sexta-feira, 26 de abril de 2024

Brasil - Estados Unidos no Frota Leste: a viagem de minha vida


Embarquei na virada no ano novo de 1975. Nem sequer me lembro de ter ficado um dia em Salvador, onde o Frota Leste, um navio cargueiro de 75.000 toneladas estava aportado. Lembro do primeiro contato com minha cabine, simples, mas bem confortável para nós três, eu, o namorado de uma prima e um amigo dele, gente boa. Lembro de Salvador indo distante, o navio entrando em alto mar num fim de tarde, as luzes da cidade sendo acesas me fascinaram, até desaparecer. Navegamos numa distância que ainda podíamos ver as luzes das cidades, quase uma linha branca amarelada no horizonte. Acordei no dia seguinte e já só se via água ondulada, o mar aberto. O navio estava vazio, sem carga, e dançava com as ondas, um movimento lateral que não incomodava muito, a não ser para comer. No copo de suco o movimento do navio ficava claro.

Todos dias acordava e saía para o convés para nomorar o mar antes de tomar café da manhã. Parece sempre o mesmo, mas definitivamente não é. 

Acordei um dia, saí para o convés como sempre e não entendi nada, o mar estava calmo, pequenas ondas e uma cor diferente. Subi até a cabine de comando para saber o que era. Estávamos navegando no rio Amazonas. 
Uma imensidão de águas, nada de terra, incompreensível. É um rio, deveria se ver terra, no Amazonas, florestas. Nada, um mar de águas. 
Chegamos a Macapá para carregar minério. Tivemos a oportunidade de ir até a cidade para comunicarmos que havíamos chegado bem até ali. Uma Kombi nos esperava para uma viagem curta. O duro foi entrar na companhia telefônica para pedir a chamada, e mais ainda ficar dentro da cabine que não parava de mover-se. MInha mãe não conseguia entender porque eu não parava de rir enquanto falava. Eu estava com as costas encostadas numa parede e mão segurando na outra parede. Efeito da movimentação do navio sem carga. O labirinto continua a trabalhar em terra firma o movimento das ondas. Muito estranho.  

No Caribe acordamos com as camas indo para lá e para cá, numa balançar como se estivéssemos numa rede, ou num berço, resultado de um forte balançar do navio. Só consegui lavar o rosto aguarrado na pia. Abri a porte e dei com um marinheiro que foi logo avisando para tomar cuidado que o balanço seguiria forte. "Só desce a escada quando ela estiver subindo", disse ele. Como assim? O balanço do navio era tão acentuado que em certos momentos a escada ficava quase plana, para ir baixando lentamente até ficar tão inclinada quanto uma parede. "Espera ela subir e passa por ela correndo", terminou ele e seguiu seu caminho agarrado no corrimão das paredes. E lá fui eu. Mesmo antes do café da manhão subi para a ponte de comando, agarrado a uma mesa dei bom dia sorridente a todos, e vi a proa do navio enterrar na imensa onda. Uau! Fiquei lá um bom tempo vendo o desce a onda, enterra a proa na onda, o navio se enche de espuma do mar, a proa vai emergindo, o navio começa a subir a onda, chega no topo da onda a velocidade do motor é reduzida, e começa tudo de novo com o navio escorregando onda abaixo. Exceto o capitão e mais uns dois, todos passaram mal com o sobe e desce que nunca parava. Mesmo assim, adorei.

Chegamos a noite na foz do rio Mississipi, o navio foi ancorado, e fomos dormir. Acordei e como sempre sai para ver o mar. Dei com um espelho, o que se chama 'mar zero', e o banco no convés com marinheiros sentados, olhares perdidos, apavorados, literalmente apavorados. Dei bom dia e responderam quase em silêncio. Sentei-me ao lado deles e puxei conversa para saber porque o mar estava daquele jeito. "Prenúcio de furação" respondeu seco e sem outras palavras um deles sem tirar os olhos daquela lisura a perder de vista. Fui tomar o café da manhã, voltei e todos estavam exatamente sentados nos mesmos lugares, com exatamente o mesmo olhar apavorado. Encostei na amurada e vi um golfinho passando perto. A marolinha de sua barbatana era a única irregularidade em todo mar. No dia seguinte quando acordei já estávamos no rio Mississipi em meio a uma violenta tempestade. O capitão do barco ao me ver ordenou que eu saísse de lá e descesse imediatamente. No final do dia, só com chuva, vimos na TV que um navio um pouco menor que o nosso foi empurrado pelo 'tornado' para fora do rio Mississipi e navegou por terra firme uma meia milha. A imagem era impressionante. 

