Haja saco! Não sei como vamos lembrar esta estação das chuvas, mas seguramente para mim é a primeira vez que não sou capaz de prever o que irá acontecer dentro de uma hora. Uma das coisas que mais marcou no meu relacionamento com a bicicleta é que por causa dela aprendi a ver e sentir a natureza, a simplesmente olhar para o céu e determinar com certa precisão se chove ou não. Sem um teto para obstruir a visão é fácil olhar para o céu e saber de onde vêm as nuvens e em quanto tempo elas chegarão até você. Eminência de temporal também pode ser sentida pelo olfato livre de latarias ou vidros. Fácil. Pelo menos era assim. Por alguma razão há algum tempo estou errando a previsão; eu e o mundo. Aquecimento global?
Provavelmente fiquei muito esperto com ventos, tipos de nuvens, cheiros de ozônio e outros detalhes porque molhar-se numa bicicleta tem seu lado chato. Se você tem que enfrentar a chuva é bom preparar-se, da bicicleta, à vestimenta, e principalmente o espírito. Este último é a princípio o mais complicado, mas depois será o mais prazeroso.
Quando pequenos em dias de chuva nos guardávamos para ouvir música e ler juntos. Foram tardes maravilhosas. Mas não nos furtávamos de ir à praia ou jogar futebol. Um bom banho quente, roupa seca, um leite quente com o carinho e preocupação da mãe, e tudo ficava bem. Saber estabilizar a temperatura do corpo é o segredo. Calor é fundamental, mesmo molhado. Saber ler sua condição momentânea e ter um corpo adaptado a condições adversas é a receita para ser saudável. De bicicleta não é diferente.
Qualquer que seja a chuva você terá que pedalar numa velocidade compatível com a segurança e com o não molhar-se mais ainda. Girou rápido e as rodas vão espirar uma água suja que mancha quase que irremediavelmente a roupa. Quanto mais rápido for, maior o spray, e nada escapa, da bainha da calça à gola da camisa. Ir devagar na chuva é sábio, para sua mãe não ralhar sobre a sujeira e até para não encharcar mais a própria bicicleta do que ela merece. É pela sujeira nas ruas que se mede o grau de cidade e cidadania e, infelizmente, a nossa é bem subdesenvolvida.
Chuva é natural
Quando você está num local úmido e chuvoso e todo mundo usa a bicicleta é que acaba descobrindo que dá para fazer. O povão não se acabrunha com a chuva e segue a pé ou nos pedais com guarda-chuva e ou capa de chuva e pertences guardados numa boa sacola. Chegam lá, onde quer que seja, e se recompõe. Faz parte da vida e nunca foi segredo. Povão tipo holandês, nórdicos, frances, alemão, destas localidades que ainda por cima pode nevar. Povão de “Ubachuva” ou Ubatuba, como queira, Caraguatatuba, São Sebastião, Ilha Bela, Paraty, Blumenau, Joinville, e de todas localidades tropicais obviamente sujeitas a chuvas e tempestades.
Viver as intempéries deveria fazer parte de nossa vida biológica, ou seja, natural. Redoma de proteção costuma não dar bons resultados psicológicos, clínicos, sociais e principalmente ambientais. Como é bom viver a vida! Nós, brasileiros, classe média de todos níveis de país emergente (ou submergente, como queiram), vemos a vida a cada dia mais a partir do status de um bom carro afrescalhado (ou embaça). Sai de casa; de carro para o shopping sequinho e lá não se vê o como está o universo lá fora. Tudo protegidinho, perfeitinho, bonitinho, agradável, confortável, climatizado. Quanto mais entramos neste círculo, menos contato temos com a realidade da qual irremediavelmente não temos escapatória.
A verdade é que não temos neste país bicicleta e acessórios que tenham qualidade para enfrentar nosso clima tropical e equatorial. O que há de bicicleta de transporte é muito ruim até no seco. São pesadas, freiam mal, enferrujam, os paralamas são curtos e espiram água, as manoplas escorregam, o selim encharca... É muito difícil encontrar no mercado capas apropriadas para pedalar. Por este lado é muito provável que o carro seja mais prático.
As velhas holandesas, as senhoras e suas bicicletas, também chamadas de velhas holandesas, dispõe de equipamento adequado. Talvez não só pela questão da água, mas por causa da neve. As bicicletas ou não tem marchas, ou tem câmbio interno, são projetadas e fabricadas para agüentarem mal tempo e serem usadas por quem precisa chegar ao destino relativamente limpos e secos. Tudo está disponível numa bicicletaria ou num mercado próximo. O sistema vê a bicicleta não como lazer para dias de sol, mas como um modo de transporte. O carro continua sendo mais seco, mas a bicicleta ganha pontos porque passa a ser mais inteligente.
Como é que se pára esta coisa?
