quarta-feira, 28 de julho de 2010

Ortodoxia e resultados

Preocupação todo mundo tem, umas consigo, outras com os outros, umas menos outras mais, algumas exageram na busca do melhor.
Quando a pequena criança, Guilherme, de dois anos incompletos, subiu no banco o tio ouve um pequeno barulho, pára a leitura e dá uma olhada sem mexer cabeça e livro. O tombo dali não será grande, provavelmente só um bom e educador susto. Guilherme senta, ajeita-se melhor, olha em volta, agarra com suas pequenas mãos a borda da mesa, admira o refletor de luz sobre a mesa. O tio volta à leitura. Mais um ruído suave do banco chama a atenção do tio, que vê a criança ficar em pé no banco e lançar o corpo para apoiar-se na borda da mesa. A leitura do tio começa a ficar incomoda, mas ele não se mexe. Guilherme então torce o dorso e lança um pé para cima da mesa tateando um apoio. O tio presta atenção incrédulo, um pouco tenso, ainda sentado e imóvel. Abrindo bem a perna a criança tem o apoio desejado e assim move o corpo para cima da mesa, rasteja para longe da borda, olha em volta, se sente seguro e pára. Senta. O tio sabe destas estripulias e acha graça, mas já está aflito e pronto para agir. Guilherme fica lá por um instante, olha em volta, percebe o tio e sorri; e o tio retribui quieto. A criança está segura e há tempo suficiente para chegar à mesa antes de um tombo maior. Sabe o que o pai faria em seu lugar. E então Guilherme gira mais uma vez o corpo, apóia as mãos na mesa, fica de quatro e rapidamente em pé. O tio dá um pulo da cadeira, joga o livro para o lado, e em dois passos largos agarra o moleque de maneira abrupta, gira o pequeno corpo assustado no ar, olho no olho, e o coloca no chão. Já no chão Guilherme assusta com a reação e ainda toma uma dura bronca. Desanda a chorar. O tio a princípio sente que agiu corretamente, mas com a chegada do pai e as devidas explicações se questiona sobre toda a situação. O pai não acha ruim, sabe o filho sapeca que tem. Teria sido melhor agir antes de Guilherme subir no banco? Ou quando subiu na mesa? Ou quando ficou em pé e aproximou a mão da lâmpada acesa? O filme sobre a própria infância do tio e de seus primos, todos muito levados, passa junto com questionamentos, muitos. A experiência de vida diz que os superprotegidos se saíram pior do que os que aprenderam por experiência própria e orientação sensata e continua dos pais. Guilherme, mesmo com menos de dois anos tem uma noção sobre experimentar e sobre limites invejável, todos reconhecem. O pai está sendo sábio em deixá-lo aprontar e só intervir quando a situação chega próxima do perigo real. É pai exemplar e o faz com boa dose de carinho. O garoto é bom aluno. O tio foi exagerado por inexperiência. Bastaria tê-lo segurado com calma na hora em que ele se levantou sobre a mesa e dito que aquilo pode machucar. Guilherme normalmente entende e não repete. Inexperiência, desconhecimento e excesso de preocupação; erros básicos e perigosos. Tivesse Guilherme se assustado com aproximação rápida e violenta do tio e ai sim poderia ter sido causado um grave acidente. Calma e ação correta são amigas da segurança. Educação baseada na sensatez é o caminho.
Repetimos nossos algozes. Aprendemos com nossos educadores tanto o bem quanto o mal, mesmo que este só tenha tido a intenção de transmitir o melhor. O mal vem sempre junto porque nos recusamos a reconhecer o mal como algo que simplesmente existe e definitivamente não pode cortado pela raiz. Depois vamos repetir praticamente os mesmos atos de quem foi nossa referência sem nos aperceber do que realmente estamos fazendo. Fazemos porque fomos criados desta forma e porque não é possível negar a própria essência. Alguns ainda se perguntam por que, por que, por que? Encarar a porção de mal que existe dentro de nós como fato é além da conta do que podemos suportar. E assim sendo espalhamos o que somos pelo universo.