Em algumas noites e alto mar eu subia ao topo do navio para ficar olhando as estrelas. São infinitas, parece óbvio, mas só vendo para crer. Cheguei a ficar uma hora deitado no convés escuro, e meus olhos nunca terminaram de se adaptar, novas estrelas, galáxias iam surgindo. 
Ali entendi que nós, humanos, não somos absolutamente nada, sequer uma poeira. Somos nada. 

A partir de sábado volto a fazer mais ou menos o mesmo trajeto, o de ida, Rio de Janeiro - NY, desta vez num cruzeiro. Sempre sonhei repetir a expeiriência em navio cargueiro, mas não consegui, ou não me esforcei para conseguir, o que pode ser mais verdadeiro. Com certeza não vai ter o mesmo impacto da navegação no Frota Leste com seus pouquíssimos tripulantes.  

Conversei com alguns amigos sobre este cruzeiro que faço agora. Todos disseram "Que chique!". Pois então, os quinze dias no navio saem muito barato se comparado a turismo interno no Brasil. Os cinco dias que tirei para ir a Penedo, com uma breve passagem por Sâo José dos Campos são proporcionalmente mais caros que os dias no navio. A comparação que costumo fazer é quanto gasto por dia pedalando para fora de São Paulo, e mesmo aí o navio sai elas por elas ou mais barato. Devo aqui lembrar que sou diabético e que vai uma grana em comida. Entrou no navio tudo é grátis, exceto drinks, óbvio. Como não bebo... 
Não confundir o preço de cruzeiro em viagens curtas, de uma semana ou menos. Estou embarcando num navio que precisa de passageiros para voltar ao emisfério norte e fazer a temporada de verão lá. Dizem que as viagens mais agradáveis são as que vem da Europa e Estados Unidos para o Brasil. O povo é mais camo, o navio navega mais silencioso, na hora das refeições não há tumulto.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Alargamento da Raposo Tavares: é bom para quem?

SP Reclama
Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo

Aos que sofrem todos os dias com o maldito trânsito da Raposo Tavares digo que nós queremos ajudá-los, mas não empurrando a bomba para cima de nosso colo. Até porque primeiro ela vai explodir deste lado e mais tarde o efeito retardado, que sempre há, criará mais problemas para vocês que vivem aí, por que escolheram a paz da distância de nossa loucura cá e o verde. Não só o sonho de vocês se transformou em pesadelo, mas o de todos que se mudaram em busca da paz verde. Olhando o que aconteceu com outras estradas conurbadas que foram alargadas, digo a vocês que primeiro o preço do metro quadrado de seus bairros vai subir, uns poucos lucrarão com isto, depois o preço vai descer fruto de especulação imobiliária, mudança de perfil dos bairros, adensamento, congestionamento e a certeza do aumento da violência. É só uma questão de tempo. O congestionamento de certa forma é uma barreira protetora. E, tenham certeza, não demorará muito para que a Raposo Tavares vire novamente um inferno, então não mais em três pistas, mas em cinco para lá e para cá. Como consequência não só as árvores que ladeiam a rodovia desaparecerão, mas boa parte do verde que hoje os rodeia e tanto os apraz. Então não faz nada? Faz! Pensa antes de agir por impulso.

Muitíssimo mais que a derrubada de centenas de árvores que margeiam a Raposo Tavares, o alargamento da rodovia e obras para sua fluidez certamente representará uma sensível diminuição do verde de todos os bairros que dependem daquela via e hoje sofrem para chegar em São Paulo. A lógica é simples e fácil de provar porque a cada dita melhoria realizada nas estradas conurbadas da metrópole se seguiu um desenvolvimento urbano agressivo, desordenado, que se pode chamar da mais pura especulação imobiliária. Quem já passou pela Raposo Tavares sabe que o trânsito é absurdo e é necessário fazer algo, mas faz muito que alargamentos e melhorias de acesso vem sendo evitados em grandes cidades por serem soluções miopes, de curta duração, e grande rentabilidade só para uns poucos. Os que moram lá devem pensar em saídas que não destruam a vida dos que moram aqui. Por incrível que pareça, isto aqui é uma cidade, ou seja um imenso agrupamento de pessoas, histórias e vidas. Jogar os meus problemas no colo dos outros é fácil. 

segunda-feira, 22 de abril de 2024

50 anos depois, o pedido de desculpas

Colocando em ordem uns papeis e procurando outros, dou de cara com um envelope pardo nomeado "monte de merda" escrito com minha letra de mão. No meio de papeis diversos, muitos memórias sem importância, mas que me trazem boas recordações, encontro quatro cartas de minha mãe e uma de Carminho, minha avó, escritas quando eu estava viajando 'a la loca por Américas'.

