terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A bicicleta e a cidade

A cidade brasileira é, no geral, uma cidade com desenho urbano um tanto desorganizado, praticamente caótico, que vai crescendo do jeito que dá ou segundo os interesses de alguns, o que para o trânsito e a vida costuma ser ruim, mas para a bicicleta pode se transformar em  uma grande vantagem. Bicicleta é um veículo ótimo para curtas distâncias, até uns 4 km. É no interno de bairro que seu uso traz vantagens: ruas mais tranqüilas para circular, pedalar distante de veículos grandes e de trânsito de alta velocidade, maior segurança, rapidez para fazer pequenas compras, facilidade de estacionar, melhor qualidade ambiental, poder ver e falar com as pessoas que estão pelo caminho, silêncio, sentir cheiros, vento, temperatura, ver  com calma a paisagem...
Nas cidades grandes, com o trânsito cada dia mais saturado e lento, a bicicleta tem sido usada para grandes distâncias, mas esta não é sua real vocação. Pedalar como se fosse conduzir um veículo motorizado, por ruas movimentadas, avenidas e vias expressas, pode ser uma necessidade, mas não é seguro, nem muito agradável. A distância e o trajeto devem definir o modo de transporte. Bicicleta em avenida ou via expressa não casa. Na Europa, onde as cidades são bem pensadas, funcionais, racionais, o sistema de transporte funciona, vem crescendo a implantação de sistemas de bicicletas comunitárias, desenhados para trajetos menores que 30 minutos de pedal, uns 2.5 km, como aponta estudo realizado pelo Bicing de Barcelona. É lógico que lá também há ciclistas que preferem fazer longos trajetos, mas esta não é a regra. Quer ir longe, pára num bicicletário e pega o bonde, metro ou trem.

Uma vez por ano algumas grandes cidades brasileiras fazem seu “Desafio Intermodal”, onde num trajeto de uns 10 km, no caso de São Paulo, vários modos de transporte são comparados em sua eficiência no trânsito de hora de pico. Geralmente a bicicleta é mais rápida. A bem da verdade, ciclistas em ótima forma física e um tanto enlouquecidos correm feito desesperados para chegar na frente do resto; e chegam. Um ciclista normal, pedalando em velocidade normal, o que é algo em torno de 15 km/h, não chega tão rápido, mas chega com uma sensação de bem estar que os outros modos de transporte não proporcionam. Este é o real barato da bicicleta: sentir-se bem. Mas para chegar lá é necessário respeitar as características do veículo que se está usando. E, no caso da bicicleta, por dentro dos bairros sempre será mais agradável.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Mulheres brasileiras

