Entramos, eu e João Lara, então responsável pela Rádio Eldorado, no elevador. Encostamos nossos corpos na parede do fundo, apertei o botão, fechou a porta e João, sem mudar seu olhar para frente, perguntou: “Eu ouvi você dizendo ‘mortoboy’ (na transmissão dos informes do Bike Repórter Eldorado FM)?”. Não respondi nada, continuei olhando para frente, mas com o canto da visão pude ver que com a pergunta João deixou escapar um sorriso quase impossível de controlar. A porta se abriu, eu saí para a direita, João para esquerda, e ouviu-se sonoras gargalhadas dos dois. A bronca do chefe estava dada e eu não voltaria a chamar os coitados de mortoboys. Assunto encerrado com classe. Foi um imenso prazer ter trabalhado para gente inteligente. Obrigado João e toda equipe da velha Eldorado.
Fazer humor negro é o que nos resta. Entenda-se aqui o “negro” não como esta coisa (ridícula) do politicamente incorreto, que é patético, mas como algo ligado á crítica “non sense” com dose de inteligência e humor funesto. Politicamente incorreto cerceia a liberdade da inteligência, do bom humor que só o tem quem usa a massa cinzenta. Enfim, é triste. Politicamente incorreto é de uma violência incrível, mortal, das trevas.
Violência e motoboy, sinônimos? Os números, quaisquer que sejam, nos dizem que a vida de motoboy é violenta, que seu relacionamento com a sociedade é violento, infelizmente. Quantos morrem por ano em São Paulo, oficialmente aproximadamente uns 400? Quantos são atendidos por dia, uns 50, 70? Quantos conflitos de trânsito onde eles estão envolvidos não são relatados? Quem já não soube de uma história de alguém que tenha tido seu espelho retrovisor arrancado por um motoboy que levante a mão. Eles prestam um serviço vital para todos nós, mas a que preço? Como aceitamos este tipo de situação? Como aceitamos este tipo de situação, me diga? Incrível!
Da mesma forma que nossas casas são muradas à maneira medieval, motoboys são encastelados no seu senso de corpo. Sabem brigar pelo que consideram seu direito, lutam por um espaço social. São temidos. Aconteceu a algum deles um acidente ou entrevero e juntam-se e atacam o oponente como abelhas irracionalmente furiosas. Não tenho conhecimento se têm o mesmo comportamento para visitar e dar apoio aos que vão parar nos hospitais. Pelo que sei não. Ai abandonam seus pares às dores do acidente sofrido. Abandonam porque tem trabalhar, ganhar a miséria de cada dia, servirem de completos inocentes úteis para uma sociedade bárbara, estúpida, boçal, brutal propriamente dita. Sociedade que se sente vítima no trânsito, que urra a urgência dos motoboys, e que reclama dos custos que os conseqüentes acidentes geram. E ainda deixa escapar “Morre, maldito!”. Lutar para mudar a situação é outra história, dá trabalho, então a atitude cidadã se restringe às conversas e más falas.
“O cara está desinformado pela informação” diz meu caro visinho Carlos Clémem no cafézinho que acabamos de tomar. Brilhante! A verdade é que estamos todos desinformados, não queremos ser informados. Ou a coisa é tão violenta que não temos condição de agüentar a informação correta, a verdade. O desequilíbrio geral é tão grande que nos resta a fuga da realidade. O valor da vida é nada.
Faz muito que venho dizendo que os ciclistas serão os futuros “mortoboys” de São Paulo. Agora já começa a aparecer um e outro dentro da coisa pública, inclusive e principalmente dentro da CET, que diz os números apontam que teremos de fato a violência dos motoboys duplicada com os ciclistas. Ou pior. Proporcionalmente já deve estar elas por elas, o que falta é igualar o número bruto. Há 83 ciclistas mortos / ano contra aproximados 400 motoboys / ano. Mas quem se importa. Motoboy é um morto que já não conta mais porque virou carne de vaca. Ciclista provavelmente também não contará porque é tudo pobre e pobre morto não conta. Politicamente incorreto? Desculpe, mas politicamente corretíssimo! “O cara está desinformado pela informação” Carro é que vale.
Entrou no jogo é para jogar, não para choramingar. “Se tem que morrer, pelo menos morra com classe!” O que preocupa é que cresce a cada dia o número de ciclistas que acha que a postura dos motoboys está absolutamente correta e é eficaz para transformar a sociedade. Para eles o ciclista é um coitado cheio de direitos, a única saída está em agredir todos motoristas, chutar espelhos retrovisores ou portas. “São todos uns assassinos”. Não é fantástico seguir os bons exemplos? Qual será? Dos motoboys, MST, ou dos discursos do grande pai protetor dos pobres e oprimidos? Se eles podem, nós ciclistas também podemos.
Sei que é difícil discutir a realidade com sensatez, principalmente no país do futebol, carnaval e coitados. Em Guaianazes, no meio de uma palestra, um pai ciclista que leva seu filho todo dia para escola contou sobre duas mortes ocorridas e afirmou que é necessário punir os responsáveis, ou seja, os motoristas. Eu disse “Não tenho piedade de ciclista e é necessário punir o responsável, quem quer que seja. Ver o ciclista como coitadinho só piora as coisas”. Ele ficou bravo, disse que trabalhava com direitos humanos, mas depois de um boa conversa parece ter concordado comigo. Uma boa conversa sempre dá bons resultados, mas há a cada dia mais gente procurando evitar boas conversas, mas resolver as coisas na porrada. Exemplos é que não faltam, começando pelo MST e terminando na fúria dos alunos da UNIBAN São Bernardo.
Andei buscando o texto que usei numa de minhas primeiras palestras, dada para a ANTP no extinto Hotel Hilton da avenida Ipiranga. Abri minha fala com uma frase que não me sai da cabeça: “O que vocês pensam que o ciclista pensa sobre o que vocês pensam sobre os ciclistas?” A pergunta foi feita para uma platéia cheia de técnicos e especialistas em bicicleta, segurança no trânsito e ciclistas. Foi um branco total na platéia. Fiz uma breve e macabra pausa e bombardeei com a verdade (para os ciclistas de então, lá por 2000): “Deixa morrer! É tudo pobre, não faz diferença. Deixa morrer!”. Aquela minha palestra seguia atacando todo o setor, do pessoal que desprezava a bicicleta e o ciclista, à ausência de responsabilidade dos fabricantes e dos próprios ciclistas. Infelizmente passados tantos anos seguimos no mesmo barco. Aliás, talvez o país tenha se perdido mais ainda. “Os caras estão desinformados pela informação”. Viva tudo o que não foi realizado e salve os novos mortos. Haloween!
Meu avô, Fernando de Azevedo, vivia dizendo que a solução para certos casos é “paredão” (pelotão de fuzilamento). Um dia, numa reunião do Movimento Nossa São Paulo, fiz humor negro dizendo que seria um grande programa de domingo. Teve gente, principalmente a menina que estava ao meu lado, que ficou furiosa. A história diz que não funciona, mas que dá vontade, isto dá. Morre maldito! Não é uma solução fácil. Mas não são malditos, mesmo que sejam de fato, porque tem lá suas razões, mesmo que sejam totalmente insensatas. E o melhor que há é procurar entender a burrice e fazê-la ter algum valor social. Presunto gera ódio, que gera violência, que nos fazer permanecer nesta situação ridícula que temos como sociedade.
Acreditar em besteira é o maior perigo, mas não se preocupem: “o cara está desinformado pela informação”. Nós não somos um país de coitadinhos. Só seremos se aceitarmos nos fazer de coitados.
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