Já estava na faculdade quando decidi trancar a matrícula e viajar por terra para os Estados Unidos, mochila nas costas. Era a aventura clássica dos pós adolescentes da época e eu embarquei nela. Mochileiro ou hippie, como queira, mas com a família por trás em qualquer caso. Mais ou menos como os hippies da época, sem um puto no bolso, mas garantido por pais compreensíveis, por assim dizer. Hippie-chic, the must! Bem classe média brasil.

Um dos que estudavam comigo na faculdade, que de hippie não tinha nada, deu um sumisso de uns seis meses e voltou contando as maravilhas de sua viagem. Mochila nas costa, pouco dinheiro no bolso (e todos nós acreditamos), chegou até a Florida. Ele era completamente desembaraçado, boa gente, boa fala, boa agilidade social, sabia se virar, tudo para dar certo. Trazia consigo fotos (que eram raras e caras na época) para comprovar o que tinha feito. Ouvindo aquilo tudo contado com deliciosos detalhes, parecia uma aventura fácil, para qualquer um.
E lá fui eu. Vendi todos meus discos e mais alguma coisa e coloquei o pé na estrada. Foi divertido, não muito para minha família, principalmente para minha mãe e avó, como as cartas preocupas provam.

Comunicação em 1977 era por correio, cartão postal ou cartas. Telegramas eram caros, telefone quase impossível. Ainda tinha a possibilidade de rádio amador, mas tinha que encontrar um lá, onde você estava, e outro cá, só muita sorte alguém que morasse onde estava minha família. Em Lima cheguei a fazer uma tentativa por rádio amador que foi interrompida por um pequeno "tremor de terra" que fez tudo na casa sair passeando de uma lado para outro como se tivessem pernas.

Minhas cartas durante a viagem trazem uma letra a mão e um texto que são para apavorar qualquer um. Minha letra sempre foi, e não posso negar que meus escritos também, de um anafalbetismo sem tamanho, Mobral total. A infantilidade está patente até no desalinhamento das linhas, no descrever como eu estava até como ia a viagem. Um horror tamanho que vou dar um tempo para voltar a vê-las.
Dizer que fui 'a la loca' é absolutamente pertinente, para dizer o mínimo. Melhor seria 'el loco se fue'. Se deixei todos aqui meio assustados, por outro lado olhando aquelas cartas, quase ilegíveis, e puxando lembranças do que foi a viagem, agora digo que provavelmente pelo meu comportamento completamente naif, infantil, muitas portas tenham se aberto para mim. (-Ele baba? Não? Só é meio estranho? Então deixa ele entrar...)

Saí de São Paulo em trem, transbordo em Bauru, final em Corumbá, vagão com janelas, piso e bancos de madeira, paisagem maravilhosa que ainda passa frente a meus olhos. Corumbá, um calor e umidade insuportáveis, e a primeira noite fora de casa, e do trem, dormindo numa favela. Dia seguinte toca a entrar na Bolívia e tentar pegar o trem da morte para Santa Cruz de La Sierra. Trem da morte era um trem de carga que o pessoal viajava no teto. Uns pegavam no sono e caiam para o sono eterno. Nada de trem da morte e ou mesmo de aventura hippie, fui mesmo em "trembus", dois vagões de trem movidos a motor de ônibus, segunda classe.
Santa Cruz de La Sierra, era linda, arborizada, organizada, Andes nevados a distância e como sutil pano de fundo. Acabei sendo recebido na casa de uns bolivianos religiosos. Ótima estadia, e banho! Opa!, banho! Dia seguinte, subir a serra em ônibus para La Paz. "Vas sentir el soroche", me avisaram. La Paz, 4.100 m na parte alta, 3.650 metros no centro. Entra-se por cima, uma vista incrível da cidade acentada na boca de um vulcão. E desço do ônibus pensando "soroche?", dois passos a frente e um vomito que não para. Recebo oxigênio no pronto socorro e de lá vou para um (bom) hotel.... Hippie? Mochileiro? Almofadinha, diria. Que delícia!
Que me lembre, a primeira carta ou cartão postal saiu de La Paz.