Um dia dei de cara com uma bicicleta inglesa nova para a época, 1990, e ela vinha com um pequeno selo redondo de advertência sobre o tubo superior. Dizia mais ou menos assim: “Tome cuidado em caso de chuva porque a bicicleta demora a parar”. Provavelmente hoje eu faria alguma relação com aquela placa de aviso imbecil que todo elevador de São Paulo é obrigado a ter: “Antes de entrar neste elevador certifique-se que o mesmo encontra-se parado neste andar”. Conhecendo bem das estatísticas sobre acidentes com bicicletas sei que os ingleses têm lá sua razão; afinal, tem muito freio que molhou dançou. Mesmo assim é idiota; só não sabe disto quem não sai na chuva para se molhar.
Lembro claramente da primeira vez que peguei uma chuva forte pedalando. Era uma Caloi SS3 que já freava mal no seco. Depois de uns minutos de aguaceiro tive que frear, apertei os manetes até o talo e ela seguiu reto como se nada houvesse acontecido. Divertidamente apavorante. Alguém do além segurou as pontas e felizmente não aconteceu nada. Que paciência ou senso de humor o Pessoal lá de cima tem.
Desde muito criança sabia que em piso molhado qualquer movimento brusco significa chão. Pior é quando há folhas e flores no paralelepípedo; que é chão praticamente inevitável. Numa destas cai tão forte sobre a bacia e a dor foi tão lacerante que pensei ter quebrado a cabeça do fêmur. Das piores experiências de toda minha vida. Pior até quando depois de uma chuva saímos para pedalar, eu e Renata Falzoni, e ao pular um obstáculo o pé escapou do pedal, cai sobre o selim, que cedeu, enchi as bolas no tubo superior, ainda tentei equilibrar com os pés arrastando no chão, mas a frente da bicicleta escorregou em folhas molhadas e finalmente terminei chapando de frente o tronco de uma árvore. Renata caiu na gargalhada e até hoje ri muito da história. Meu saco ficou lindo, parecido com uma laranja podre, e minhas férias acabaram. Dói!
Molhou tudo
Chamou a atenção, já numa das primeiras leituras da Bicycling, a recomendação para que em locais com tempo instável um ciclista previdente sempre saísse de casa com seus pertences embrulhados em sacos plásticos. É óbvio e funciona perfeitamente. Na época desta “incrível descoberta” eu já havia tido que pôr para secar minha carteira e documentos, e tirar muita ferrugem do chato e pesado conjunto de ferramentas que sempre carregava comigo. Molhava ou por causa da chuva ou de meu próprio suor.
No domingo Luiz foi pedalar debaixo do aguaceiro. No dia seguinte falou sobre a aventura, que não é nada seu estilo, mas que foi encarado com certa galhardia. Só reclamou do estado que havia ficado tudo que ele portava então.
“Saco plástico, meu caro; saco plástico! Os malditos saquinhos de supermercado estão contaminando o planeta, mas se bem dobrados e usados com sabedoria prestam grande serviço. Com eles você não teria molhado suas coisas. Se não tivesse chovido poderia passar no mercado e levar suas comprinhas sem usar um saco novo. Ou daria para ser gentil com a moça bonita e catar a caquinha do cachorrinho – em troca do telefone do bichinho... Tá vendo as vantagens da sacolinha de supermercado”
Mas e a bicicleta? “Tomou chuva, vira de ponta cabeça e deixa vazar toda água. Assim que puder não deixa de sair para dar uma voltinha coma bicicleta, o que faz toda diferença para o bem estar dos eixos e da própria corrente. Vê se a corrente precisa de uma lubrificada. É muito deixar a bicicleta parada”.
Mas e as roupas molhadas? O ideal é lavar tudo logo depois que chega em casa, mas se isto não for possível deixa ela pendurada num cabide para secar. Os tênis ou sapatos vão secar mais rápidos com jornal por dentro. Deixa o jornal absorver a águia e troca por um seco.
Dá para chegar seco
É lógico que o carro é muito mais agradável na chuva que uma bicicleta. Mas quem não sai para a chuva não consegue entender que há garoas, chuvas e tempestades, e com suas devidas variações de intensidade. Não queira passar pela experiência de pegar uma tempestade numa bicicleta, por melhor que seja todo seu equipamento, porque você sairá completamente ensopado. Estar pedalando no meio de uma chuva de gelo pode ser doloroso. Chuva com muito vento é impossível. Nestas situações um carro é muito bom, mesmo assim pode ser dispensável. Basta esperar a intempérie passar. Basta reprogramar a sua jornada, sua agenda, sua vida, o que é possível e aprazível.
Pedalar no molhado, na chuva, vai ser vantajoso e até mesmo divertido em condições amenas, com equipamento apropriado e com espírito aberto. Seco, completamente seco provavelmente você não chegará. Por mais fina que seja a garoa o seu sapato sempre acabará úmido, mas que importa? Sentir que você está vivo e faz parte da natureza é mais que maravilhoso, é preciso.
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