segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

passeio para Santos na Rota Márcia Prado

Por diversas razões não fiz o basicão do pedal de minha geração: não pedalei a Rio - Santos, não desci para Santos, não fui para Aparecida, e outras pedaladas bem básicas. Das que ainda tenho vontade provavelmente a descida para Santos é a campeã dos desejos. Pelo menos era.
Quando anunciaram a descida para Santos na rota Márcia Prado eu sabia que era “a” oportunidade. E a ansiedade acelera a imaginação. Fiquei sonhando com um grupo grande de ciclistas saindo lá do Terminal Grajaú, cruzando ruas como povo a olhar, pegando as duas balsas de Bororé, outro local onde sempre quis pedalar, entrando na Imigrantes próximo da ponte da Represa Billings, sendo acompanhado pela Polícia Rodoviária, invadindo a estrada de serviço, e já na Baixada entrando na Anchieta para terminar em Santos. Haja gerúndio! Fosse isto teria sido uma maravilha. Teria..., mas foi incrivelmente melhor.

Desde já agradeço ao bom amigo Marcelo Mig que me lembrou da oportunidade. Provavelmente esta cabeça despirocada teria esquecido, passado batido e eu teria mais uma vez perdido uma oportunidade. Ou mais que isto, um momento histórico absolutamente inesquecível, maravilhoso para quem luta a tanto pela bicicleta e os ciclistas. A minha cabeça é muito mal resolvida para certas coisas, principalmente as de lazer, que só neste exato momento em que digito este texto me caiu a fixa do que significava o lembrete “Santos” apitado e marcado em meu celular; o qual abri, li, reli, olhei, olhei, pensei, pensei e não consegui fazer a mínima idéia sobre o que se tratava, mesmo tendo aparecido no dia anterior ao passeio. Este é o Arturo! Fico bravo comigo mesmo, agradeço aos amigos que lembram e peço desculpas aos que falto.

Embarquei lá pelas 6h30m aqui na CPTM Pinheiros. Pensei que ia dar chateação, mas, pelo contrário, os funcionários da linha foram atenciosos e não criaram o menor problema com a bicicleta. Atenciosos sempre são, mas cumprem ordens e normalmente freiam as bicicletas em dias que não seja domingo. Fui encaminhado para a última porta do último vagão e lá já havia 3 ciclistas encostados no fundo. O dia lá fora estava lindo, auspicioso. Comecei a ver que a coisa iria ser um pouco maior do que minha ansiosa imaginação antevia. Algumas estações à frente entraram mais 4 e vimos vários esperando amigos. Quando desembarcamos no Terminal Grajaú tudo estava corretamente indicado por funcionários e folhas A4 impressas com imagem de Márcia pedalando de braços abertos e uma flecha. Dali até Santos foi assim. Ótimo trabalho da organização.

Boney e mais um pessoal estava na rua distribuindo folhetos com recomendações, respondendo perguntas, dando explicações, e foi só ai que fiquei sabendo que cada um saía como quisesse, em grupo ou sozinho, no horário que bem entendesse. Juntei-me a alguns amigos, Amauri e Daniel, mais um grupo que partia naquele momento e lá fomos nós, alternando companhias, todos em bom espírito e felizes, primeiro pelo cinza e feio bairro periférico de São Paulo até cruzar a primeira balsa e chegar em Bororé, onde começou a verdadeira diversão. Entre a segunda balsa e a Imigrantes pedalamos em estradinha de terra com barro fino. Coitada da bicicleta. Conheço há tempo o local, que felizmente mudou pouco e ainda está em tempo de ser tombado e transformado em estrada turística.

Ainda pedalando na terra, depois de cruzar por um micro-ônibus atolado numa subida, quase na altura de passar por baixo da Imigrantes dobramos a direita e um pouco mais a frente chegamos à bendita “escadinha” que ouvi falarem no caminho. Ela sobe até o acostamento da Imigrantes, um pouco depois do McDonalds e uns 1.000 metros antes da Interligação. Havia comentários sobre a polícia estar parando o pessoal na estrada, mas não vi nada disto. Talvez o que tenha acontecido é que teve gente que não seguiu ou não acreditou na sinalização de papel A4 e cruzou a alça de acesso para a Interligação. Dali para frente, no caminho dos carros e por dentro dos túneis a Polícia Rodoviária não permite mesmo e com toda razão. Mas há muito vi, com inveja, um pelotão de ciclistas de estrada a mil no penúltimo túnel.

Quem seguiu a sinalização entrou no Parque Estadual da Serra do Mar pela Interligação sem problema. Mais a frente, dentro da estradinha de serviço, teve que parar, preencher e assinar um termo de responsabilidade. Entregue o documento, fomos separados em grupos de 10 ciclistas, que só seguiam depois de ouvir recomendações. Um pouco a frente Pasqualini fazia o pessoal parar novamente e reforçava as recomendações.

Infelizmente sempre tem babaca para criar problema. É humano, acontece em todo o planeta, mas num país onde a lei serve de piada, o legal é ser esperto, malandro se dá bem e é aplaudido; estes babacas se acham reis e de certa forma são mesmo. Pasqualini reforçou a questão da responsabilidade, a finalidade do passeio, a importância de ninguém cair ou se machucar. Infelizmente quase foi momentaneamente desrespeitado com uma fuga. Felizmente o carinha teve um ato de lucidez e reclamando voltou e ouviu até o fim - reclamando. Infelizmente, de novo, e sem se preocupar com atos impensados, um pouco à frente tinha uns queimando um. Desculpem todos os que se acham só no seu próprio direto, mas dá um tempo, se manca, não fode. Tem local e tempo para tudo. Numa situação destas é crucial ser exemplar. Se aqueles que não acreditam em ciclistas e num movimento de boa fé como este pega uma besteira destas faze um maremoto e a brincadeira de muita gente mela total. Ter “si mancol” sempre foi um santo remédio para abrir portas e não sacanear os do bem. Tem hora e local para tudo.

A estrada de serviço da Imigrantes é íngreme, em alguns pontos, principalmente onde o piso é de concreto, escorregadia por causa da pedra e do limo, tem subidas pedaláveis e é viável para um cicloturismo controlado com guia. Tem mais aderência do que eu imaginei tendo como base o que pessoal sempre me contou. Onde há limo é realmente complicado, mas nada tão perigoso como me disseram. Fica a impressão que a maioria não faz idéia do que é conduzir uma bicicleta no escorregadio. Felizmente no dia só vi e fiquei sabendo sobre tombinhos bestas.

Se eu fosse o responsável pelo parque e a estrada eu não abriria indiscriminadamente para ciclistas porque babacas, malucos, decolados vão criar problemas. O que creio que tenha que ser feito imediatamente é abrir visitação acompanhada para pedestres. A questão dos ciclistas teria que ser trabalhada, mas é viável. A organização deste evento provou isto. É um dos locais mais lindos que já estive e é uma aula de como fazer uma obra monumental em uma mata virgem com o mínimo dano ambiental possível. É muito importante ter gente comum visitando a área para informar, educar, e discutir que futuro queremos.

Eu não achei apropriada a forma como durante as recomendações no início da descida trataram a questão da favela lá em baixo, mas o aviso foi pertinente. Infelizmente acabei sabendo que um ou vários babacas assaltaram alguém. Infeliz exemplo de como um simples babaca pode foder todo um grupo, uma comunidade. Nem importa se quem assaltou é da favela ou não porque quem fica com o ônus será a favela, o elo mais fraco, mais “desagradável”, mais estigmatizado. É aquela coisa, para muitos “ciclista é doido e irresponsável”, “favelado é bandido”, “motorista é assassino” e este tipo de comentário serve muito bem ao tapa olhos e a interesses nem sempre interessantes. Descriminar é crime. Conter ou frear os nossos desgarrados sempre é mais que uma medida boa, é dever. “Deixa estar” dá nas coisas que vemos dia a dia neste país.

Ainda na Estrada de Serviço da serra encontramos muita sujeira de macumbas. Há algum tempo um Babalorixá falou na TV que há uma preocupação com esta situação e que estão tomando providências. Espero que sim porque o que vimos é muito triste. Até onde sei as próprias tradições de religiões africanas tem uma conversa muito clara com a vida e o meio ambiente. Aquilo pode ser rito, mas vira sujeira e duvido que qualquer orixá fique feliz com o resultado.

Passar pela favela foi sem problemas, mas com muita gente olhando curiosa. De imediato posso dizer que o poder público poderia passar uma maquininha na rua principal que é uma buraqueira e barro só. Paramos numa vendinha que ainda volto para experimentar a feijoada bem servida e muito cheirosa. O banheiro de lá é a céu aberto, o que nunca havia visto. Deve ser o máximo sentar no trono com guarda-chuva numa mão e papel higiênico noutra. Papel que se você tiver levado de molhado irá ficar grudento. Tire suas conclusões. Pelo menos a tampa sempre estará lavada.

Cruzamos por baixo da Anchieta e logo estávamos muito próximos da Usina Henry Borden, o que nem sonhava ver tão perto. Maravilhosa. Impossível de imaginar o que seja quando se passa pela Anchieta. Cruzamos o canal das águas que desce da Represa Billings, contornamos um morro e ficamos entre a refinaria da Petrobrás e uma indústria que tem galpões em estilo parecido com a Duchen da Dutra, portanto deve ser de Oscar Niemeyer. Maravilhosa. Esta estradinha acaba no crucifixo no pé da Estrada Velha de Santos. A paisagem fabril é magnífica. Cruzamos por baixo da Rodovia Piaçagüera e entramos em Cubatão, que para minha total surpresa é limpa e organizada; pelo menos em sua avenida principal. A imagem que fazia daí definitivamente não era das melhores. Um pouco a frente caímos na Anchieta debaixo de um sol forte e cansativo, cruzamos o semáforo, mais um pouco de ciclovia já dentro de Santos e chegamos na Rodoviária, onde Amauri ficou.

Chegar até Santos e não ver o mar é um crime. Pensei que iria chegar lá moído. Quando o garoto no trem da CPTM disse que havia feito a vigem em 8 ou 9 horas, para os 77 km, achei meio absurdo. Saí às 7h30m e cheguei 16h em ponto, ou 8h30m de pedal calmo, paradas, muita conversa, uma paisagem maravilhosa que espero repetir. E depois disto estava inteiro. Desci para o Gonzaga, comi mais que devia, segui até a ponta da praia, tomei um ônibus com Daniel, sobrinho de Amauri e desaparecido desde a serra. Na rodoviária foram colocadas mais 6 bicicletas no porta-malas do ônibus da Ultra, sem problemas. Partimos de lá às 17h50m e quando passamos pela Anchieta ainda havia muito ciclista terminando o passeio. Mais ainda, quando tivemos a última vista da Estrada de Serviço vimos uma dezena de ciclistas descendo. Emocionante!


  • Parabéns pelo trabalho, pessoal da Bicicletada e quem mais eu desconheça. Brilhante, genial! Exemplar.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Fim de ano


Já não tenho mais o mesmo fascínio que tinha com este clima natalino, mas ainda acho simpático sair por ai e ver luzes, decoração, agitação do pessoal na rua, o espírito de festa. Infelizmente não é mais como há uma década, quando pegar trânsito um pouco mais carregado que o normal por uma boa causa era encarado com espírito leve. Hoje olho através do pára-brisa dos carros, que é o único vidro ainda transparente, e vejo expressões duras, distantes, preocupadas, chateadas, gente falando no celular; ou rezando para Papai Noel tirar da frente todos os carros e mandar para o inferno as malditas madames que não tem mais nada a fazer da vida além de ir às compras. Mulher sempre é a culpada; se for loira dirigindo SUV então... O outro é culpado. A maioria dos condutores se diz adulto e não acredita em Santa Klaus, prova disto é só querem mesmo é “kraus” no próximo, uma santa solução dos problemas de nossa endeusada individualidade motorizada.