"A única forma de chegar ao Perú é comprando passagens da Morales Moralitos", fui claramente avisado em La Paz. E lá fui eu, o besta, sabichão, para fronteira sem a passagem Morales Moralitos até Puno. E desço em Copacabana, Lago Titicacal, fronteira. Cruzei a fronteira a pé. "Enfim, Perú", pensei eu, mas e agora? Como sigo em frente para Puno? "Só comprando passagens da Morales Moralitos - e com preço desde La Paz" disseram tranquilamente sem sequer levantar a cabeça. FDPs! E lá estou eu, perdido, sem saber o que fazer. Passa uma boa alma andina em suas coloridas roupas típicas e pergunta "Quer uma carona. Sobe no caminhão com a carga". Viva meu espírito hippie-mochileiro, lá vamos nós. Carga de pimentas! Cheiro e ardor fortíssimos. Anoitece, um frio de quebrar o queixo; viagem aos pulos noite adentro até amanhecer. Chegamos, finalmente Puno. Desço do caminhão e me transformei num saco de pimenta, cheiro sentido por quem passa perto ou bem longe. Devem ter pensado, "que tal! es un gringo picante". Mais uma vez desaparace o esírito hippie, o mochileiro também, vou para um bom hotel. Longa água quente que curou o corpo conelado, mas um banho inócuo ao fortíssimo cheiro ardido impregnado. Deito e durmo.

Cusco, recomendo a todos, de preferência com monte de remédio para soroche nos bolsos, ou folhas de coca para mascar que funcionam bem, como queira. Machu Picchu é imperdível, com ou sem soroche. Ainda vi tudo aquilo praticamente sem turistas.
De avião para Lima, afinal, hippie também é gente, e não conseguia conviver bem com o soroche.

Em Lima fiquei na casa de uns amigos de minha irmã, que me mantiveram hospedados por um mês. "Estás mui flaco!", a alegação, não sem razão para me manterem hospedados. Hippie que é hippie não tem dinheiro para comer. Ou come ou dorme bem (num hotel). Eu já era muito magro e cheguei em Lima 10 kg mais magro ainda. Agradeço até hoje os dias maravilhosos que os Dedekin Moran me ofereceram em Lima. Um dia espero voltar a Lima e agradecê-los.
Creio que a segunda carta saiu de Lima, muito tempo depois da minha saída de São Paulo.

Hippie é folgado, mauricinho também, almofadinha que vai se encostando. Provavelmente fui um pouco dos três. Um dia conseguiram se livrar de mim. Encontraram duas opções; Quito em ônibus por US$ 180,00 ou Zurich por US$ 120,00. Sim, é isto mesmo, ir para Quito era mais caro. Zurich, lá vamos nós. Mochileiro, mas não tanto. Adorei Zurich.

Três dias depois de desembarcado em Zurich estava assistindo os treinos do GP F1 de Monaco. Pelas minhas roupas, em Monaco, tinha deixado de ser hippie para virar mendigo ou algo do gênero. Mas assisti o GP desde a praça em frente ao Ministère d'Etat, que fica sobre a Curva do Tacabo, de longe o melhor lugar para ver assistir o GP. Dormi aonde? Como hippie, ou mendigo, como queiram, debaixo do banco da praça.
Trem de volta para Suíça, uns dias em Sion, na casa do Bernard Zen Ruffinen, que havia conhecido na Bolívia, gente ótima. De lá mais uns dias na Itália, e o pouco dinheiro que tinha acabou de vez. Fui "repatriado" de Gênova por minha santa mãe no navio Cristóforo Colombo, terdeira classe, cabine praticamente ao lado das hélices. Inesquecível!
Talvez tenha enviado notícias da Suíça, talvez.

Neste meio tempo, entre as primeiras e poucas, confusas, cartas enviadas, e minha chegada de surpreza em São Paulo, poucas notícias para desespero de mãe e avó, talvez de mais alguém. "Pas de nouvelle, bonne nouvelle" devem ter pensado resignados. "Pelo menos voltou inteiro" disse minha santa mãe no abraço entre a alegria de me ter de volta e fúria da falta de notícias.