A mulher loira e bem vestida está com a cara encostada no interfone do edifício. Conforme vou me aproximando percebo que a voz está um pouco alterada. “Você quer que eu tire uma foto?”, diz ela para o porteiro que a olha enfadonho de dentro de sua guarita de vidro. Quando estou passando por trás ela se volta para mim e pergunta “Você acha que não posso estacionar aqui? Acha que estou atrapalhando a entrada do edifício? Vou tirar uma foto para mostrar a ele”, termina apontando para o porteiro. É uma mulher já feita, lá pelos 40 anos, loira, corpo cheio e bem definido, bonita, vestida com calça e blusa beges de um tecido leve, delicado, algumas joias ou bijuterias, que combina com os cabelos soltos. Transparece ter tido berço, boa educação. Quer porque quer deixar seu carro ali, uma SUV preta, vidros escuros, grande, alta, espaçosa. Na rua não outra vaga. Ela se dirige para a traseira da SUV olhando nos meus olhos com raiva e apontando para o chão. A raiva dela não a deixa ver, mas boa parte da traseira da SUV está dentro da linha amarela que define o espaço de entrada e saída da garagem. “Você acha que está atrapalhando? Você acha que não dá para entrar e sair? Vou tirar uma foto”, repete irritada para mim. “Se fosse você, iria conseguir passar por ai? Iria conseguir manobrar o carro?”, respondo seguindo em frente para não dar trela. Percebo que ela para e olha para baixo em silêncio. Cruzo a rua e vejo a SUV saindo da vaga.
De imediato vi passar na minha testa um texto politicamente incorreto sobre o ocorrido. Voltei para casa, sentei na beira da cama, e como já estava com o computador fechado, anotei algumas coisas numa folha de papel. Lembrei de minha fase de sessões de terapia no ‘Café Belina’ do Shopping Iguatemi. Não havia nada melhor para mudar o humor. Começava pelo apelido do lugar, Café Belina, em homenagem àquela perua velha fabricada pela Ford, derivada do Corcel, aquele garanhão sobre rodas. Para ter terapia bastava pedir um café, sentar na mesa que dava de frente para quem subia pela escada rolante e se deliciar com os tipos, ou zoológico, como queira, que iam um a um subindo, surgindo e se mostrando ao mundo. Uma amiga muito divertida foi a criadora da terapia – grátis, diga-se de passagem. Fazia parte controlar riso ou gargalhada para não dar na cara e ofender. A diversão agora tem um gosto de ranço, principalmente no Shopping Iguatemi, que hoje, nestes dias de Brasil rico e desvairado, tem um perfil de casa de saúde mental suiça, com certeza a graça acabou. Antes acontecia de tudo, o zoológico era completo, todos tipos, gêneros, formas. Hoje é coisa fabricada, esnobação sem sentido, muito forçada, tipo BBB das ricas transmitida pela TV Bandeirantes. Não dá vontade sequer de ser politicamente incorreto porque é muito triste, sem graça, deprimente, verdadeiramente pobre, vulgar, medíocre. Mais que déjà vu.
Aquela mulher, que ao perceber seu erro enfiou o rabo entre as pernas e saiu de mansinho sem mais dizer. No final das contas faz parte das vítimas de todo azar de violências, das criminais às morais, que vivemos no nosso dia a dia. Neste contexto a SUV passa ser a salvação. Chora menos quem pode mais, esta é a regra, SUVs são imponentes no trânsito..., que delícia..., ver todos por cima... Quando vieram as primeiras vans para o Brasil Sarah se apressou para tirar carta profissional para pedir ao marido uma Besta, que ela considera até hoje “o melhor ‘carro’ que já tive”. “Você faz o que quiser no trânsito e todo mundo te respeita.”
Com a bicicleta não tem esta história, muito pelo contrário. O número de mulheres que usam a bicicleta no Brasil é baixo por uma série de razões, que vão desde a mesma questão cultural que faz da SUV o tanque de guerra para algumas, até o fato de até agora praticamente não haver dentro do mercado bicicleta própria para a altura média da mulher brasileira. O correto seria que os modelos básicos fossem tamanho 16 e não 19 fabricado, padrão para mulheres europeias.
Em 1982 pedalei muito com Cristina, uma menina alta, magra, muito bonita, e determinada, muito determinada. O tamanho padrão de bicicleta lhe serve perfeitamente. Na época o trânsito era infinitamente mais tranquilo, havia poucas mulheres dirigindo, mas também não era difícil ouvir alguém mandando uma motorista “voltar para casa e vai lavar roupa”. Cristina então sequer tinha idade para ter carta e só pedalava. Foi dela que ouvi as primeiras histórias sobre carros diminuindo a velocidade e passando a mão na bunda da ciclista. Acabei descobrindo que, tristemente, o fato era muito mais comum que se podia imaginar e que várias ciclistas acabavam no chão, machucadas. Isto em bairros de classe média. Mulher bonita, com bela bunda, pedalando completamente sossegada só acompanhada de seu homem.
A posição da mulher na sociedade mudou muito. O manual da boa mulher que existiu, com preceitos tão limitados e controladores, vai aos poucos ficando para trás. Conforme a mulher foi ganhando espaço e poderes, foi também deixando de lavar roupa para procurar sua identidade própria. O novo manual cria novas categorias:  patricinha, perua, melissa, e outros adjetivos, alguns pouco elogiosos, mesmo assim muitas vezes incorporados pelas próprias. Felizmente um personagem de novela resgatou a mulher trabalhadora, sobrevivente, chefe de família, que faz jus a grande e brava maioria das brasileiras.
Não é um fenômeno particular da mulher experimentar e se encaixar em posições sociais novas. Homens e toda população do Brasil passa pelo mesmo processo. É outro Brasil, é outro mundo, outro planeta. Mas, mesmo sendo um país rico, a 6ª economia do mundo, o número de mulheres pedalando continua baixo, mas crescendo rapidamente - felizmente. Infelizmente a maioria destes processos se deu apoiado numa precariedade trágica de cultura e educação, na de falta de exemplos, de uma elite paupérrima em princípios. Continuamos sem uma bicicleta básica e popular com perfil próprio para o perfil da mulher média brasileira. Quem sabe um dia a dona da SUV possa encontrar com facilidade uma bicicleta que lhe permita pedalar sem sujar sua chique roupa.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Leis e leigos