Papai Noel como conhecemos hoje, o bom velhinho de barba branca, gorducho, vestido de vermelho e saco de presentes nas costas, é uma figura socialmente forte. É uma fantasia, criação da Coca Cola no princípio do século XX. “Colou”. O espírito do Natal está brilhantemente colocado na famosa propaganda: vende um personagem bom, generoso, em um momento feliz, familiar, caseiro. Não transparece lembranças negócios, vendas e compras, o “com licença” dito no ranger dos dentes. O espírito do Natal do século XXI ultrapassou a propaganda, os interesses comerciais, as boas e más produções de Hollywood e acabou engolido por uma sociedade massiva, amorfa, deslumbrada. Não está morto, mas congestionado.

A maioria dos filmes é piegas, mas imbuído de boa fé, de um espírito de celebração da doação, da paz, da compreensão, de tantas coisas do bem. Faz rir e alguns realmente emocionam. Batem praticamente sempre no mesmo roteiro: quando se cai na bondade, se alcança o coletivo e o bem estar de todos. E é verdade. O saco do velhinho está cheio de doações e não há nada de mal em acreditar na esperança escondida ali. Eu realmente acredito em Papai Noel. Só acho meio estranho o gordo passar a barriga pela chaminé e entrar na sala limpinho, aí acho meio “over”. Natal pode até ser piegas, mas é um momento muito simpático.

A verdade fora das telas, ou realidade, é obviamente outra. Quem não acredita em Papai Noel não consegue mais ver o espírito da coisa. Seguramente não há renas puxando trenó, mas há o que crer. Definitivamente o que acontece atualmente no trânsito tem muito pouco a ver com o espírito natalino. Por mais que tenham criado roteiros e filmes de todo tipo sobre a festa, nunca, pelo menos que eu saiba, houve um no qual o automóvel fosse o centro da história. Não funciona porque o automóvel é individual, fechado, rápido, mortal, espírito praticamente oposto ao da festa do nascimento de um menino.

O trânsito parou. Que novidade! Está parado todo ano, todo dia, quase toda hora. Pegar um pouco de trânsito para fazer compras ou ver decoração virou um inferno, cujo personagem principal também usa vermelho, no caso na pele, e em vez de saco tem cornos. Não mais nenhuma graça em ficar parado dentro de um carro, nem para ir receber o prêmio da mega sena. Não há mais espaço, virou formigueiro, e até que me provem o contrário formigas não são humanas. Mas humanos se comportam como estúpidas formigas. Haja saco! Nem para a bicicleta sobra espaço.

Há um monte de grupos que saem pedalando nesta época do ano para ver o Natal em São Paulo. Para a maioria é novidade. Vão muito mais rápido e fluido que quem está no enformigamento dos carros. Não sei por quanto tempo ainda haverá graça de ir ver o Natal pedalando. Não há mais espaço, nas ruas ou calçadas, pelo menos para o ciclista. A boa notícia é que há cada dia mais gente nas calçadas.

Lembro claramente a primeira vez que entrei numa na av. Faria Lima e não havia espaço sequer para a bicicleta passar. Parei a bicicleta e fiquei muito assustado com a situação. Fuji por uma alternativa e voltei uns 10 quarteirões à frente. O nó era o estacionamento do Shopping Iguatemi, completamente entupido. Já naqueles idos os motoristas não estavam muito felizes dentro de seus carros, mas a perspectiva do dia de Natal suavizava o transtorno sazonal. Pelo menos os acompanhantes se mostravam vivos e esperançosos.

Desde então mudou tudo. Mudou o número de incluídos (e no que estão incluídos não sei muito bem), mudou o espírito, que deixou de ser um saco de felicidades para ser uma cueca dura de tijolinhos de notas de 100. O Papai Noel “muderno” gosta de falar um monte, distribui esmolas, matou a fome dos mensaleiros, e tem que ser mantido a distância a todo custo de um “mé”. Que santo é este? Que espírito é este?

Mudou tudo. Mudou tanto que até mudou a perspectiva com que se vê a decoração natalina. Passamos pela fase dos carros de grandes janelas transparentes e a visão das lampadinhas piscantes, enfeites chineses, papais noeis de todos tamanhos e formas, que enchiam os olhos pela novidade. Eram enfeites muito baratos e espero que não tenham sido fruto de trabalho escravo. Esperança meio vã. Quem se lembrava deste detalhe frente ao espírito feliz do bom homem da Coca Cola? Pensando bem, quem foi Santa (Klaus)? Vê como mudou tudo? Onde está o espírito? Melhor perguntar “sobre que espírito estamos falando?”

Não mudou o detalhe que somos animais sociais e que durante nossa história aprendemos que louvar o bem, a bondade e a coletividade funciona, ajuda a todos, ajuda a cada um de nós. Faz bem para o espírito, para alma, enfim funciona. Mesmo com todas as dúvidas, questionamentos, mesmo com todos os erros, as visões diferentes sobre esta festa, ninguém põe em dúvida que é simpática, que faz bem. Por que não acreditar uma vez ao ano no bem?

Filosofar sobre o Natal é o fundo do saco. Eu prefiro acreditar em Papai Noel e procurar preservar a festa e seu espírito.

Um detalhe faz muita diferença em nossas vidas: a capacidade de ver. O número de luzes cresceu, a festa começa mais cedo por razões comerciais, mas ficou mais difícil de ver sua fantasia. Os modelos de carros modernos têm colunas largas, janelas cada dia menores em nome da segurança. Junte-se o patético vidro fumê e de dentro do carro não se vê praticamente nada. Outro dia andei num pequeno de última geração e mal pude ver a cor do céu. A maioria dos carros modernos não permite uma visão ampla da paisagem em nome de uma estrutura mais forte que os salve de uma colisão a 40 km/h em obstáculo inerte. Ganhamos a possibilidade de sair vivos de um acidente, mas o que alimenta nossa alma, o prazer da visão, é a cada dia mais deixado às cegas. Ver além do que está na via pode ser perigoso para condutor e passageiros. É como colocar viseiras. Nestas, a festa do Natal fica literalmente engarrafada, mas a vida poderá ser salva. Salva?

Ver por janela pequena é como ter alegria controlada ou ganhar como esmola uma discreta mentira momentaneamente salvadora. Não ver para não sentir; não sentir para não sonhar; não sonhar para ver a liberdade. Que sentido faz ficar protegido e ver a felicidade do lado de fora. A TV e a Internet que o diga.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Muito próximo da marginalidade


Quando criança toda vez que era levado ao Centro de São Paulo recebia repetidas recomendações de não tocar a mão em nada que não fosse a saia de minha guia. “É perigoso sujar!” (leia-se “contaminar”). Chegando em casa era levado diretamente para lavar a mão também sem tocar em nada.

Ainda criança, subimos uma montanha e não tivemos tempo para voltar com a luz do dia. Acabamos sendo resgatados no meio da mata por um trabalhador da fazenda. Não passávamos de três meninos apavorados perdidos na mata fechada e na escuridão total. No dia seguinte fomos para a plantação agradecer o feito para um homem preto com inchada na mão, muito forte, calmo, e para ironia do destino chamado Hércules. Ele recebeu nossas palavras com uma serenidade espantosa. Talvez tenha sido a primeira vez na vida que tenha entendido com clareza que posição social nem sempre resolve tudo.

É óbvio que cheguei à maioridade como um feliz motorizado. Era um rito de passagem. Por acidente comecei a pedalar e a bicicleta acabou me apresentando a marginalidade sem que me desse conta. No pedal cheguei a lugares que me mostraram que a verdade social é definitivamente outra. A cidade, seus habitantes, os indivíduos, tudo, é infinitamente mais diversificado e complexo do que o paupérrimo discurso da elite. E, por favor, não pense em “elite” só como a financeira, mas a cultural e social.

Neste exato momento estou entrando em mais um rito de passagem. Desta vez a marginalidade se encontra bem a minha frente e não mais passando ao largo para ser observada e pensada ou em palavras a mim direcionadas. Não consigo, no momento, equilibrar minimamente as contas. O que foi trabalhado nestes últimos dois anos acabou não rolando. Mas isto não interessa. Vamos em frente que atrás vem gente.

O incrível deste país é a falta de capacidade de percepção do quanto a marginalidade é intrínseca a cada um de nós. Poderia ser diferente com todo este desnível social? Ele não é o reflexo perfeito de seus criadores?

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Como colocar mais ciclistas nas ruas - atravez das mulheres


Desde 1981, quando vi pela primeira vez a menina mulher Maria Cristina pedalando, me dei conta que o ponto crucial para que a bicicleta se transforme efetivamente em modo de transporte e realidade urbana é  fazer com que qualquer mulher se sinta segura e cativada a pedalar pelas ruas. É tão óbvio, mas ainda hoje, depois de quase três décadas, ainda há os que querem planejar olhando para os herois, ou loucos, como queira, que vão de bicicleta para o trabalho. Mulher é sempre será a (deliciosa) solução.
Aproveito para convidar para a leitura deste texto - http://www.scientificamerican.com/article.cfm?id=getting-more-bicyclists-on-the-road

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Opção pela contra-mão.


Um dia após o feriado a Rodovia Castelo Branco estava como sempre; trânsito pesado, denso, rápido, cheio de caminhões e grandes ônibus, motoristas ansiosos e atentos somente aos outros veículos agressividade automática ligada ao som das notícias da manha. Pela marginal da rodovia, que no jargão técnico é “via local”, tão ou mais perigosa quanto a própria estrada, uma quantidade assustadora de ciclistas vem pedalando forte pela contra-mão, seguindo seu caminho para entrar na Marginal Tiete, também na contra-mão. A ligação entre a rodovia e a marginal é uma curva de raio longo que permite que os carros a façam em velocidade elevada. Os ciclistas não se importam ou não fazem idéia do grau de perigo que estão correndo, mas por uma questão de cuidado se espremem um colado na roda do outro junto ao meio fio. Aqueles trabalhadores só querem alcançar um pouco à frente a Ponte dos Remédios por onde irão cruzar o rio Tiete divididos, uns continuando a pedalar pela contra-mão, outros na mão e até mesmo há os sem mão nenhuma, seja pelo asfalto ou mesmo pelas calçadas. Não cumprem nenhuma regra, não atendem aos pedidos pacientes e educados dos marronzinhos da CET. Só tratam de seguir em frente sem contrariar o ditado “atrás vem gente”.

Guerra é guerra? Pedalar na contra-mão é uma tentativa de se virar, de sobrevivência (burra, por sinal), é um ato de insubordinação e uma demonstração inconsciente de revolta pela falta de reconhecimento das autoridades sobre o direito de um cidadão optar pela bicicleta. Bicicletas e pedestres não existem, os números provam isto. Volta na minha cabeça sempre a abertura de minha palestra para a ANTP (2000 creio) dada para uma platéia de especialistas, técnicos e pessoas do setor: “O que vocês imaginam que o ciclista pensa sobre o que vocês pensam sobre os ciclistas (que usa a bicicleta como modo de transporte)?”. A pergunta jogou um vácuo gelado sobre a platéia. Deixei-os paralisados por uns instantes e completei seco: “Deixa morrer, não faz diferença, é pobre mesmo. Deixa morrer!” Infelizmente passada quase uma década a situação é praticamente a mesma. Guerra é guerra!