Nossa comunicação acaba virando um desastre. “Não faça isto” dito em tom paternal é em muitos casos um grande estímulo para quem ouve fazer exatamente o contrário, o que não deve. Ameaça faz parte de praticamente toda educação. Ameaça caminha no sentido contrário da sensatez. Ameaça deveria ser o extremo e lidar com o extremo sem a devida base de conhecimento é procurar problema. Bombeiro trabalha com fogo porque sabe como lidar com ele. A maioria dos mortais viraria churrasco no meio das situações que eles enfrentam. O que dá aos bombeiros segurança é um passado de conhecimento, de estudos, pesquisas, ciência, erros e acertos, toda a história da humanidade em lidar com situações de extremo perigo e um treinamento voltado para a sensatez. Para não sair queimado vale a verdade e não os mitos. É também crucial saber lidar com a questão humana. Esta sim é complicada, muito complicada, o fator decisivo para obter bons resultados, quaisquer que sejam.
Um bombeiro bem intencionado não é um bombeiro cheio de vontade, crenças, desesperado para fazer o bem. Este tem uma grande chance de ampliar ainda mais os problemas. O bom resultado vem através de técnicas, do meio termo, da ponderação, do bom senso, do trabalhar em equipe. Desequilibrou a equipe e quem se está ajudando com posições pessoais e há grande possibilidade de perder controle da situação. Quem quer resolver tem que saber se comunicar bem, objetivamente, sem deixar dúvidas, com argumentos claros, convencendo pela sensatez. Formadores de opinião de verdade sabem disto.
Desagradável
A conversa sobre capacetes e segurança no trânsito sempre foi dura, mas recentemente extrapolou. Um pai preocupado, K, entrou no jogo comum do fanatismo sobre capacetes. Há muita gente que acha que a questão do uso do capacete é absolutamente inquestionável. Tem que usar e ponto. Para estes, quem não usa deve ser execrado. Já passei pela esta situação mais de uma vez. Na esquina da Gabriel Monteiro da Silva com Groelândia um destes fanáticos teve a capacidade de parar seu grupo de ciclistas, uns 30 ou 40, e me passar uma descompostura pública, grosseira, insolente, pela falta de capacete. Em outra ocasião, na avenida Paulista, final de noite, voltando do trabalho para casa, fui alcançado por um grupo cujo líder, responsável por um dos clubes de ciclistas mais importantes do pais, simplesmente disse que não eu poderia continuar rodando próximo a eles sem capacete, insinuando que não tinha direito de usar a bicicleta naquela condição. Outra feita, numa mesa de debates em um programa de TV, estava explicando porque considero o capacete para ciclistas urbanos questão menor para a sua segurança, expondo sobre dados de inúmeras pesquisas especializadas, quando fui interrompido por um “Não li e não quero saber, sem capacete não saio”. A discussão e informação para público foi baixada para o irracional, o sem base, o emocional puro, pior, para os interesses do patrocinador de quem fez o comentário. Fim de papo!
K estava em uma lista de debates sobre a construção de melhoras para o ciclista e empacou pesado no capacete como salvação da humanidade. Extrapolou completamente quando afirmou que Rafael, filho de Cissa Guimarães, atropelado e morto quanto andava de skate num túnel do Rio de Janeiro, não teria morrido se estivesse usando um capacete. Não me surpreende a postura, comentário com muito de “eu tenho minha posição e preciso mantê-la a qualquer custo”, normal em várias discussões, não só a sobre o capacete. Nível de sensatez bem baixo.
O algoz se repete.
Ainda somos uma sociedade que discute pouquíssimo em cima de argumentos, de dados, do racional. O passional católico e latino fala forte. Ainda não chegamos ao fundo do poço do “sabe com quem está falando”, autoritarismo nosso de cada dia fruto dos senhores escravagistas. Não se discute par chegar a um consenso, nem se busca resultados, mas briga-se por posição. Não interessa se o skatista foi atropelado por um carro a uns 100 km/h e nesta velocidade é praticamente zero a possibilidade de sobrevivência. É uma questão de física e de biologia, sem mais ou menos. Mas o que é física perante a importância do capacete?
A resposta brasileira para seus problemas mais agudos tem sido muros, vidros pretos, desconfiar de todos, seguro saúde, shopping center, escola particular; uma busca desesperada da própria segurança. O resto que se exploda. Ninguém acredita na verdade: ou todos têm segurança ou ninguém tem segurança; ou todos temos saúde ou ninguém tem saúde, ou temos uma educação de qualidade para todos ou não há futuro. A ignorância de ontem é o algoz de hoje.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Trem bala na cabeça