A viagem foi muito mais cheia de detalhes que obviamente não estão nas cartas muito menos nestas breves linhas. Foram, sei lá, uns quatro ou cindo meses de poucas notícias, e hoje vejo que as poucas que escrevi eram para deixar cabelo em pé até a mais tranquila das mães, avós e quem mais se interessasse.


Eu me sentir agora compelido a um pedido de desculpas é pouco. Peço desculpas por meu passado em silêncio, e com frequência, para muitos; não só para elas, mãe e avó, que então certamente eram as mais aflitas. Desculpem.

Não se pode voltar atrás na vida, mas quisera eu. "Aqui se faz, aqui se paga"; ouvi de montão. Estavam absolutamente certos, aqui se faz, aqui se paga. Vale para os que têm alguma consciência. Culpa? Medo do inferno? Não! medo do espelho, o que é muitíssimo mais complicado e apavorante de se encarar.


Poderia ficar aqui contando tantas outras histórias de minha vida que hoje, olhando para trás, as teria repetido, as vivencias, mas de outra forma, ou pelo menos com certos cuidados. Não é a busca por experiências de vida, que deve ser feita, mas o rastro que se pode deixar para trás que deve ser evitado.
Como é o ditado?: você é responsável por aqueles que te querem. É isto? Se não for é mais ou menos por aí e está corretímo.


Vejo meus netos repetirem erros que remetem aos mesmos erros que fiz não tomando cuidado com as emoções do ou dos outros. Não falo desta viagem, mas de pequenas besteiras caseras e urbanas que parecem inconsequentes, mas que nos dias de hoje, para quem amadureceu, são muito mais apavorantes que um louco solto pelo mundo em 1977. 
"Eles são só adolescentes..." ouço com frequência. São adolescentes, sem dúvida, mas a enorme diferença para quando vivi minha adolescência, década de 60 e início dos 70, é que hoje o espaço para corrigir possíveis erros que sempre acontecem é muito reduzido.

Aprendi muito com a montanha de besteirada que fiz pela vida, mas não teria outra forma de chegar na maturidade que tenho hoje? 

Como posso deixar um legado para meus netos?

Só posso pedir desculpas ao leo 50 anos depois. Que lá de cima me ouçam.


E dentro de uns dias lá vou eu no mesmo rumo da primeira grande viagem: navio, Frota Leste, cargueiro, de Salvador para os Estados Unidos, Mississipi e de lá volta para Santos, daquela vez três meses de mar. Foi a viagem de minha vida, o antes e o depois. O que fiz na volta não tem desculpa, é um dos "aqui se faz, aqui se paga" que mais me pesa ao olhar no espelho. Não agradeci a viagem. Gostaria de ter Tio Francisco por perto para abaixar a cabeça e tomar uns cascões merecidos, mas ele já se foi. De qualquer forma, obrigado.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Padarias de minha vida

"Arturo, vai pegar o pão que o almoço está quase pronto", e lá ia eu pedalando para pegar pão quentinho. Primeiro foi mais ou menos perto de casa, com o tempo fui procurando experimentar outras padarias, algumas bem mais longe. 

Retomar a história das padarias que passaram por minha vida veio quando fui comprar croissant e a simpática atendente disse "Temos mêdia luna. Croissant é salgado. O nosso é doce, é mêdia luna (pronuncia em español)". Óbvio, o dono é um jovem porteño, portanto "mêdia luna". Que me lembre em Buenos Aires comi mêdia luna salgada. Se pedir croissant lá não sei o que vão entender. Eles traduzem tudo para o espanhol, melhor, el español. No meu tempo, e já faz um bom tempo, nos discos de vinil, as bolachas, quando eu ia para lá, anos 70, era tudo traduzido para el español. "Piedras Rulantes" estava na capa, e para quem não entendeu, Rolling Stones. Black bird dos Beatles era "Pajaro negro", Let it be era Dèjele ser, e assim por diante, com tudo, inclusive o croissant, la media luna. Dulce o salada? Não, não, não, "salada" não é salada, mas salgada. 

Na França os dois são croissant, doce ou salgado, ponto final. E não pense que todo croissant francês é uma maravilha, tem de tudo, mas a maioria vale a pena.

O primeiro croissant que merecia o nome comi aqui em São Paulo, na rua Suzano, onde tinha uma padaria chamada Coloni, famosa por seus pães pretos e integrais. Foi vendida e acabou, infelizmente. 
A Coloni era de um tempo quando os pães paulistanos começaram a virar um desastre. Época estúpida, que ainda não acabou, onde pão bom é pão grande, vistoso, que enche o prato. Felizmente estão desaparecendo os pães feitos com bromato, para quem não sabe, eram uns pães imensos, parecidos com zeppeling, que depois uns minutos desintegravam em pó, ou numa farinha que não servia sequer para empanar.