Eu havia escrito aqui que ir contra-mão é uma revolta do cidadão, mas do fundo do coração eu tenho minhas duvidas que ciclista pobre saiba o que é isto. Ele quer sair de casa e chegar no trabalho ou estudo com segurança e no meio da baderna de nossas ruas ele vai se virando. Há mil razões para optar por pedalar na contra-mão, desde simplesmente não conseguir cruzar a rua para mão correta, aquele ser o caminho mais curto, até o “eu quero que se foda!”. Há umas tantas razões para este pessoal ir para contravenção e o que acontece mesmo só estando lá e conversando com o pessoal para saber a realidade, de qualquer forma contra-mão é tentativa (inocente ou burra) de sobrevivência.

Bicicleta não significa nada para o pessoal do trânsito, a não ser algo que “Ciclista enche o saco”. (sic). Infelizmente esta posição não afeta só o ciclista. É muito mais grave a situação do pedestre no Brasil e esta afeta a todos, inclusive os filhos, pais, parentes e todos amigos destes mesmos que se fazem de baluarte da fluidez e segurança no trânsito. “Se eu der 8 segundos a mais para o pedestre cruzar a rua eu paro o trânsito” (sic). Sobre fluidez são mestres – bem dizendo, fluidez dos motorizados. Sobre segurança também o são – a segurança de não cometer deslizes e serem processados. Se ninguém reclama melhor ainda. Neste processo todo mundo se cruza na contra-mão do bom senso. E se eles não têm conhecimento do que é uma bicicleta porque vão mexer no vespeiro? Você mexeria? Ninguém reclama; então deixa como está. Afinal de contas é bom não contrariar ou criar constrangimentos para o “corpo” e jogar o jogo da casa, do contrário vai que você, como funcionário, cai em desgraça e é fritado, e aí como fica o futuro dos filhos ou as prestações e contas a pagar?

PAUSA: Escrevi praticamente todo este texto há um ano e ele já caducou. Fui eu ou foram os fatos que mudaram? Tudo junto, com certeza. Fui fazer vistorias a mais localidades, convivi com mais gente, aprofundei meus conhecimentos, fiquei maduro. É certo que neste exato momento preciso de descanso, parar por completo todo trabalho, recompor as energias, mas este texto original está fora do eixo, como se houvesse sido escrito há uma década. Mas não foi. Tem menos de um ano e o que mudou, e muito, é o diz que diz que “agora sai”.

DA CAPO AL FINE: Me contaram, lá pelos anos 80 ou antes, que esta mania de brasileiro de pedalar na contra-mão começou na ditadura militar depois de uma ordem de um militar de alta patente que teve uma filha ou neta ciclista acidentada e como solução para todos problemas de insegurança dos ciclistas mandou o Conselho Nacional de Trânsito, ou alguém em seu nome, baixar uma norma ou recomendação para que todos pedalassem na contra-mão para poder ver os carros e desviar. Como as coisas daqueles tempos eram muito estranhas e cheias de histórias e versões, mentiras e maldições, é muito possível que não venhamos a saber se a ordem existiu de fato ou tudo são lendas da “dentadura”. É possível que sim, que tenha acontecido mesmo, por mais absurdo que pareça, porque ouvi a mesma história de várias fontes, de gente do mercado, fabricantes, até de ex-militares graduados. Por exemplo, diziam que bicicletas de competição, que eram fabricadas em bom aço, estavam proibidas de entrar no Brasil porque poderiam ser derretidas e transformadas em armas. Só não explicavam qual a vantagem de derreter uma obra prima de milhares de dólares para fazer uma arma caseira de centena de dólares, se tanto. Voltando; o fato é que a contra-mão foi praticamente lei na cabeça do pessoal durante a “dentadura”. Reverter a asneira ainda hoje é difícil.

Daí eu não gostar nada da Ciclo Faixa de Domingo do jeito que foi colocada nas ruas. Está á esquerda de uma via de alta velocidade e induz sim a confusão. Prova disto é o aumento de ciclistas domingueiros pedalando à esquerda da via em grandes avenidas até não muito próximas da área da Ciclo Faixa. Se a moda colar vamos ver qual o custo teremos no futuro. É a filosofia da contra-mão: se todo mundo faz de um jeito nós podemos fazer o contrário porque somos melhores, mais espertos. No mundo todo ou se fecha a área ou se obriga a diminuição de velocidade (traffic calming). Não teria sido mais prático, barato e educativo diminuir a velocidade do trânsito nas avenidas escolhidas e manter o ciclista na direita? Não custa mais barato operar radares e ainda ter a chance de ganhar um dinheirinho com multas? Não se educaria para o CTB? Está bem, me desculpem a minha contra-mão de opinião, mas não consigo cruzar esta via para pegar mudar meus princípios

A contra-mão da bicicleta é fruto de outras contra-mãos incrustadas em nossas vidas brasileiras. Bicicleta é coisa de pobre é uma delas. O inverso de pobreza é opulência e desperdício. O automóvel foi na (ou a) direção do progresso durante muitos anos, mas desde a década de 70 é sabido que a evolução da cidade tem que ser pensada para a vida e não quase que somente para em benefício do carro. Num país onde a economia tem como alicerce a indústria automobilística e a construção civil tentar construir uma cidade voltada para todos, para a vida, fica difícil. Dai insanidades como ter um prefeito como Janio Quadros, que fez a maior cidade do país dar meia volta nos planos de introdução de um transporte de massa de qualidade para construir obras caríssimas voltadas exclusivamente para o automóvel. Quem da população paulistana reclamou? “Tomóvel é manero”. “Ô meu, é pôguéço”. A partir de então São Paulo entra na contra-mão de seu próprio futuro. Assim foi com as interferências no espaço urbano livres para empreiteiras de toda espécie e ordem. Quem olhou o futuro? Algo foi planejado na mão da direção que aponta a sustentabilidade, o equilíbrio econômico e social (ou vice-versa como queiram os pseudo-revolucionários), ambiental, humano, biológico. Como a população vê o tampão sobre o rio Tamanduatei? Como vê o custo linear do orçamento da “nova marginal”? Mão ou contra-mão?

Nossas leis são maravilhosas, o que há de melhor e mais moderno no mundo jurídico internacional, mas não funciona. Estamos na contra-mão da civilidade, da ordem, dignidade, honestidade, auto-respeito. Hoje, 26 de Novembro de 2009, no Bom dia Brasil da TV Globo, http://g1.globo.com/bomdiabrasil/0,,MUL1392967-16020,00-ALEXANDRE+GARCIA+CODIGO+DE+TRANSITO+PRECISA+SER+SEVERO+POIS+NINGUEM+OBEDECE.html , Alexandre Garcia soltou no meio de comentário enfurecido (com razão) que “Quem morre no hospital não entra na estatística. Na verdade, são 80 mil mortos por ano, segundo o professor Mauri Panitz, da PUC-RS, que considera os mortos até 90 dias depois do acidente. Dá 219 mortos no asfalto brasileiro por dia. É mais que um avião cheio caindo por dia.”, diz Garcia. Ao total de nossos mortos, os brasileiros, temos que incluir mais os que têm morte violenta, tiro, facada, linchamento, estas coisinhas do cotidiano, que são 45 mil oficialmente. Me pergunto: quantos serão se contados os que morrem nos hospitais até 90 dias após a ocorrência? Com certeza não estamos na mão do que se chama civilização, dos direitos humanos, da declaração dos direitos do homem, e etc..

Como a coisa é bicicleta e contra-mão podemos cair numa metáfora sobre a “maravilhosa” qualidade de nossas bicicletas, que tem como um dom divino de mandar uma pá de brasileiros para o Céu. Montes deles. Dizem uns 35%. É divertido. Você vem pedalando e o guidão quebra, ou o garfo parte, ou o freio pára – de funcionar, ou o selim muda de posição e você bate o saco na bicicleta, ou o pedal cai na estrada, a corrente pula fora justamente na hora que você está cruzando a estrada. Na contra-mão do Código do Consumidor, lei boa e bem aplicada, a população, incluindo ai a classe média maravilha de todas classes, simplesmente não busca seus direitos. Arrebenta-se, pára no hospital, pega uma dispensa médica, fica em casa uns dias, e está pronto para outra. Aproveita e assiste com calma seus iguais perseguir a Geisy.

Nossa indústria do setor da bicicleta é um dos maiores do mundo, mas não entra no mercado mundial, não gera divisas, empregos, futuro. Está neste mesmo nheco-nheco há décadas. Na contra-mão do empresariado de tantos setores de nosso país, referência mundial de qualidade, não conseguem rever seus procedimentos, forçar um ISSO de qualidade qualquer interno, colocar dinheiro para treinar os coitados das bicicletarias para ter um negócio mais digno, melhor para o setor, melhor para os usuários da bicicleta, e portanto melhor para a comunidade onde está a bicicletaria, melhor para o meio ambiente, melhor para o futuro. Pelo que me contaram a Brinquedos Bandeirantes deu a meia volta e pegou o caminho correto. Espero que um dia voltem a fazer o jeepinho de lata movido a pedal que tive quando criança. No sentido contrário, a contra-mão da história, diz-se que “não se poderia ter um melhor vendedor de motos que o setor de bicicletas”. A maioria não entende o comentário e as implicações dele. Como há gente que sequer sabe se está na mão ou contra-mão. Aliás tem gente ainda discutindo para onde vamos. Lindo!

O que parece é que para o brasileiro o negócio é ver o carro vindo de frente e na hora “H” tentar pular fora.

Como não me lembro do exato da brilhante frase de Laura Ceneviva escrevo a continuação: “Não se obtém resultados sem legitimidade de processo”. Ou a frase perspicaz e incisiva de minha querida mãe: “O tempo diz tudo a todos”. Duro é cair na real que contra-mão não funciona depois que você quebrou a cara, pernas e braços no capo de uma lata velha que jamais deveria ter saído da garagem. Tá tudo errado.

PS.: Parece que mais um pseudo-caudilho populista sulamericano irá assumir, agora no Uruguai. Deprimente, hermanos.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Pedalar na chuva


Haja saco! Não sei como vamos lembrar esta estação das chuvas, mas seguramente para mim é a primeira vez que não sou capaz de prever o que irá acontecer dentro de uma hora. Uma das coisas que mais marcou no meu relacionamento com a bicicleta é que por causa dela aprendi a ver e sentir a natureza, a simplesmente olhar para o céu e determinar com certa precisão se chove ou não. Sem um teto para obstruir a visão é fácil olhar para o céu e saber de onde vêm as nuvens e em quanto tempo elas chegarão até você. Eminência de temporal também pode ser sentida pelo olfato livre de latarias ou vidros. Fácil. Pelo menos era assim. Por alguma razão há algum tempo estou errando a previsão; eu e o mundo. Aquecimento global?

Provavelmente fiquei muito esperto com ventos, tipos de nuvens, cheiros de ozônio e outros detalhes porque molhar-se numa bicicleta tem seu lado chato. Se você tem que enfrentar a chuva é bom preparar-se, da bicicleta, à vestimenta, e principalmente o espírito. Este último é a princípio o mais complicado, mas depois será o mais prazeroso.

Quando pequenos em dias de chuva nos guardávamos para ouvir música e ler juntos. Foram tardes maravilhosas. Mas não nos furtávamos de ir à praia ou jogar futebol. Um bom banho quente, roupa seca, um leite quente com o carinho e preocupação da mãe, e tudo ficava bem. Saber estabilizar a temperatura do corpo é o segredo. Calor é fundamental, mesmo molhado. Saber ler sua condição momentânea e ter um corpo adaptado a condições adversas é a receita para ser saudável. De bicicleta não é diferente.