Acho incrível que a população brasileira não esteja reagindo contra a idéia do trem bala, mas dada a baixa escolaridade geral também não espanta muito. Mesmo assim é inacreditável que não consigam entender o que é prioridade e ver o tamanho da encrenca que queimar R$ 50 bilhões irá representar para o futuro de cada um e de todos. É pegar o cartão de credito nacional para realizar uma fantasia infantil e assim esquecer o tamanho dos problemas que temos na área de transporte de pessoas e mercadorias. Mas faz sentido. Perdemos completamente a noção do que é a base de nossas vidas, do que é uma cidade descente, do que é um bairro agradável, do que é ter crianças nas ruas brincando, do que é mobilidade, ir e vir sem ter que gastar horas inúteis. Infelizmente a má qualidade de vida socializou-se com incrível eficiência. Brasil, o país do futuro, virou a utopia de uma sociedade alienada tentando circular em carros de vidros pretos que ofuscam olhar a paisagem e o próximo. Dentro de um destes carros o mundo de fora não existe. O contrário também é válido, porque se o individuo do lado de fora não existe, o coletivo de indivíduos é impossível se ser realizado. Mas o trem bala é notícia, boa notícia, sinal de progresso. Quem se pergunta “qual progresso vale a pena?”. Ouvissem um pouco de rádio ou lessem com cuidado jornal talvez soubessem que o que dizem especialistas. Há outras prioridades, inúmeras outras prioridades, muitas, tantas que é difícil contar. Inclusive e principalmente fazer funcionar o transportes aéreo e ferroviário existente. Parece que não sabem fazer conta, sequer a divisão destes R$ 50 bi pelo número de passageiros transportados para chegar ao custo unitário e daí fazer uma comparação com o custo da passagem aérea. Quem se acha formado parece estar deslumbrado com a possibilidade de um dia passear como na Europa. É impressionante estar num trem a 269 km/h, mas e daí? Tão emocionante quanto sair de Ferrari domingo pela manha nas ruas esburacadas da cidade. Vai ser interessante ver expressão destes mesmos que não reagem hoje contra o trem bala quando chegarem ao destino e descobrirem que na estação do moderno trem não há conexão de qualidade para o transporte de massa e que inevitavelmente irá gastar horas de carro num congestionamento. O investimento acabou no trem bala. Cansado ele irá chegar em casa e tentar entrar em contato com o mundo, a família, o trabalho, e descobrirá que não houve investimento para ter comunicações dignas. A internet será lenta, o sinal do celular cairá, tudo insuficiente para as necessidades individuais e para o porte econômico de uma pretensa potência. Lá fora a cidade, bairro, rua e a própria casa continuarão com as deficiências de organização e espaço que perpetuam a violência, barbárie. Os gargalos são fato comum hoje, continuarão iguais depois do trem bala. Mas passear nele será uma beleza; pelo menos para os que conseguirem e durante a curta viagem; e só entre as principais capitais do país. Desculpem, e até Campinas, o início da Califórnia brasileira. Todos terão orgulho do trem bala. Sobre nossas mazelas não se falará porque estraga a cervejinha. Quando esta população, ricos, classe média e os esquecidos, se dará conta que o preço de um trem bala, mais a Copa, mais Jogos Olímpicos, mais outras coisinhas aqui e ali, fazem uma conta que dificilmente será paga? Nem tanto pelo dinheiro, mas pelo abismo social que agora se aquieta com TV de plasma. Os que não têm acesso a qualidade e aos delírios hoje já percebem que onde e como vivem é muito degradante. Trem bala é lindo – lá!