Do Código Civil:

Artigo 186: Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a alguém, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Artigo 927: “Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único: haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

Este é o início de um texto que nunca terminei. Não sei bem porque, mas também há tantas razões que não vale mais a pena pensar. Infelizmente este país está uma baderna completa que pensar em leis virou tema secundário. A nossa questão é de foro íntimo, é um problema de caráter. O vale tudo está escancarado e valendo tudo mais que nunca. Liberou geral. Exagero? Vide a história do CNJ que está estampada em todas primeiras páginas de jornais.

O original começou a ser escrito dia 24 de Fevereiro de 2010, foi aberto um montão de vezes para ser terminado e publicado e toda vez eu parei na leitura dos dois artigos acima, 186 e 927, brochei, fechei e tratei de esquecer para não enlouquecer. Posso bem imaginar o que fosse a idéia original, provavelmente ter ouvido mais uma história sobre ciclista chutando um carro que foi considerado agressor contra os direitos dos ciclistas, portanto da humanidade, mais especificamente o direito individualíssimo do ciclista ofendido. Nosso trânsito é assim. Roberto da Matta, brilhante antropólogo, numa entrevista no Jornal da Cultura disse algo como “trânsito é o melhor espelho da sociedade”. Estamos fodidos!

O que interessa ao brasileiro é o “meu direito”. “Pouca farinha, meu pirão primeiro”, diz o ex conselheiro do CNJ, Ives Gandra Filho, em entrevista para O Estado de São Paulo, em “Lobby de juízes impediu CNJ de pôr fim a farra das verbas milionárias”(Domingo, 15 de Janeiro de 2012; pg A12, Nacional). O meu começa no topo da pirâmide e termina no país dos coitadinhos do chão dos abandonados. Incluo ciclistas, inexistentes para os números oficiais do país (IBGE) desde 1981.

Mesmo o fato de não existir oficialmente não dá o direito de exigir nossa estrita parte do pirão primeiro. Mas é o que mais acontece. E nunca antes neste país aconteceu tanto porque o paizão liberou geral. Coitadinhos - todos. Não, não, não, como disse o paizão ‘os de olhos azuis e loiros’ não estão incluídos. Estranha frase para um pernambucano, estado onde boa parte da população, melhor dizendo - do povão, tem olhos claros e não raro cabelo pixaim e loiro, restos de uma colonização holandesa. Estes, segundo o paizão, também estão excluídos.

Olho para trás e vejo o que aconteceu com a revolução da bicicleta no Brasil foi mais um desperdício de  oportunidade. O uso da bicicleta constrói uma nova realidade, mais humana, integrada, pacífica, livre, sustentável. Já acontecia Brasil afora em localidades mais de topografia mais plana e transporte de massa deficiente, fato comum.  O que aconteceu e ainda está acontecendo, fim das contas, não passa da novidade e aceitação deste veículo pela classe média, acompanhada por “é legal” da propaganda, e um “é perigoso” da realidade. A bicicleta é perigosa, ou qualquer veículo mal conduzido é perigoso? A velha classe média, muito vaidosa, individualista, feliz de sua parte do pirão, quer pedalar com pleno direito, mas sem perder seu pleno direito ao uso do carro. Coitadinhos! Como sentir-se-ão quando lhe chutam o espelhinho porque o motociclista / ciclista veio de ângulo sego ou estava atrapalhando o direito de ir? Quem chutou antes, o ovo ou a galinha?