Para minha tristeza, fui conhecer a Benjamim Abraão bem mais tarde. Descobri pelo meu irmão que dava aulas próximo, na rua Maranhão. Era divina, acho que uma das primeiras ou a primeira a ter um francês com cara e gosto de francês. Os croissants eram maravilhosos. Seu Abraão ficou velho e doente, o negócio passou primeiro para filha e o genro, já não ficou a mesma coisa. Uns anos depois passou para o neto e acabou, virou um desastre, uma fábrica de zeppelins.

Pausa para um cafézinho com boas lembranças:

Na França tem pão francês? Não, nem sequer algo que se pareça com nosso tradicional pão francês. Sim, eles tem um pãozinho parecido que é difícil de encontrar. A bagete é o básico. Nhami! 
Quando a corte portuguesa fugiu da eminente invasão francesa em Portugal e aportou no Brasil, trouxe consigo um pasticeiro frances que produzia pequenos pães. Dai o nome "pão frances", que foram imitados e ganharam o gosto público, tornando-se a preferência nacional.

Nem em todos os lugares de Paris o croissant é assim um croissant. Nada a ver com aquela coisa grande e massuda que se vende como tal por todas as partes de São Paulo. O croissant para valer é um folheado, que gosto de comer desfolheando aos poucos até chegar ao miolo levemente engordurado pela manteiga da massa. Quente, de preferência. Saído do forno. Um dos melhores em Paris é o da La Grand Epicerí de Paris, o de La Muette, no 16º Arr. Próximo a porta principal de entrada, à esquerda, você compra um, ou dois, ou três, como queira, paga, sobe e vai tomar café expresso, que por sinal é também maravilhoso. O local é o paraíso gastronômico, uma loucura completa, indescritível. Conhecer o  La 
Grand Epicerí de Paris, este ou o de frente ao famoso e maravilhoso Hotel Lutetia, rue de Sévres, uma das obrigatoriedades para dizer que conhece Paris. Aproveita e vai comer um suflê no Le Récamier, logo ali. Ai você conheceu Paris, ou está perto de.
Sobre padarias parisienses, tome cuidado! Voltei 8 kg mais gordo. Não me arrependo.

E sei lá quando fui levado para Quito, Equador, para dar uma palestra. Fiquei hospedado num pequeno hotel boutique, muito agradável, nada muito especial. No café da manhã foi servido pequenos e perfeitos croissants, inesquecíveis. Tentei achar a padaria, mas não consegui. Incrível, mas ainda sinto a perfeição de seu folhado sendo quebrado na boca até hoje.

Em Munique, quando fomos levados pelo I-Ce para participar do Velo City, nos hospedaram num hotel dizendo que era um lugar simples (?), mas (Jap, o responsável) acreditava que iríamos gostar do café da manhã. Absolutamente inesquecível! Obrigado Jap! Os pães, todos artesanais, eram de outro planeta. Aliás, queijos e frios também. Manteiga, geléias... Tudo vinha de fazendas próximas. Óbvio que os pães eram pretos ou integrais, poucos brancos, todos de forma. Quero voltar.

Ürgüp, Capadócia, Turquia, que trigo, que pães maravilhosos! Com um detalhe:
ficam expostos do lado de fora da padaria, na calçada. Você escolhe, pega, entra e paga. E lá, Ürgüp, cometi uma indelicadeza que não me arrependo. Antes do café da manhã do hotel fui a padaria e comprei um pão de cada variedade e levei para os outros hóspedes se deliciarem. O gerente do hotel definitivamente não ficou feliz. 

"Arturo, não viaja! Volta! Conta sobre sua relação com os pães e porque foram importantes para o descobrir a cidade pedalando".

Sinto falta do pão italiano da Vesúvio, uma padaria que ficava perto de casa, na rua dos Pinheiros, de propriedade de Napolitano e José. Rivalizava em qualidade com a São Domingos, Basilicata e outras tradicionais entre os italianos paulistanos. Era de longe o pão italiano predileto de toda a família. Ia um filão ou pão de peito, o redondo, por refeição. Normalmente chegava quentinho. 
E eu adorava conversar com os dois simpáticos donos, que um dia, esperando o pão sair do forno, me contaram sobre o que chamavam de "guerra do trigo". Na década de 80 as importações eram restritas, difíceis, e conseguir trigo de boa qualidade era uma luta, briga de foice entre as boas padarias. Um dia eles cansaram e para minha profunda tristeza venderam a Vezuvio, que perdeu sua maravilhosa qualidade e em pouco tempo fechou. 

