matéria especial sobre trânsito os mesmos nomes são entrevistados, sempre respondendo as mesmas mesmices e anacronismos. “Bicicleta não é compatível com o trânsito de São Paulo” - só pode ser piada publicar uma besteira destas. Trezentos e cinqüenta mil ciclistas dia de trabalho circulando pela cidade é a verdade incontestável. Não seria interessante buscar novas idéias, conceitos, visões? Não seria interessante procurar chegar mais perto da verdade? Do que vale repetir sempre a mesma coisa? É para manter tudo igual ou para satisfazer o que o público quer ouvir? Notícias Populares? Onde está a inteligência? Falando nela, seria melhor os ativistas de vez em quando tirar o capacete para arejar as idéias. Para evitar outras tragédias e construir uma cidade melhor é necessário ver o todo, não o que parece óbvio, o que foi vendido pronto e serve aos interesses de terceiros.

Márcia Prado morreu pedalando um veículo “bicicleta” (Código de Trânsito Brasileiro) numa faixa exclusiva para ônibus da av. Paulista (estabelecida dentro da lei). Este senhor, ciclista com prática, perdeu o equilíbrio e morreu numa curva de acesso para a av. Sumaré; onde todo motorista olha para o lado contrário da posição de qualquer ciclista para justamente acessar com segurança na avenida. Há ali uma seqüência de postes, como em toda a cidade; postes que tiram diminuem a visão de qualquer motorista. Não sei se o ciclista estava indo para a ciclovia de canteiro central existente na av. Sumaré; mas se ele tivesse optado por pedalar no meio da avenida eu não estranharia porque a conservação da ciclovia é péssima, ela é usada por pedestres, não está sinalizada, dentre outros problemas. A simples sinalização dos acessos à ciclovia Sumaré ajudaria muito na segurança; mas constrói-se a obra, corta-se a faixa, e o trabalho está concluído. Será?
Enfim, restringir o acidente, a morte do ciclista, ao fato local, com culpa imediata do motorista, demonstra uma falta de vontade de chegar à verdade e assim tentar evitar novos dramas. É como a coisa das drogas: prende o viciado ou o pequeno traficante. Sobre o financiador ninguém fala uma palavra. No caso do trânsito, quem “financia” estas mortes? Quem são os responsáveis diretos e indiretos pelo fato? Parece que ainda não estamos maduros para encarar esta verdade. A violência generalizada é fato inconteste. A falta de interesse na busca da verdade também. E o mordomo é sempre o culpado.

Arturo Alcorta

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Faróis de xênon e faroletes piscantes para bicicletas

O Estado de São Paulo
Fórum do Leitor

Sábia medida tomada pelo CONTRAN proibindo o uso dos faróis de xênon no Brasil. A luz branca, muito potente, pode parecer ótima para quem dirige, mas praticamente cega quem vem de frente, o que é um perigo até para próprio motorista do veículo com faróis de xênon. A reclamação contra estes faróis sempre foi geral. O CONTRAN poderia aproveitar o momento e também proibir o uso de farolete dianteiro piscante para bicicletas, que também causa desconforto aos outros e gera uma falsa sensação de segurança ao ciclista, induzindo a erros, o principal acreditar que com tal sinalizador podem trafegar na contra-mão, o que constitui na situação de maior perigo para o ciclista. É crucial para a segurança ser visto, mas sem ofuscar a visão dos outros.

Aproveitando a oportunidade: a maioria dos acidentes envolvendo ciclistas acontece à noite ou no lusco-fusco. Urge que o CONTRAN tome alguma providência no que diz respeito à qualidade dos refletores de fabricação nacional, que são de péssima qualidade. Basta tentar encontrar um que não tenha quebrado e caído no chão para entender a questão. A maioria da população usuária de bicicleta tem orçamento curto para comprar faroletes e lanternas a pilha, e os refletores dianteiro, traseiro, de pedais e rodas, fazem toda diferença não só para o ciclista, mas todo trânsito. Vide o resultado do trabalho realizado na Rodovia Ayrton Senna, onde foi adesivado refletores às bicicletas dos trabalhadores.


quarta-feira, 8 de junho de 2011

Roubo bobo e o BO eletrônico burro

O Estado de São Paulo
São Paulo Reclama


Enquanto eu tirava uma soneca entrou alguém em minha casa, pegou um pouco mais que R$ 70,00 de minha carteira e meu celular, um modelo muito velho. Quem quer que tenha sido foi de grande ousadia porque o fez a menos de 5 metros de onde eu estava. Só vim perceber que havia sido de fato roubado quando fui pagar o pão e encontrei a carteira vazia. Até então estava tentando lembrar onde havia deixado o celular. O ladrão entrou e saiu de minha casa sem deixar vestígios na hora do almoço, quando a rua está cheia, o por quilo da casa vizinha está muito movimentado. Na mesma mesa onde estava carteira e celular havia também uma máquina fotográfica, meu relógio, o cartão de crédito e mais outras pequenas besteiras. Situação estranha que, juro, pensei ser molecagem de algum amigo.