Qualquer que seja a chuva você terá que pedalar numa velocidade compatível com a segurança e com o não molhar-se mais ainda. Girou rápido e as rodas vão espirar uma água suja que mancha quase que irremediavelmente a roupa. Quanto mais rápido for, maior o spray, e nada escapa, da bainha da calça à gola da camisa. Ir devagar na chuva é sábio, para sua mãe não ralhar sobre a sujeira e até para não encharcar mais a própria bicicleta do que ela merece. É pela sujeira nas ruas que se mede o grau de cidade e cidadania e, infelizmente, a nossa é bem subdesenvolvida.

Chuva é natural

Quando você está num local úmido e chuvoso e todo mundo usa a bicicleta é que acaba descobrindo que dá para fazer. O povão não se acabrunha com a chuva e segue a pé ou nos pedais com guarda-chuva e ou capa de chuva e pertences guardados numa boa sacola. Chegam lá, onde quer que seja, e se recompõe. Faz parte da vida e nunca foi segredo. Povão tipo holandês, nórdicos, frances, alemão, destas localidades que ainda por cima pode nevar. Povão de “Ubachuva” ou Ubatuba, como queira, Caraguatatuba, São Sebastião, Ilha Bela, Paraty, Blumenau, Joinville, e de todas localidades tropicais obviamente sujeitas a chuvas e tempestades.

Viver as intempéries deveria fazer parte de nossa vida biológica, ou seja, natural. Redoma de proteção costuma não dar bons resultados psicológicos, clínicos, sociais e principalmente ambientais. Como é bom viver a vida! Nós, brasileiros, classe média de todos níveis de país emergente (ou submergente, como queiram), vemos a vida a cada dia mais a partir do status de um bom carro afrescalhado (ou embaça). Sai de casa; de carro para o shopping sequinho e lá não se vê o como está o universo lá fora. Tudo protegidinho, perfeitinho, bonitinho, agradável, confortável, climatizado. Quanto mais entramos neste círculo, menos contato temos com a realidade da qual irremediavelmente não temos escapatória.

A verdade é que não temos neste país bicicleta e acessórios que tenham qualidade para enfrentar nosso clima tropical e equatorial. O que há de bicicleta de transporte é muito ruim até no seco. São pesadas, freiam mal, enferrujam, os paralamas são curtos e espiram água, as manoplas escorregam, o selim encharca... É muito difícil encontrar no mercado capas apropriadas para pedalar. Por este lado é muito provável que o carro seja mais prático.

As velhas holandesas, as senhoras e suas bicicletas, também chamadas de velhas holandesas, dispõe de equipamento adequado. Talvez não só pela questão da água, mas por causa da neve. As bicicletas ou não tem marchas, ou tem câmbio interno, são projetadas e fabricadas para agüentarem mal tempo e serem usadas por quem precisa chegar ao destino relativamente limpos e secos. Tudo está disponível numa bicicletaria ou num mercado próximo. O sistema vê a bicicleta não como lazer para dias de sol, mas como um modo de transporte. O carro continua sendo mais seco, mas a bicicleta ganha pontos porque passa a ser mais inteligente.

Como é que se pára esta coisa?

Um dia dei de cara com uma bicicleta inglesa nova para a época, 1990, e ela vinha com um pequeno selo redondo de advertência sobre o tubo superior. Dizia mais ou menos assim: “Tome cuidado em caso de chuva porque a bicicleta demora a parar”. Provavelmente hoje eu faria alguma relação com aquela placa de aviso imbecil que todo elevador de São Paulo é obrigado a ter: “Antes de entrar neste elevador certifique-se que o mesmo encontra-se parado neste andar”. Conhecendo bem das estatísticas sobre acidentes com bicicletas sei que os ingleses têm lá sua razão; afinal, tem muito freio que molhou dançou. Mesmo assim é idiota; só não sabe disto quem não sai na chuva para se molhar.

Lembro claramente da primeira vez que peguei uma chuva forte pedalando. Era uma Caloi SS3 que já freava mal no seco. Depois de uns minutos de aguaceiro tive que frear, apertei os manetes até o talo e ela seguiu reto como se nada houvesse acontecido. Divertidamente apavorante. Alguém do além segurou as pontas e felizmente não aconteceu nada. Que paciência ou senso de humor o Pessoal lá de cima tem.

Desde muito criança sabia que em piso molhado qualquer movimento brusco significa chão. Pior é quando há folhas e flores no paralelepípedo; que é chão praticamente inevitável. Numa destas cai tão forte sobre a bacia e a dor foi tão lacerante que pensei ter quebrado a cabeça do fêmur. Das piores experiências de toda minha vida. Pior até quando depois de uma chuva saímos para pedalar, eu e Renata Falzoni, e ao pular um obstáculo o pé escapou do pedal, cai sobre o selim, que cedeu, enchi as bolas no tubo superior, ainda tentei equilibrar com os pés arrastando no chão, mas a frente da bicicleta escorregou em folhas molhadas e finalmente terminei chapando de frente o tronco de uma árvore. Renata caiu na gargalhada e até hoje ri muito da história. Meu saco ficou lindo, parecido com uma laranja podre, e minhas férias acabaram. Dói!

Molhou tudo

Chamou a atenção, já numa das primeiras leituras da Bicycling, a recomendação para que em locais com tempo instável um ciclista previdente sempre saísse de casa com seus pertences embrulhados em sacos plásticos. É óbvio e funciona perfeitamente. Na época desta “incrível descoberta” eu já havia tido que pôr para secar minha carteira e documentos, e tirar muita ferrugem do chato e pesado conjunto de ferramentas que sempre carregava comigo. Molhava ou por causa da chuva ou de meu próprio suor.

No domingo Luiz foi pedalar debaixo do aguaceiro. No dia seguinte falou sobre a aventura, que não é nada seu estilo, mas que foi encarado com certa galhardia. Só reclamou do estado que havia ficado tudo que ele portava então.

“Saco plástico, meu caro; saco plástico! Os malditos saquinhos de supermercado estão contaminando o planeta, mas se bem dobrados e usados com sabedoria prestam grande serviço. Com eles você não teria molhado suas coisas. Se não tivesse chovido poderia passar no mercado e levar suas comprinhas sem usar um saco novo. Ou daria para ser gentil com a moça bonita e catar a caquinha do cachorrinho – em troca do telefone do bichinho... Tá vendo as vantagens da sacolinha de supermercado”

Mas e a bicicleta? “Tomou chuva, vira de ponta cabeça e deixa vazar toda água. Assim que puder não deixa de sair para dar uma voltinha coma bicicleta, o que faz toda diferença para o bem estar dos eixos e da própria corrente. Vê se a corrente precisa de uma lubrificada. É muito deixar a bicicleta parada”.

Mas e as roupas molhadas? O ideal é lavar tudo logo depois que chega em casa, mas se isto não for possível deixa ela pendurada num cabide para secar. Os tênis ou sapatos vão secar mais rápidos com jornal por dentro. Deixa o jornal absorver a águia e troca por um seco.

Dá para chegar seco

É lógico que o carro é muito mais agradável na chuva que uma bicicleta. Mas quem não sai para a chuva não consegue entender que há garoas, chuvas e tempestades, e com suas devidas variações de intensidade. Não queira passar pela experiência de pegar uma tempestade numa bicicleta, por melhor que seja todo seu equipamento, porque você sairá completamente ensopado. Estar pedalando no meio de uma chuva de gelo pode ser doloroso. Chuva com muito vento é impossível. Nestas situações um carro é muito bom, mesmo assim pode ser dispensável. Basta esperar a intempérie passar. Basta reprogramar a sua jornada, sua agenda, sua vida, o que é possível e aprazível.

Pedalar no molhado, na chuva, vai ser vantajoso e até mesmo divertido em condições amenas, com equipamento apropriado e com espírito aberto. Seco, completamente seco provavelmente você não chegará. Por mais fina que seja a garoa o seu sapato sempre acabará úmido, mas que importa? Sentir que você está vivo e faz parte da natureza é mais que maravilhoso, é preciso.

sábado, 14 de novembro de 2009

Morre!


Entramos, eu e João Lara, então responsável pela Rádio Eldorado, no elevador. Encostamos nossos corpos na parede do fundo, apertei o botão, fechou a porta e João, sem mudar seu olhar para frente, perguntou: “Eu ouvi você dizendo ‘mortoboy’ (na transmissão dos informes do Bike Repórter Eldorado FM)?”. Não respondi nada, continuei olhando para frente, mas com o canto da visão pude ver que com a pergunta João deixou escapar um sorriso quase impossível de controlar. A porta se abriu, eu saí para a direita, João para esquerda, e ouviu-se sonoras gargalhadas dos dois. A bronca do chefe estava dada e eu não voltaria a chamar os coitados de mortoboys. Assunto encerrado com classe. Foi um imenso prazer ter trabalhado para gente inteligente. Obrigado João e toda equipe da velha Eldorado.

Fazer humor negro é o que nos resta. Entenda-se aqui o “negro” não como esta coisa (ridícula) do politicamente incorreto, que é patético, mas como algo ligado á crítica “non sense” com dose de inteligência e humor funesto. Politicamente incorreto cerceia a liberdade da inteligência, do bom humor que só o tem quem usa a massa cinzenta. Enfim, é triste. Politicamente incorreto é de uma violência incrível, mortal, das trevas.

Violência e motoboy, sinônimos? Os números, quaisquer que sejam, nos dizem que a vida de motoboy é violenta, que seu relacionamento com a sociedade é violento, infelizmente. Quantos morrem por ano em São Paulo, oficialmente aproximadamente uns 400? Quantos são atendidos por dia, uns 50, 70? Quantos conflitos de trânsito onde eles estão envolvidos não são relatados? Quem já não soube de uma história de alguém que tenha tido seu espelho retrovisor arrancado por um motoboy que levante a mão. Eles prestam um serviço vital para todos nós, mas a que preço? Como aceitamos este tipo de situação? Como aceitamos este tipo de situação, me diga? Incrível!

Da mesma forma que nossas casas são muradas à maneira medieval, motoboys são encastelados no seu senso de corpo. Sabem brigar pelo que consideram seu direito, lutam por um espaço social. São temidos. Aconteceu a algum deles um acidente ou entrevero e juntam-se e atacam o oponente como abelhas irracionalmente furiosas. Não tenho conhecimento se têm o mesmo comportamento para visitar e dar apoio aos que vão parar nos hospitais. Pelo que sei não. Ai abandonam seus pares às dores do acidente sofrido. Abandonam porque tem trabalhar, ganhar a miséria de cada dia, servirem de completos inocentes úteis para uma sociedade bárbara, estúpida, boçal, brutal propriamente dita. Sociedade que se sente vítima no trânsito, que urra a urgência dos motoboys, e que reclama dos custos que os conseqüentes acidentes geram. E ainda deixa escapar “Morre, maldito!”. Lutar para mudar a situação é outra história, dá trabalho, então a atitude cidadã se restringe às conversas e más falas.

“O cara está desinformado pela informação” diz meu caro visinho Carlos Clémem no cafézinho que acabamos de tomar. Brilhante! A verdade é que estamos todos desinformados, não queremos ser informados. Ou a coisa é tão violenta que não temos condição de agüentar a informação correta, a verdade. O desequilíbrio geral é tão grande que nos resta a fuga da realidade. O valor da vida é nada.