A baderna está instaurada. Leis valem pouco porque não são feitas para leigos, mas para quem com elas sabe tratar. Respeitar as leis de trânsito, que seria um ótimo treino para entender como funcionam as leis, a ordem, a comunidade real, ainda não faz parte de nossa pauta. Estamos longe disto. Muito longe disto.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Feliz 2012. E aproveita

Quantas vezes você desejou um Feliz Ano Novo, destes com letra maiúscula no início de cada palavra, escrito ou dito sorridentemente? Quantos destes anos foram felizes? Qual o valor destas palavras? Qual o valor do escrito letra por letra? Feliz se escreve com “z” ou com “s” e acento no “i”?

Nesta virada do ano dei meus votos com muita dificuldade. Gostaria de ter tido o direito de ter ficado quieto no meu canto. Silêncio é por vezes muito bom e era tudo que queria. Não consegui fugir de uma reunião, que por sinal foi bem agradável. Como sempre fiquei um tanto tonto com a falação, principalmente por duas pessoas que lá estavam não conseguem falar com um volume de voz e entonação baixo. Até as crianças fizeram menos algazarra. A um determinado fui lavar pratos, minha eterna rota de fuga quando canso de qualquer festa ou reunião. Há uma passagem do filme “O fio da navalha” que uso como apoio ao meu ato. “Deixa que a empregada lava...”; “Larga isto que vou colocar tudo na máquina (de lavar pratos)”... Terminar uma festa lavando pratos e organizando a bagunça é uma felicidade. Na passagem do Ano Novo não deixar nada bagunçado para trás (pelo na festa) e depois voltar para casa pedalando com as ruas completamente vazias é o máximo. Já tentei usar a mesma técnica com toda esta porra que está sobre a minha mesa de trabalho, mas fui lavar o lab top e achei que era hora de sair para a rua e pedalar. Deu mais certo, mesmo sabendo que ao voltar para casa o trabalho continuaria lá.
O melhor mesmo da virada do ano é a manha do dia seguinte. É uma experiência interessante pedalar ou correr pelas ruas completamente vazias da cidade. Fiz isto durante anos, várias vezes por semana, anos a fio. Pedalar - é lógico. Quando comecei a pedalar a cidade era outra, completamente diferente, muitíssimo mais calma. Quando fizemos o primeiro Night Biker’s da história, lá pelos idos de 1988, saímos do Pacaembu para o Centro e cruzamos com pouquíssimos caros. O Centro estava completamente vazio e tranqüilo. Segurança total. Nestas primeiras horas de 2012, pedalando para casa, foi me passando imagens como esta do passado. A vida me deu momentos incríveis. A bicicleta me ofereceu paisagens hoje impensáveis. Paz. Do passado só sinto mesmo não ter percebido que correr a pé nos faz chegar perto do ser biológico que somos de fato, sem nenhuma ferramenta extra.
Feliz 2012, é a esperança. Vamos fazer um bodyboard na marolinha que quebra em nossas praias. Pessoalmente eu fico na total esperança que no meio deste ano de 2012 a FIFA tenha corrones e declare ao mundo que a Copa de 2014 não será mais no Brasil. UAU! E todos nós, brasileiros, nos livramos de uma buraco de US$ 118 bilhões (número estimado de custo dado ao Estadão pelas empresas que estão investindo no evento) e provavelmente este país terá um futuro para nossos filhos e netos. Vamos aproveitando este 2012. Tem 2013 antes de 2014, e 2015 antes de 2016. Haja esperança!