Logo que ficou clara a situação sentei no computador e gerei um B.O. eletrônico. Acredito que a população tem a obrigação de informar a Polícia para que esta tenha dados, através do Infocrim, e assim ajude a melhorar as ações da segurança pública. Tenho absoluta certeza que ou todos temos segurança ou ninguém tem. E acredito que mesmo um fato bobo como o acontecido deve ser comunicado porque tanto pode ter sido só um pé de chinelo oportunista, como um olheiro que entrou para ver o que há dentro da casa. Tem havido alguns roubos na minha rua, que só soube depois do fato, e acho crucial comunicar as autoridades.
Para meu espanto recebi uma mensagem de volta comunicando que o acontecido, pelo fato de ter sido dentro de minha casa, não pode ter Boletim de Ocorrência eletrônico, mas demanda que eu compareça a uma Delegacia para fazer o B.O. pessoalmente. Ops!!! Assim minha cidadania fica indecisa. Como mostraram várias matérias, de vários canais de TV e jornais, há uma grande possibilidade que eu tenha que torrar algumas horas numa delegacia. Ai fica a pergunta ao Senhor Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo (que vem fazendo um bom trabalho): não dá para simplificar?
Acredito de fato que a única forma de frear este estado de guerra que temos no país é através de um sistema de segurança baseado na inteligência onde a população colabore sempre. Com o tempo exíguo de nossas vidas fica difícil ir até uma delegacia, que tem a pecha de demora e precariedade de atendimento, para comunicar um roubo de pé de chinelo. Tenho minhas boas razões para me perguntar qual será a boa vontade dos que atendem com um fato tão pequeno quando sempre há casos que os policiais dizem mais importantes?
O que o caso faz transparecer é que não há estrutura na Polícia para fazer da Internet a poderosa ferramenta que de fato é. Prefiro gastar meu tempo aqui escrevendo este meu protesto. Vou colaborar sempre para a segurança de todos, que é meu dever cidadão, mas espero para isto haja vontade ou boa vontade de parte do Poder Público em ouvir.

domingo, 5 de junho de 2011

Dor e vida

Está complicado deitar e dormir. O ombro direito está bem sensível desde o acidente da sexta-feira retrasada, quando um carro me deu um totó por trás e acabei sendo jogado no chão de costas.  Depois de ter realinhado a roda traseira da bicicleta sai pedalando e senti bem o ombro pesado. Fiquei assustado, lembrando quando o Michael errou uma subida de calçada e capotou de frente. Voltou para casa pedalando bravamente, sem reclamar, e no dia seguinte ligou contando que havia quebrado o ombro. Fiquei imaginando se o mesmo iria acontecer comigo, se no dia seguinte estaria engessado e assim ficaria por um mês ou mais. Seria uma merda para o trabalho. Parei a bicicleta, fiz uns testes girando o braço para todos os lados, e cheguei à conclusão que provavelmente não havia fratura ou ruptura de ligamento. DE qualquer forma estava ficando rígido e doendo bastante. Mau sinal.