Faz muito que venho dizendo que os ciclistas serão os futuros “mortoboys” de São Paulo. Agora já começa a aparecer um e outro dentro da coisa pública, inclusive e principalmente dentro da CET, que diz os números apontam que teremos de fato a violência dos motoboys duplicada com os ciclistas. Ou pior. Proporcionalmente já deve estar elas por elas, o que falta é igualar o número bruto. Há 83 ciclistas mortos / ano contra aproximados 400 motoboys / ano. Mas quem se importa. Motoboy é um morto que já não conta mais porque virou carne de vaca. Ciclista provavelmente também não contará porque é tudo pobre e pobre morto não conta. Politicamente incorreto? Desculpe, mas politicamente corretíssimo! “O cara está desinformado pela informação” Carro é que vale.

Entrou no jogo é para jogar, não para choramingar. “Se tem que morrer, pelo menos morra com classe!” O que preocupa é que cresce a cada dia o número de ciclistas que acha que a postura dos motoboys está absolutamente correta e é eficaz para transformar a sociedade. Para eles o ciclista é um coitado cheio de direitos, a única saída está em agredir todos motoristas, chutar espelhos retrovisores ou portas. “São todos uns assassinos”. Não é fantástico seguir os bons exemplos? Qual será? Dos motoboys, MST, ou dos discursos do grande pai protetor dos pobres e oprimidos? Se eles podem, nós ciclistas também podemos.

Sei que é difícil discutir a realidade com sensatez, principalmente no país do futebol, carnaval e coitados. Em Guaianazes, no meio de uma palestra, um pai ciclista que leva seu filho todo dia para escola contou sobre duas mortes ocorridas e afirmou que é necessário punir os responsáveis, ou seja, os motoristas. Eu disse “Não tenho piedade de ciclista e é necessário punir o responsável, quem quer que seja. Ver o ciclista como coitadinho só piora as coisas”. Ele ficou bravo, disse que trabalhava com direitos humanos, mas depois de um boa conversa parece ter concordado comigo. Uma boa conversa sempre dá bons resultados, mas há a cada dia mais gente procurando evitar boas conversas, mas resolver as coisas na porrada. Exemplos é que não faltam, começando pelo MST e terminando na fúria dos alunos da UNIBAN São Bernardo.

Andei buscando o texto que usei numa de minhas primeiras palestras, dada para a ANTP no extinto Hotel Hilton da avenida Ipiranga. Abri minha fala com uma frase que não me sai da cabeça: “O que vocês pensam que o ciclista pensa sobre o que vocês pensam sobre os ciclistas?” A pergunta foi feita para uma platéia cheia de técnicos e especialistas em bicicleta, segurança no trânsito e ciclistas. Foi um branco total na platéia. Fiz uma breve e macabra pausa e bombardeei com a verdade (para os ciclistas de então, lá por 2000): “Deixa morrer! É tudo pobre, não faz diferença. Deixa morrer!”. Aquela minha palestra seguia atacando todo o setor, do pessoal que desprezava a bicicleta e o ciclista, à ausência de responsabilidade dos fabricantes e dos próprios ciclistas. Infelizmente passados tantos anos seguimos no mesmo barco. Aliás, talvez o país tenha se perdido mais ainda. “Os caras estão desinformados pela informação”. Viva tudo o que não foi realizado e salve os novos mortos. Haloween!

Meu avô, Fernando de Azevedo, vivia dizendo que a solução para certos casos é “paredão” (pelotão de fuzilamento). Um dia, numa reunião do Movimento Nossa São Paulo, fiz humor negro dizendo que seria um grande programa de domingo. Teve gente, principalmente a menina que estava ao meu lado, que ficou furiosa. A história diz que não funciona, mas que dá vontade, isto dá. Morre maldito! Não é uma solução fácil. Mas não são malditos, mesmo que sejam de fato, porque tem lá suas razões, mesmo que sejam totalmente insensatas. E o melhor que há é procurar entender a burrice e fazê-la ter algum valor social. Presunto gera ódio, que gera violência, que nos fazer permanecer nesta situação ridícula que temos como sociedade.

Acreditar em besteira é o maior perigo, mas não se preocupem: “o cara está desinformado pela informação”. Nós não somos um país de coitadinhos. Só seremos se aceitarmos nos fazer de coitados.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Cadê a Ciclo Faixa?

Neste domingo passado, 08 de novembro de 2009, de tempo virado e céu de poucos amigos, fui para os lados do Parque do Ibirapuera, passei por dentro dele, fiz meu caminho sossegado no sentido do Parque das Bicicletas pelo Jardim Luzitânia e na rua que desce para o Clube Monte Líbano, já quase esquina com a av. República do Líbano, vi que praticamente não passava ciclista algum na Ciclo Faixa de Domingo. Mais perto e..., ops...., não há ciclo faixa. “Ops..., opssss!!!! Porra, tem ciclista circulando na esquerda da avenida sem os cones e os carros estão circulando a 70 km/h, alguns deles invadindo a ciclo faixa cuja pintura já começa a desaparecer. Uau! que loucura!”

Dobrei à direita na República do Líbano, no sentido de volta para o Ibirapuera, fui pedalando á direita da via e ai vi o tamanho da completa insanidade. Passam por mim jovens, um que quer sair do meio da avenida e não consegue, outro que pedala certo que está tranquilíssimo e protegido pela tênue linha vermelha; e mais a frente uma família com seu filho adolescente sendo barbeado pelos carros que passam voando a sua direita. Infelizmente não filmei ou fotografei a cara de desespero do agente da CET. Sua expressão era de quem rezava sem parar para aquela loucura terminar logo e ele poder voltar para casa sem presenciar uma presuntada qualquer. Comparti seu desespero e horror, mas fui covarde e fugi do local em desespero.

Houvera uma competição antes, cedo pela manha, e a CET decidira não montar a estrutura da Ciclo Faixa de Domingo. Simples. O cidadão comum ciclista de fim de semana que se foda! E que se fodam Secretários. Aliás, provavelmente que se foda o Prefeito também. A população não motorizada que se exploda - quanto a isto parece não haver novidades! Vai que ver que eles têm cacife para pensar assim, ou agir assim, ou pensar, agir e vai lá saber se delicadamente não deixaram todos subentender a verdade. Eu só posso entender desta forma. Ou estarei errado? A única coisa que sei e estou farto de afirmar é que eles têm poder político e legal para fazer o que bem entenderem, porque acho absolutamente impossível somar os pontinhos de minha experiência e ter resultado diferente.

O fato é que tem muita gente furiosa com a brincadeira. Parece que nos Twiters da vida, que eu não sigo, há mal humor generalizado. Desculpe, é ou não é brincadeira? Não? Então, desculpe de novo, eu não entendi nada. Não me digam que não avisei!

Eu fico triste com todos, da CET e principalmente com os inocentes úteis. E fica a frase muito bem sacada, que não é minha: “Os piores inimigos da bicicleta é o pessoal de ponta da bicicleta”. Como dizem estes: “Arturo é louco”. Infelizmente a cada dia faz mais sentido. “Pelo menos fez algo” me dá arrepios. Louco posso até ser, mas não sou burro.

Erro grosseiro

Colocar o material do site no ar não é simples, principalmente para quem não corre nas veias a técnica e facilidade que um jornalista tem para finalizar textos. Qualquer texto que vá para o site passa por um parto que demora no mínimo alguns dias. Primeiro pensa, daí escrivinha uma diretriz num pedaço de papel, joga no computador, faz a primeira revisão, que normalmente mostra erros crassos, faz a segunda revisão, com um pouco de sorte a coisa está resolvida por ai. Se não, deixa quieto uns dias, revê mais uma vez e finalmente manda para a revisão do português e só então sobre para o site.
Repensar o que você já escreveu inúmeras vezes é um pouco mais complicado porque os vícios fazem com que as mãos sempre caiam nas mesmas seqüências de letras, palavras, frases e pensamentos; mesmo que o que você queria escrever não tivesse nada a ver com o que acabou saindo. O óbvio sempre está grudado no nosso nariz e não o conseguimos enxergar. Repensar aqui não é escrever com outras palavras, mas transformar a idéia em algo mais apropriado, corrigindo os velhos erros. Quando a idéia implícita no texto já está vendida para sua própria alma há tempo os erros da leitura deste novo texto simplesmente são ajustados pelo celebro e o resultado da pretensa nova idéia escrita em novas palavras costuma continuar igual ao que era antes. Mudam a idéia, seguem as mesmas palavras.

Não vou dizer onde está, mas colocamos no ar um novo texto que deveria ser a releitura de velhos conceitos. Velhos, mas mais que nunca próprios. Mas da forma como estavam expostos havia, além de anacronismos, erros de venda do conceito em si. O óbvio sempre atrapalha porque é tão óbvio que o outro tem que entender automaticamente o que você não expressou verbalmente. Ninguém enxerga o letreiro passando dentro do seu celebro.

Feitos todos processos, revisões, correções, etc... e tais e quais, o material novo subiu para o site e quando abri para ver como havia ficado tive uma luz. Obrigado ao pessoal lá de Cima. Fizeram o mesmo que quando eu já tinha metade do meu livro de contos pronto, mas com mais bondade com minha estupidez. No caso do livro Eles (desculpem eu dedurar ou me eximir de minha própria culpa), provavelmente com sabedoria, simplesmente torraram o computador e tudo que havia dentro. O livro devia ser uma vergonha, mas Eles poderiam ser piedosos e pelo menos deixar o computador recuperável. Desta vez fizeram diferente: me induziram a abrir o texto e sentir-me uma besta. Paguei meus pecados com dor na consciência. Pior que ajoelhar em milho.

Minha melhor qualidade é pensar horizontal e ter grande dificuldade de pensar vertical. Com a maturidade estou aprendendo, a duras penas, a separar o joio do trigo, a farinha do pão, a padaria do cliente. Não sei se esta minha característica é coisa pessoal, se foi formação de família, ou se é algo inerente ao país que vivemos. A bem da verdade os três juntos, mas minha imaturidade ainda não me dá ferramentas para saber o que mais pesa na balança. Não tenho dúvida que a formação brasileira não faz o pensar racional e cartesiano, o que é uma pena.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A porta giratória no país dos bananas