segunda-feira, 12 de julho de 2010

atropelada

Na esquina da Galeria dos Pães havia um carro de polícia e na sua frente algo escondido, que de longe não se via. Só era possível perceber que a situação era anormal porque a frente da viatura umas pessoas a olhar para baixo e outras com ar de preocupação, mas sem sinal de pânico. Era final de hora do almoço de um dia ensolarado, céu de almirante, e o número de pedestres circulando era grande, principalmente ali, praticamente na porta de entrada e saída desta imensa e sofisticada padaria que símbolo da metrópole que não pára.
Curioso como sempre, cruzei a rua, contornei a viatura e dei de cara com duas mulheres sentadas no chão, praticamente no meio fio. Estavam calmas, uma deitada no asfalto com sua amiga confortando-a. Mais um atropelamento, mais um número para a vergonhosa estatística paulistana. Metade dos nossos mortos no trânsito é pedestre, e não é um número qualquer, mas algo em torno de 750 ao ano, uma barbárie que insiste em não baixar e que infelizmente tenho que repetir como papagaio paranóico. Paranóico? Estarei eu louco? Números são meu escudo.
Tenho dito em reuniões que não interessa mais os mortos, que hoje a meu ver é simplesmente casualidade de guerra. Sim, guerra. Números como os que temos em nosso trânsito são compatíveis com um conflito estabelecido e não com os que deveria ter uma das cidades mais ricas do planeta, principalmente numa de suas áreas mais sofisticadas, talvez a mais. Nesta seara eu não me meto porque depende do ponto de vista do cidadão.
A acidentada está lá no chão, como lhe foi pedido. “Estou bem. Até sai do meio da rua para não atrapalhar o trânsito”. Fiquei ali uns bons 10 minutos e o socorro não chegou. Ela já esperava há mais tempo. Estranho porque o trânsito de férias e de época de Copa da África estava muito bom e o socorro não fica longe, talvez uns 3 km.
Um dos guardas que atende o acidente sai de perto de todos e vai conversar em separado com o motorista. Achei estranho, afinal acredito que o que rege a infração e o crime é a lei, o Código de Trânsito Brasileiro, portanto qualquer ação de um representante da lei deve ser pública. Talvez desconfiança minha infundada, fruto de tantos anos vendo pedestres, ciclistas e outros menos privilegiados sendo preteridos. Já vi este carnaval antes. Como prova a própria atropelada que saiu do meio da rua para não atrapalhar o trânsito, todos nós atrapalhamos a fluidez dos motorizados. Também não nos deixa mentir a CET em suas respostas para várias cartas enviadas para os jornais Estadão e Folha. Dizem eles algo como “fomos até o local e não constatamos nenhum problema”. Problema para quem? Quando? Com certeza o pedestre não sabe cruzar e é imprudente, outro discurso corrente. As dores na perna da atropelada que o diga.
Ela mexe os pés e movimenta levemente a perna, o que me acalma. Não quebrou o fêmur e provavelmente nenhum outro osso. Bateu a cabeça quando voltou do vôo e aterrissou no capo do luxuoso carro preto.
A viatura dá ré e deixa o corpo estendido no chão sem uma proteção, uma barricada. Se houver outra imprudência a pedestre e todos em volta irão para o hospital juntos. Romântico! Comento que trabalho com segurança no trânsito (não sei se cito a questão bicicleta) e peço à amiga que chame um advogado para acompanhar a feitura do B.O. Um senhor educado ouve e quando me levanto ele repete mais uma vez o eterno chato discurso. “Se trabalha com segurança e é ciclista onde está o capacete?”. Confesso que nestas horas tenho vontade de responder que a coisa que mais mata é burrice. Burrice é fulminante, mas dependendo do grau mata o próximo e não a besta que relincha. Óbvio que depois da primeira afirmação segue-se mais uma longa história do porque usar capacete. São todas iguais, já as ouvi o suficiente. Ai que vontade de fazer aquela piada – “eu não uso capacete porque não caio em linha reta”...., mas o que fazer..., deixa quieto....
Dou meu cartão para a amiga da acidentada e tomo meu caminho. Não há mais o que fazer... a não ser bater nas teclas, como sempre. É o que nos resta, uma luta lenta, muito lenta, algumas vezes com sabor inglório, mas luta de tão persistente eficaz, pelo menos é o que diz a história. Estou cansado de tentar fazer história. Só quero que todos possam cruzar as ruas. Aliás, estou tão resignado neste momento que me daria por satisfeito se conseguisse caminhar na calçada em paz. Há muito não se consegue mais porque muito ciclista acha que este último reduto da mobilidade espontânea é também seu direito. Faz lembrar que fiz mais de uma vez um convite para o Prefeito Kassab sair para caminhar comigo e os 3 netos. Eu escolheria as armas, ou seja, caminhar na Oscar Freire, a rua mais cara do Brasil, mas na calçada norte, onde em alguns cruzamentos estar vivo e ser pedestre vale pouco, bem pouco, como na esquina da Ministro Rocha Azevedo e seu Pão de Açúcar. Entre ele e a farmácia, que fica exatamente na esquina em frente, só dobram livremente os carros. Pedestres esperam, sobrevivem ai por medo, a paciência inerente e o milagre de vez em quando parar o trânsito ou a passagem de carros. Mas quem se importa. Vai lá saber. Talvez, mesmo com a existência da lei, pelos usos e costumes a atropelada da rua Estados Unidos com rua Antilhas, esquina da famosa e muito freqüentada Galeria dos Pães, seja a responsável pelo próprio atropelamento. É o que várias entrevistas de responsáveis pelo trânsito, sempre imputando a responsabilidade ao pedestre, fazem crer.

Espero que ela esteja e infelizmente não fotografei