A musculatura esfriou, a dor ficou bem pesada, mas não apareceu nenhum derrame, nem uma restrição acentuada de movimentos. Bom sinal. A primeira noite de sono foi típica: muita dor, acordando à menor movimentação na cama, mal dormida. Mas, confesso, esta mesma dor intensa me fez dar muita risada de minhas molecagens passadas que não raro terminavam mais ou menos da mesma forma. Molecagens ou burrices. E senti muita saudade de minha santa mãe; muita saudade. Que paciência dona Lollia teve com este filho!
Uma destas aconteceu quando voltava de madrugada para casa pedalando depois de uma noite de amores. Vinha fazendo zig-zags, feliz da vida, quando a roda dianteira simplesmente fechou. Sai voando por cima do guidão e raspei todo meu lado esquerdo no asfalto. Chegando em casa, ainda com todos dormindo, fui para o banho, passei escovinha em toda perna, tronco e braço arranhado, e fui deitar nu. Acordei com o lençol colado no corpo. Enrolei-me no lençol como um sacerdote indiano, abri a porta e dei de cara com minha santa mãe. “O que é isto? O que você está fazendo enrolado no lençol?” Contei e fui para o chuveiro descolar meu corpo. Passar a escova em arranhão é uma dor momentânea, mas não menos difícil de administrar. A dor de ver o desespero de minha mãe foi mais complicada ainda.
Um dia, com ela ainda viva, fiz uma contagem para saber quantas vezes até então havia sido imobilizado: 18! O pior foi fechar o calculo de quantos dias de minha vida fiquei inativo, um total absurdo. Parte desta vida acidentada se deve a minha diabete, mas não justifica tudo. Querer conseguir resultados a qualquer custo, uma burrice sem tamanho, foi causa mais freqüente. Hoje não dá mais. A velhice traz consigo sabedoria, o saber que a recuperação vai ser cada vez mais longa. Com a idade, principalmente depois dos 50, as seqüelas de um erro fazem que o corpo desça degraus cada vez mais altos. Meu pai diz que depois dos 50 se você acordar sem dor é porque está morto. Bem verdade!
Eu olho para trás mais uma vez e tenho a mais absoluta certeza que faltou “educação física”, literalmente. Sou de uma época que educação física era praticada na escola em duas aulas por semana e que não passava de uma seqüência de exercícios comandados por um professor – um dois, um dois,um dois, agacha, levanta, agacha, levanta; seguida de alguma prática esportiva, normalmente futebol, vôlei ou basquete. Os ruins ficavam na reserva, o que era meu caso. Naquela época até mesmo os treinadores profissionais pouco sabiam sobre o que poderia ser educação física, como aprender a usar o corpo da melhor maneira possível, como saber quais são os limites e quais as técnicas adequadas para chegar aos resultados desejados. Era tudo uma variação do um dois, repete, repete, repete... Hoje há um profundo conhecimento sobre o corpo, seus movimentos e suas capacidades; mas parece que a geração das academias e dos “personais” passou do não saber nada do passado para o acreditar que sabe tudo. O número de pessoas machucadas em treinamento que o diga. No ciclismo então é bom nem falar.
O ideal é alcançar um ponto de equilíbrio da saúde, do bem estar, do rendimento e principalmente do não se machucar. Poucos são os educadores que de fato buscam encontrar o equilíbrio sadio do indivíduo. Sentir dor faz parte deste processo, mas precisa saber quais são as dores sadias, não lesivas, o que é um passo além porque envolve tanto experiências físicas como psicológicas. Tem muita gente que acha lindo se arrebentar. Em alguns meios sociais, lesão é sinal que o cara está dando tudo de si, de tentar se superar. Quanta besteira! Nossos dias podem ser resumidos numa propaganda que promete “Fazer você perder 30 kg em 30 dias e ainda ficar com barriga tanquinho”. É o que se espera do personal e é o que eles procuram entregar – custe o que custar.
Por causa da diabete aprendi a lidar com a dor e não raro contorná-la. Algumas vezes passei muito longe do bom senso e limite. Numa prova de mountain bike, há uns 15 anos, pincei a ciática, o que paralisou completamente minha respiração por uns 2 minutos. Controlei a situação com a bicicleta em movimento. Transferi toda minha sustentação da lombar para a musculatura frontal e assim que voltei a respirar segui em frente e terminei a prova. Contei esta história com grande orgulho para meu médico e amigo Bettarello, que ficou realmente furioso. “Você não faz idéia da irresponsabilidade que cometeu. Você poderia ter ficado paralítico!”. Ou correr a São Silvestre com duas costelas quebradas, o que também não é nada recomendável.
Não se educa sobre o que é dor e sobre suas variações. Talvez não interesse. Para a maioria vale aquela propaganda: “Ao menor sintoma (de dor) tome...” Pelo outro lado há a venda de um heroísmo tanto fantasioso como estúpido que a maioria compra como sendo o máximo. Heróis de verdade não sentem dor, ou se sentem passam por cima dela para chegar a eterna vitória sobre o mal. É nossa famosa sociedade bipolar variando de um extremo ao outro e esquecendo que somos todos humanos. Dor faz parte da vida.
A medicina chinesa estuda as dores há mais de 4.000 anos. Para a medicina moderna, ocidental, dor é dor e tem que ser automaticamente combatida. Mascarar a dor com remédios pode ser cômodo, mas também pode ser uma ação perigosa para o encontro do equilíbrio.
O que aconteceu comigo foi um acidente. Mesmo me fazendo lembrar algumas passagens da vida confesso que uma semana sentindo dor e dormindo mal é muito ruim, dispensável. Não dá para parar de pedalar e assim tentar zerar a possibilidade de outro acidente. Riscos fazem parte da vida.