O barulho é muito parecido com o de uma pedra que passa perto da orelha, mas a velocidade de aproximação e passagem foi surpreendente. Faz um “sszzZZUump!” e deixa um leve sopro. Demorei para entender que aquele homem que corria em minha direção tinha na mão uma arma automática das grandes e que havia disparado contra minha cabeça. Atrás dele vinha o segurança de uma agência Bamerindus com arma em punho. Matar para pegar uma bicicleta para fugir é ou não um pouco exagerado?
Parei a bicicleta na porta do Itaú da esquina da rua Augusta com Lorena, um dos pontos mais chiques e movimentados de São Paulo. Tranquei a bicicleta, fui para a porta giratória e os seguranças, que me olhavam de bicicleta desde o outro lado da rua, travaram a porta. “Por favor tire celular, chaves, moedas....” Votei para trás, tirei tudo o que tinha de metálico e tudo mais e voltei para a porta, girei a porta que de novo foi travada. Voltei novamente para trás e procurei o que faltava nos bolsos. Nada. Nova tentativa na porta e de novo a mesma coisa. Tirei a camisa, girei o corpo, levantei a bainha da calça e mostrei que não tinha nada no corpo. Porta travada. “O sistema de segurança diz que o senhor está carregando algo...” Tirei completamente a roupa, chacoalhei tudo e a porta se destravou. Talvez tenha sido a bicicleta porque na época não era coisa comum, mas vai saber...
Há uns dias transformaram a habitual agência Unibanco da av. Vital Brasil em Itaú e os seguranças de sempre deram as boas vindas travando a porta. Infelizmente não tenho dados sobre assaltos em bancos, mas duvido que uma porta giratória faça diferença sensata. O que estas portas dizem para todo cliente é que o banco Itaú considera que todo e qualquer cidadão que queira entrar em suas dependências é uma ameaça potencial. Pode-se fazer a leitura desta situação por outro ângulo: o maior banco do país age assim porque seus clientes aprovam. Cada um de nós aceita ser tratado como possível criminoso em nome da própria segurança. Não é genial?
Não precisa ser nem um pouco esperto para sacar que a forma que trabalhamos a questão da segurança literalmente não funciona. Até um imbecil percebe que a coisa está cada dia mais quente, mas são poucos os cidadãos que querem discutir a coisas com seriedade e conhecimento de causa. Acreditar em besteira é o maior perigo e parece que estamos na besteira há algumas décadas e centenas de milhares de mortos, incapacitados, violentados e outros adjetivos mais. Ou serão substantivos?
Bala perdida? O que está perdida é toda a sociedade brasileira. Toda bala tem remetente e endereço certo. Há alguns anos os mais histéricos achavam ofensivo usar a expressão “república de banana” para criticar a situação de então. Imagine só, bons tempos aqueles a coisa tinha outros tons. Era uma baderna colorida, muito menos ofensiva e perigosa que esta de hoje. Pelo menos não tínhamos uma guerra civil correndo solta. Oficialmente é algo em torno de 45 mil mortes violentas / ano, número que poucos países ou regiões do mundo conseguem superar, incluindo ai a guerra do Iraque. Iraque aqui é de araque. Este número é oficial, portanto tem uma distorção porque só conta os que morrem no local e não conta quem morre depois no hospital, além de não incluir mortes no trânsito, que são mais 35 oficiais.
Pequeno delito plantado hoje será a erva daninha de amanha. Estamos colhendo as omissões e mentiras do passado, crenças medíocres, bobagens, asneiras, burrices.
Especialistas sobre segurança pública afirmam que ou há segurança para todos ou não há para ninguém. Aquela porta de segurança e outras coisinhas mágicas só servem para melhorar o bolso de uma minoria que ludibria quem quer ser ludibriado. Com todos estes sistemas juntos a coisa só piora para todos. Acreditar na carochinha é tão bom, não é? O sonho de uma mãe (real) de classe média é ganhar na mega sena para poder ter três carros importados: um para ela e o filho passearem e dois para os seguranças. Ela reflete o que uma imensa parcela da população pensa: “eu quero a minha segurança, o resto que se dane”.
Que país é este onde um homem chamado Tim Lopes, essencial jornalista para todos e cada um de nós, é colocado num “micro ondas” e torrado vivo? Ler a notícia hoje - http://www.timlopes.com.br/casotimlopesmobilizatodoopais.htm - e saber que absolutamente nada aconteceu provavelmente não faz nenhuma diferença. E João Hélio - http://oglobo.globo.com/rio/mat/2008/01/25/morte_do_menino_joao_helio_chocou_pais-328201790.asp, que diferença fez? Devo eu continuar? Quantos? Que diferença faz? A passeata pela paz promovida depois de João Hélio ter sido arrastado por 6 km por ruas de bairros levou ás ruas um punhado de pessoas e morreu ali. Como alguém tem coragem de resmungar perante as câmeras das TVs que a violência está descontrolada e que não pode viver mais assim? Aliás, para que derramar lágrimas momentâneas de pavor? Guarde suas lágrimas para algo mais interessante porque estas ironicamente parecem de crocodilo. Ou aja! Deixe ser banana.
Em Amsterdã são roubadas 150 mil bicicletas a cada ano. Sim, é isto mesmo. Mas não se assuste, eu escrevi “são roubadas” e não assaltadas, houve latrocínio ou outra expressão jurídica criminal sangrenta qualquer tão trivial por estas nossas paragens. Amsterdã é perigosa? Definitivamente não! O que não se pode é dar bobeira com a bicicleta. Igual em Nova Iorque, Paris, Londres, Barcelona e tantas outras maravilhosas capitais. A diferença aqui é que vêm quatro garotos e não se satisfazem em assaltar duas ciclistas e seu acompanhante. Fazem questão de espancá-los com brutalidade até deixá-los quase desacordados. Orgulham-se de sair do local com calma, conversando tranquilamente, certos de que o dever foi cumprido.
No Brasil não é permitido denunciar, cagüetar ou dedurar, como faz questão de dizer esta gente de boa fé que se diz muito preocupada com o social. Telhado de vidro é triste. Nossa desorientação é tamanha que não sabemos mais buscar o caminho da lei, do legal, do honesto, e principalmente do funcional para todos e para si próprio. Só dá resultado se é para todos e isto é social. Quem tem medo de denunciar o outro é porque tem rabo preso ou é covarde. Vale aqui fazer uma referência ao artigo de Dora Kramer no Estadão de sábado, 24 de Outubro. Leiam.
Se um motorista de ônibus erra, todos motoristas de ônibus sempre erram, todos serão sempre culpados, todos são criminosos, e as latarias de seus veículos, também veículos de trabalho, terão de ser chutadas. Mas que nos importa se um de nossos iguais age assim? Ele é um dos nossos iguais, portanto merece mercê. O fio da meada começa no trânsito e termina na nossa vergonha nacional de cada dia ou ao contrário. Começa ou termina na nossa pele. Depende se você ajuda a comprar a bala ou se tomou um tiro.
O cidadão que fica travado na porta de vidro do grande banco não pode ficar furioso com os funcionários, nem com os diretores. Ele tem que é que chegar em casa e olhar-se no espelho.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

De mão trocada


Por causa de um corte profundo em minha mão direita tive que ficar com ela imobilizada por uns 10 dias. A única solução foi começar a realizar com a canhota operações banais do dia a dia destro, como passar manteiga no pão, escovar os dentes, fazer a barba sem arrancar pedaços, acertar a chave na fechadura e girá-la, escrever, todas estas coisas bestas que simplesmente realizamos. Sem outra saída me coloquei a treinar para ser temporariamente canhoto. “É mole”. Definitivamente não. Trocou a mão dançou!
Só por brincadeira tente escrever seu próprio nome com mão trocada. Para a imensa maioria não sai nada além de garranchos ininteligíveis. Num grande almoço de família o pessoal começou com esta brincadeira competindo para ver quem escrevia um texto simples. Rimos muito de nossa própria incapacidade. Os que conseguiram deixar seu recado relativamente legível e alinhado se fizeram de reis. Fineza na coordenação motora é historicamente mérito social.
Para mim a experiência acabou se transformando em bem mais que uma brincadeira ou necessidade passageira. Começou como um simples ato de superação; tornou-se uma redescoberta, de revisão de quem fui e sou, uma viajem mágica na memória de minha própria infância que não imaginava mais poder fazer. Sou destro, mas sempre me entendi bem com os canhotos. Gosto de gente diferenciada, dos especiais. Canhoto é deferente não só pelo fato do fazer canhoto, mas porque cedo percebem que nasceram diferente, o que os induz a pensar e agir um pouco diferente, a buscar resultado no diferencial. o que os torna não mediano. A maioria dos que conheci tornou-se, de alguma forma, eficiente perante a vida.
Escrever ao contrário! Não deixa de ser isto porque o que você vai escrevendo acaba sendo escondido pela própria mão. Difícil! Que Até que minha letra saísse legível foi um bom tempo, esforço, paciência, dor na musculatura da mão, braço e principalmente ombro. Descobre-se muito sobre o próprio corpo. Parece ridículo, mas qualquer mudança na posição no funcionamento normal do corpo a coisa pode ficar bem complicada, até impossível. Pelo menos enquanto não se reaprende. É preciso muito treinamento para que haja fluidez do lápis ou caneta. É preciso acamar para não tratar a coisa na porrada, na força bruta. Não é como com a direita que em praticamente qualquer local, situação, ângulo ou superfície a coordenação motora é a mesma. Só um lado do corpo sabe trabalhar. O outro serve meio que de apoio, quando tanto.
Depois de uns dias de puros garranchos comecei a conseguir ter uma mão mais leve, e assim caprichar nas curvas, nas voltinhas, nos espaços, alinhamento. Acabei me sentindo como se houvesse voltado ao jardim da infância. Fui remetido para minha primeira chegada no jardim de infância, a sala de aula, o alfabeto com letras e figurinhas correspondentes às letras que ficava pendurada na parede, o giz branco na lousa verde escura com o “b - a, ba”, as primeiras aulas de caligrafia, a mão da professora segurando levemente a minha para ajudar nas formas, a minha inveja que sentia dos meninos e meninas que já tinham letra caprichadinha, que mereciam da professora “Muito bem! nota 100.” Um ano depois foi com grande emoção quando ganhei minha primeira caneta tinteiro, logicamente acompanhado de um tinteiro e uma aula sobre como carregar a caneta com a tinta sem borrar tudo em volta. E, não poderia faltar, um lindo mata borrão, coisa que vocês mais novos não fazem idéia do que seja e vou deixá-los na curiosidade. Posso dizer que funcionava maravilhosamente. Lembrei até de Madame Germain, a professora de francês que, anos mais trade, já no primeiro primário, ainda ensinava usando palmatória com uma régua de madeira. Quem errasse a pronúncia tinha que esticar a mão aberta para frente e tomava uma reguada dada com força, seguida da famosa bronca “Atencion!!”. A velhinha era apavorante - para a época. Mesmo depois de muitas notas baixas para caligrafia infelizmente minha letra continuou feia e seguiu até eu cortar fundo a mão. Santo corte!
É muito difícil controlar a mão, os movimentos, aprimorar as pernas do “p”, “q”, “b”. “g” é muito mais fácil porque é aberto. Fazer um “i” bem feito é complicado. Puxar a vogal depois de um “v” como em “polvo”, “válvula” e outros é um trabalho delicado, daqueles que, quando criança, colocamos a língua para fora e fazemos careta. O pior talvez seja “m” e “n” com as corcovas arredondadas e suas perninhas, não muito diferente de um “u” é coisa que só vem com o tempo. O “w” nem te conto. Gostaria muito de ter contado com uma professorinha, um caderno de caligrafia daqueles de três linhas, de ter recebido nota pela lição. Já venho a tempo querendo voltar a estudar e esta história só me deu mais coceira.
Depois de muito treino minha letra, mesmo sem perfeição, leveza e fluidez de movimentos, já tinha um forma relativamente bem definida, agradável, já exibia um compasso alinhado e uma lenta fluidez. Mais importante que isto: minha canhota se tornara mais legível que aquela letra que estragou tantos cadernos e papeis. Tenho ainda um longo caminho a percorrer e talvez nunca chegue a ter “letra de colégio de freira”, como dizíamos “no tempo da onça” sobre quem tem uma letra que se lê como se houve uma boa e suave música clássica. Escrever letras, palavras, frases, textos indubitável e maravilhosamente legíveis e agradáveis. Maravilha! Minha inveja da letra de colégio de freira não irá morrer e ser enterrada, mas sem sobra de dúvida agora ficará calminha num canto que não mais me incomodará.
Talvez uma das coisas que mais me tenham envergonhado na vida foi minha própria letra. Sempre foi indisciplinada, disforme, e não raro pouco legível. Eu até que me esforcei, de maneira errada e por praticamente toda a vida, para fazer daqueles garranchos algo artístico, alegre, simpático, agradável aos olhos, mas não houve jeito. O que nasceu para disforme sem boa forma e desagradável viverá. “Aquilo” jamais se tornaria algo agradável, legível, e jamais teria valor como desenho propriamente dito. Coisa ruim, proposta errada, de uma pretensão estúpida, grosseira. Ninguém se comunica com pretensão e sem respeitar boas regras. Comunicar-se bem depende de ter qualidade em seus gestos e ações. Uma boa letra, escrita de forma cuidadosa é meio caminho andado. O que será escrito é outro problema, depende somente da inteligência.
O bacana deste processo é que minha mão direita assimilou o aprendizado canhoto. Minha letra destra hoje me é agradável, o que me dá um imenso prazer. Gosto de pegar uma caneta e desenhar cuidadosamente cada letra, cada espaço, cada pingo nos “is”. O caderno no qual este texto foi escrito originalmente data de 1960 e até hoje nunca se acabou. É uma ótima medida da vergonha que sentia. Tem umas poucas páginas escritas com a velha e horrível letra. Agora voltou a me acompanhar e quando me dou conta estou desenhando textos.
Perdi a conta de quantas vezes quebrei ou lesei um músculo ou articulação. Agradeço a santa paciência de minha mãe e tias. E agradeço também a estas imobilizações a descoberta do lado esquerdo do meu próprio corpo. A primeira tentativa, relativamente bem sucedida, foi no futebol. Comecei a conseguir fazer alguns passes corretos, muito desengonçados, tristes de se ver, ótimo para os amigos rirem, mas bem funcionais. Quando me separei minha mãe me recomendou que fosse fazer dança. Até hoje sinto pena de Monica, santa professora. Foi ai que descobri o quanto minha coordenação motora era mal trabalhada. Dança-se na frente do espelho e ai não há como escapar de ver o quão travados somos, quão pouco nos conhecemos, nos usamos, nos aproveitamos. Trabalhar o corpo é encontrar a liberdade. Primeiro com a leitura, mais tarde com o mountain bike e com o contato com técnicos e ciclistas pró, confirmei que o caminho para uma pilotagem ou mesmo condução de uma bicicleta no trânsito passam pelo caminho estreito de disciplinar a coordenação motora. Desde a escolinha de pilotagem de kart do Waltinho Travaglini, que fiz aos 18 anos, a questão da disciplina me foi regra. Relaxar o corpo, diminuir a ansiedade, perceber e aprimorar cada um de seus movimentos, concentrar-se, e obter resultados. Procurar orientação, ouvir, avaliar, praticar, automatizar. Neste fim de semana, antes do GP Brasil, o Rubinho respondeu a um jornalista sobre “sorte”: “Algum piloto, ou o Jim Clark ou Jack Stuart, não sei bem, respondeu “que quando mais eu trabalho, mais sorte eu tenho”. Pedalar com segurança não é sorte, é trabalho. Reescreva seu pedal.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Zumbi e o cometa


Zumbi está sendo acariciado e dormindo como um anjo. É um pequeno poodle anão preto de uma beleza rara para a raça. Esguio, pernas compridas, tórax grande e pouca cintura, pescoço harmonioso; um corpo equilibrado. Inteligente, dócil e carinhoso, mas senhor de seu pedaço, e por isto tido como genioso. Seu pelo encaracolado é muito macio e dá um grande prazer ao passar suavemente meus dedos. Acariciado dorme mole como um filhote, como para cativar quem o aconchega. Mesmo com a TV ligada sempre olho para aquele lindo animal de corpo quente espichado junto a minha perna direita. Olho com o olhar de um pai e realmente me sinto como tal.
Na TV passa um documentário que aventa sobre qual seria hoje os efeitos de um possível impacto de um corpo celeste na Terra. Me fez lembrar de trechos do “Day after”, no qual a população é forçada a sair correndo de Nova Iorque para sobreviver ao impacto. A população desesperada engasgada no congestionamento da estrada vê pasma o cometa cruzando sobre suas cabeças em direção a cidade que nunca havia parado. Lembro claramente da cena, mas não consigo lembrar de alguém tentando salvar seu animal de estimação. Minha cabeça viaja sem barreiras sobre quem somos. Ambientalmente irresponsáveis. Sequer temos integridade moral, ponto de equilíbrio tão humano, com estes indefesos bichos que vivem em nossas casas e que tanto nos retornam em nossas necessidades humanas. Enquanto nos prestam serviços caseiros, como os escravos de outrora, valem. Uma grande quantidade deles é jogada nas estradas por seus donos quando estes vão para suas férias porque o preço para ter um animal de estimação num hotel é caro ou pode atrapalhar o merecido descanso, tão humanamente necessário.
Numa das vezes que fui levar alguém no aeroporto cruzou rápido na frente do carro um pincher desesperado. Cruzou todas 5 as faixas da marginal e chegou por milagre na barreira de concreto. Olhei pelo espelho e ele seguia correndo colado ao muro; desesperado com aquela loucura de carros em alta velocidade. Quase bati o carro. Quanto terá durado? Será meus Zumbi e seu parceiro Billy, deitado um pouco a frente dos meus pés, conseguiriam num golpe de sorte simplesmente cruzar uma tranqüila rua sem virar um monte de carne esmagada no asfalto? Conseguiriam achar um bom local para se abrigar? Como se arranjariam na luta pela comida? São pequenos, completamente dependentes e por isto frágeis, absolutamente frágeis.
Há um nível de saturação emocional que não conseguimos transpassar. Levamos a vida no que nos é suportável e nossas mentiras já não são mais biológicas. Não são blefes de sobrevivência, mas masturbações de vaidade e status. O humano é cancerígeno para a vida. Não é necessária a colisão de um corpo celeste para uma extinção em massa. Nós damos conta do recado. Provavelmente deixaríamos para trás tudo em nome da auto-preservação. A incrível capacidade de adaptação humana seria seu carrasco porque já o é. Se um dia nos dermos conta do nosso nível de barbárie atual provavelmente xingaremos os desafetos chamando-os de “humanos!”. “Humano! Que nojo!”
Aquela doce delicadeza adormecida ao meu lado que acaricio gera grande responsabilidade. Meus dedos passam lenta e levemente pela ternura dos pelos e sinto uma completa impotência sobre a minha responsabilidade com aquela frágil inocência. Zumbi é o reflexo do lhe ensinei, dos meus vícios que fiz com que ele também vivesse e dos quais ele é completamente dependente. Sou frágil, ele é frágil. Sou humano, ele é um animal doméstico, escravo de minha humanidade.
Sigo acariciando Zumbi. Meu olhar está focado, marejado, praticamente não vê nada perdido dentro de minha consciência. Sinto desprezo pelo que sou. Como seria uma fuga em massa? O que eu deveria fazer com estes dois pequenos cachorros? Como fazê-los sobreviver? Provavelmente os meus netos teriam ajuda de alguém, mas e eles, e todos os outros, cães, gatos, pássaros, hamsters...? Sinto uma dor tremenda de vergonha, desespero, impotência, inoperância. O que estamos fazendo com tudo em volta? Seguro Zumbi com cuidado e o trago até minha fase. Ele está mole e não reclama. Sinto seu cheiro. Há um leve toque do fedor dos canos de escapamento. Os pequenos são os que mais sofrem com o veneno que veículos motorizados soltam no ar. Meu neto chega em casa com o mesmo fedor. Procurar sair nos momentos de pouco movimento ou ir para onde o número de carros é menor já não faz mais efeito. Eles não precisem de um meteorito, basta passear na rua. Eles tem que fazer pipi e coco, cheirar outros cachorros, esticar as perninhas nervosas. Com coleira e no passo do dono.
Não tenho estomago para ouvir, pensar ou falar sobre nossa humanidade e seus efeitos contra a vida animal. O dia que mostraram um filme sobre a forma como matam gado para corte meu emocional entrou em colapso. Nunca mais consegui trabalhar com protecionismo. A luta pela proibição de pesca às baleias foi meu último e glorioso ato em nome da proteção da vida animal. Pensei lá com meus botões: “O que dá para fazer para trabalhar de outra forma, com um outro foco que não cause um estrago emocional tão brutal”. Surgiu a bicicleta.
Da ecologia para o meio ambiente.
Na Ponte Cidade Jardim o ciclista estava estendido no asfalto. Acabara de acontecer, só havia um homem em pé protegendo-o. Deitei a bicicleta no asfalto e me aproximei daquele rosto que olhava imóvel para o céu. Havia pouco sangue, mas o corpo estava completamente retorcido. Lentamente coloquei a mão em seu pescoço para ver a pulsação e não havia mais coração, nem respiração, mas ainda pude sentir a última vibração da energia da vida daquele homem. Uma espécie de pequena eletricidade entrou pela ponta de meus dedos, correu meu corpo e se foi. É uma sensação brutal. A vida ali acabou, ele partiu. Seu olho ficou opaco. Fiquei olhando sereno para ele e por muito tempo não me lembro de ter ouvido ou percebido a passagem de qualquer carro, ônibus ou moto por perto. Foi um silêncio completo, quieto, vácuo, sem mais. Olhei para frente e vi a ponte, o morro do outro lado do rio, o céu de final de tarde plenamente azul. Havia alguém atrás de mim, talvez o mesmo que guardava o corpo, não me lembro quem, mas sei que me levantei e disse calmamente “morreu”. Estranha a vida, mas bela por eu estar vivo. Subi na minha bicicleta e segui pedalando. Conversei com calma com meu médico e sei que senti a morte na ponta dos dedos. À noite deitei na cama e dormi. Humanos são humanos, vida é vida.

domingo, 11 de outubro de 2009

São Paulo, cidade ruim

Tenho grande dificuldade para compreender por que o paulistano não consegue transferir os ótimos exemplos aplicados para sua cidade. As classes mais altas viajam para fora e parece que não aprendem nada. O poder público tem o exemplo de Curitiba, referência internacional de qualidade urbana, que parece não existir ou ser de outro planeta. Há uma boa parcela da população que freqüenta o SESC, que é primoroso, o melhor exemplo possível, e que não é replicado. Eu gostaria muito de saber por que temos que conviver com uma cidade tão mal acabada, tão mal tratada, tão mal conservada, tão pouco respeitada, se a população tem excelentes referências? A frase “o que é comum não é de ninguém” vale mais que nunca. É desonesto culpar só um dos setores da sociedade. A cidade é de todos e o que se faz por ela é patético, se não deprimente.

Texto enviado para São Paulo Reclama

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Tara



Andava há tempos atrás de uma delas, uma necessidade, espécie de obsessão, se assim quiser entender. Fizera inúmeras cantadas, todas sem resultado. Numa delas quase perdi as estribeiras, mas parece que a dona morrerá agarrada a sua menina. Não lhe interessou eu afirmar que há duas décadas ela lá estava, empoeirada, encostada, e porque não dizer - desprezada. “Vai acabar virando tia” ainda brinquei e mais sério afirmei “Não sou tão mau assim, tão desprezível. Deixa comigo, vou tratar bem!”. Foi-se minha paciência e já não mais me interessa. Que bom uso faça a poeira e a ferrugem que do tempo há de vir, e também há de tomar a alma de sua dona. Vaidade, “recuerdos”, o que? Vai lá saber. Somos todos assim. Paciência. Caso encerrado. De volta para casa, só, desamparado.
Algumas beldades giram por ai e vez ou outra passam por perto, como para provocar e não se entregar. Estão com outros e seguem seus caminhos. Mal sabem elas como eu as trato delicadamente. Cheguei a ficar com raiva de um amigo quando depois de uma bobeira ela foi cair nos braços e pernas de outro e eu, de livre e espontânea vontade, fui devolver sua beldade em casa, limpa, cheirosa, deliciosa. Confesso antes também que dei umas voltinhas com ela, mas como a vida sempre faz com quem é muito sedento ela não é minha e ponto final.
Quando menos imaginamos acontece. Entro no parque correndo a pé e lá está uma gostosa, no meio de uns garotos. Linda, magricela, formas equilibradas, delicada, clássica, sóbria, pronta para ser socada por quem sabe como se deve fazer as coisas. Encostadas junto a ela no bebedouro estão duas vulgares, destas pagou levou que se encontra em qualquer ponto da cidade, basta ter um cartão de crédito ou dinheiro vivo. Passo correndo por ela deixando sem constrangimentos ou preocupação meu olhar indecente. Os garotos olham desconfiados. “É melhor continuar correndo”. Um pouco adiante entro no banheiro antes de seguir meus passos de tartaruga na corrida. Para ser bom é preciso estar em forma. E lá está um garoto, também vestido com roupas de ciclismo e aparentemente parte do grupo que guarda as meninas lá fora. “Provavelmente deve estar com uma das vulgares” penso, e puxo conversa.
- Que linda aquela menina que está encostada no bebedouro? Quem está com ela? O grandão?
- Não, ela é minha; diz ele sem o menor problema ou estranheza sobre a pergunta. Eu acho estranho porque a menina é muito alta para o moleque. Ele deve ficar pendurado nela. E comecei a pensar com meus botões que aquela situação tinha muitas variáveis estranhas e até não positivas para simplesmente dar certo. Mas como controlar esta ansiedade que me come, corrompe a alma e o bolso. Pervertido?
- Está a venda, continuou o garoto e a frase me deu um frio na espinha.
Meu Deus, eu que não costumo Citá-lo em vão e por coisas menores, peço ajuda. E ai, que faço? Do outro lado da linha, o Dele, silêncio completo. Porque Ele responderia a pequenas e idiotas questões de uma vida tão vulgar e apaixonada. Tirando minhas culpas e pensando bem, Ele provavelmente também deve gostar de lá suas voltinhas. Afinal, que bom homem não gosta delas? Com certeza deve estar dando bons olhos para esta história. Fiquei mais calmo e segui em frente. Afinal a vida é feita de prazeres. E o paraíso como fica? Em frente!
- Quanto? E a resposta dele com o preço veio rápida e certeira, assim como meu sim, que já estava preparado na garganta há muito. Não negociei, não tentei racionalizar, mais uma vez na vida fui movido pela pura paixão. Como diz o filósofo que sei lá quem era, provavelmente Vinícius de Moraes: “Sem tensão não há solução”. E então veio pela Internet a voz do Senhor e escreveu sem contornos “Vinícius foi uma boa tentativa, meu filho, mas na próxima vez seja um pouco mais letrado. Foi Roberto Freire, meu filho, Roberto Freire!”
Acertamos que eu pagaria imediatamente, uma boa e irresponsável quantidade de dinheiro por uma beleza que sequer eu havia olhado com mais calma, em quem não havia tocado, escorregado os dedos carinhosamente sobre sua superfície fina e lisa, com quem não havia saído para uma voltinha, não tinha ficado um segundo sequer. Nada. Puro impulso. Paixão a primeira vista, ímpeto doentio da emoção. “Idiota, descontrolado” culpei-me olhando os Céus.
Só depois de menos de uma hora, quando ela passou definitivamente para minhas mãos é que pude avaliar o tamanho da encrenca que havia me metido. Ela não andava em linha reta, estava um pouco capenga, puxava a esquerda como querendo cruzar a rua e entrar no primeiro bar para tomar um mé. Olhei bem para baixo, fechei um olho, e ficou claro que as pernas estavam tortas. A curva do guidão chacoalhava, solta; a corrente pulava. Os pneus e alinhamento das rodas nem dizer. Mesmo assim uns metros mais a frente minha experiência de navio escola fez minha felicidade florescer. Que romântico! “Meu bom Homem, tirei a sorte grande”; estava pedalando uma Fuji Del Rey, rodas 27, meio esportiva com guidão em curva, e mesmo com o olhar descuidado de todo a minha impulsividade ela estava original.
Cheguei em casa a noite e só no dia seguinte pude ver bem o que havia feito. O Homem lá em cima definitivamente gosta de bicicletas. “Ele” não tem tanta piedade assim com meu bolso, mas como Ele próprio diz “ajuda-te que ajudar-te-ei”. Definitivamente não podia ter gasto tanto com um prazer, mas o que fazer? Manter aquela beleza nas mãos de uma garotada que não faz idéia de como se deve tratar uma menina destas? Os dias seguintes foram de muito trabalho e novos prazeres. A Fuji estava praticamente toda inteira original. O nível de refinamento e detalhes da tradicional marca nipônica é impressionante. Todas as peças, mesmo as menores, têm o logo e nome Fuji estampado em baixo relevo. Todas as partes, mesmo as que estavam soltas ou desajustadas, depois de limpas voltaram a se ajustar praticamente com a mesma justeza de quando saíram de fábrica. O garfo desalinhado foi zerado cuidadosamente e a bicicleta quando voltou a rodar perfeitamente em linha reta. Aliás, que maravilha era esta geração de bicicletas. Tubos Ishivata tem uma resiliência fantástica. Não consegui descobrir o ano correto de fabricação, mas pelas peças foi possível avaliar que deve ter sido lá por 1982. Maravilhosa.
Como posso eu controlar meus ímpetos de paixão? A brincadeira custou o que os meus ganhos não podem arcar tão facilmente. Mas deito a cabeça no travesseiro e sei que hoje ela está guardada no Museu das Bicicletas como história, o que realmente ela é.

terça-feira, 6 de outubro de 2009



São Paulo, 06 de Outubro de 2009
Excelentíssimo Senhor Governador do Estado de São Paulo, José Serra
O senhor tomou a frente e foi o primeiro candidato à Presidência da República Federativa do Brasil a falar em rede nacional de comunicação, TV e rádio, sobre a questão da bicicleta e a necessidade de tratar a questão com seriedade. E agradecemos. Mas pedimos mais.
Tendo em vista as várias melhorias que estão sendo implementadas no sistema de transporte de São Paulo que devem ter reflexos, a médio e longo prazo, na necessidade de uso de espaço das marginais Tiete e Pinheiros, a constante busca na melhoria da qualidade das águas destes rios, e ainda aproveitando o esforço para a criação da Ciclovia Pinheiros e da ciclovia relacionada ao Parque Ecológico do Tiete:
Venho por meio desta pedir a Vossa Excelência, José Serra, Governador do Estado de São Paulo, que faça anuncio oficial definindo data para devolução da faixa esquerda de rodagem de ambas marginais, as lindeiras às águas, aos seus sofridos proprietários, rios Pinheiros e Tiete, à população de São Paulo, e à vida.
Pinheiros e Tiete merecem de volta o que é deles.
São Paulo agradece.

Arturo Alcorta
Escola de Bicicleta
http://www.escoladebicicleta.com.br/

terça-feira, 22 de setembro de 2009

22 de Setembro de 2009


Quem sou eu?
Quem é você?
Quem é cada um de nós?
O que é nossa cidade?

Hoje é o Dia Mundial sem Carro, ou o “22 de Setembro” como chamam os mais íntimos. Mas o que é isto? Como chegamos a esta situação?
A primeira vez que ouvi, ou li, já não me lembro mais, que o primeiro rodízio da história aconteceu na Roma antiga, comecei a dar risada de minha falta de cultura e arrogância típica de um homem comum do século XXI. Bem que meu irmão, Murillo, sempre diz que a maior besteira que fazemos é acreditar que somos inovadores, modernos, que tudo são novidades. Agrupamentos humanos em vilas, cidades é coisa milenar, mesmo nesta escala maluca e desordenada que temos hoje nas metrópoles. A diferença é a quantidade.
Normalmente as coisas são anteriores do que cremos. Nossa modernidade não costuma ser tão moderna assim. O FAX foi patenteado em 1843, mas fora inventado e testado muito antes. A invenção da TV foi no começo dos anos 1900 e passou a operar ao público em 1933 (BBC) na Inglaterra. A primeira calculadora automática, mecânica ainda, é muito anterior a 1840, quando passou a ser produzida em série e vendida a público. Isto para só citar “as coisa” que acabaram construindo o nosso moderníssimo computador e todas as novidades que vivemos hoje. Acreditamos que nunca antes uma sociedade haja vivido coisa igual. “Besteiras” diz meu irmão que está trabalhando para fazer um paralelo entre a época das ferrovias e a atual da informática. E há um paralelo, tenham certeza disto. Mudaram os detalhes, mas continuamos humanos.
A ironia de se ter um dia mundial sem carro é a volta no círculo que sempre fizemos e fazemos – e que certamente ainda faremos. O que nos diferencia do passado é a velocidade com que as transformações estão acontecendo, mas daí dizer que tudo é completamente novo é acreditar numa onipotência boba. Somos humanos e a vida é cíclica, nada mais que isto. Pode ter cores diferentes, mas o tema final é o mesmo, afinal somos seres biológicos, animais, vivendo num ecosistema delicado, etc... O resto é resto
Já passamos por uma série de fases na história do transporte: a pé, arrastando coisas, a roda, a carroça, o trem, o automóvel, o caos. Não é assim que conta a história da humanidade? De repente, neste relato escolar sobre a história, o pedestre desapareceu, a bicicleta não existe, vem a era do automóvel e o resto vira resto. O foco é único. Praticamente ninguém fala sobre a cidade onde o automóvel se circula, na vida que se desloca com o automóvel, ninguém fala sobre a vida que está ai e faz o trânsito. O tema é o automóvel e ponto. Ou agora está mudando o foco e se pretende que será o pedestre, a bicicleta, o transporte coletivo. E a cidade?
Somos todos humanos e a coisa se repete, gira em círculos. Nós nascemos, vivemos e morremos. E outros vão nascer, viver e morrer. É a vida. Passamos por ela tendo curiosidade, aprendendo, fazendo tentativas, erros, acertos, e caindo no que chamamos de maturidade. O que geramos tem a nossa cara. Uma cidade é o que seus habitantes a construíram e a fazem. Como nós a cidade nasce, vira bebê, criança, passa pela transformação tumultuada da puberdade, adolescência, chega à maturidade, à andropausa ou menopausa, velhice, a rabugice e a demência senil. Todas as fases da vida podem ter uma boa ou má qualidade de vida. Depende de como é tratada.
Então pergunto:
· em que fase está a vida urbana brasileira?
· em que fase está o cidadão brasileiro?
· em que fase estão os que são responsáveis pela formação do que está ai?
E puxando a conversa para os que são diretamente responsáveis pelo que está acontecendo hoje em nossas cidades, os “pais” desta história, continuo nas perguntas:
· quem é a cidade brasileira?
· somos bons pais?
· fomos bons pais?
· a cidade de hoje tem que cara? Dos nossos sonhos ou pesadelos?
Ser pai, ou responsável, segue, mesmo com variações, um determinado roteiro: amor, responsabilidade, experiência, trabalhar com visão de longo prazo, ver crescer e deixar viver. Se bem feito o filho irá cuidar bem de nós na velhice e rabugice.
Nosso filho é sempre nossa cara, nosso espelho mais real. Ele reflete o mais profundo de nossa alma, sem vernizes. Se eles são felizes ou não, se vivem bem ou não, se são eficientes ou não, se tem futuro ou não, tem muito a ver com a forma que agimos no passado, na sua formação. A cidade de hoje é também e muito nossa responsabilidade. Quantos de nós conseguimos nos olhar no espelho e ver quem de fato somos? Basta olhar a cidade que temos.