São Domingos, tradicionalíssima, pelo que sei a mais antiga em funcionamento de São Paulo, vim conhecer quando voltávamos de um passeio ao Ipiranga. Quem me levou foi o saudosíssimo Tiu Lú, figura incrível que conhecia tudo sobre São Paulo.
Muitos anos depois, numa tarde, fui levado a conhecer dentro da casa de porta quase acanhada com discreto letreiro 'São Domingos' que está lá e vende pães e outras delícias a mais a mais de um século. Vi os fornos, que são muitos mais que imaginava. A casa se estende lá para o fundo e para baixo. Quem nos levou foi a senhora, mãe dos que hoje tocam o negócio. No meio da visita, ela permitiu que eu pegasse um filão italiano saído do forno que quase queimou minha mão. Na loja peguei um provolone, pedi para cortarem um pedaço e abrir no meio, e o  imediatamente foi derretido pelo maravilhoso pão. Coisa dos deuses. 
Um pouco mais a frente dei de cara com um carro de reportagem da Globo, na janela estava a Zileide Silva, parei para dar um oi, eles disseram que ainda não tinham conseguido almoçar, eu abri a mochila, tirei o filão, o queijo, e deixei com eles que sorriram só com o forte e delicioso cheiro. 

Basilicata, 13 de Maio, Italianinha e mais outras tantas foram paradas obrigatórias. Destas eu lembro, de algumas felizmente não. Tem muito pseudo pão italiano por aí. 
A vida ficou muito mais corrida, mesmo assim podendo paro nas padarias para ver se o pão me chama a atenção, não só os italianos. 
Para quem está gostando da conversa, deixo a dica: não raro a padaria tem seus pães especiais, algumas vezes vendidos junto a outros que não valem a pena. Só cuidado para não engordar experimentando tudo. Com o tempo o olhar vai dizer muito.  

Da minha tenra infância até um pouco antes da era bicicleta, na esquina da Joaquim Antunes com Sampaio Vidal, existiu a ótima Padaria Regência, com seus pãezinhos . Morreram os criadores acabou a qualidade.

O mais triste foi a passagem da Benjamim e Barcelona para a filha e depois para o neto. Não ter conhecido Benjamim Abrahão foi algo que não me perdoo, uma displicência minha que me dói até hoje. 

Hoje temos diversas pequenas e ótimas padarias. São Chico, Batard, Fazemos pão, Fabrique, e mais outras que não me lembro nomes. A questão é que tem muita bestice que é bem avaliada porque o ambiente é agradável... Isto está cheio.
Em supermercado tenho que citar os franceses da St. Marche da São Gualter. O francês pequeno é ótimo. Eles tiveram um padeiro que conseguia o feito de produzir quase todos tipos os pães ótimos ou bons, o que é raro. Normalmente as padarias tem um ou dois pontos fortes, o resto é bom... ponto final. 
Um bom padeiro faz toda diferença.  

Por favor não confundam pão com padaria. 

terça-feira, 9 de abril de 2024

Eu. E a Semana Mundial do Autismo

Autismo, ainda um mistério para a maioria, e porque não dizer também para as pessoas próximas ao autista. São inúmeras as formas e graus de autismo, como diz Luiz Alexandre Souza Ventura em seu "Vencer Limites" do Estadão e Rádio Eldorado. Tenho amigos que são diagnosticados com autismo e não transparecem, e tive contato com filhos de primos que eram completamente fechados em si. Entre estes dois mundos infinitos outros.

Definir uma doença mental não é tarefa fácil ou rápida. Os erros cometidos são inúmeros, hoje muito menos que no passado quando ainda havia muita influência das religiões sobre a ciência e medicina. Mesmo assim, as besteiras que se fazem com pessoas especiais são inúmeras, várias deprimentes.

O comportamento de alguns deixa absolutamente claro sua normalidade ou não. Não é tão simples assim. Esta verdade vale para casos mais acentuados ou extremos, que a referência que a imensa maioria tem. Há muitos interesses por trás desta verdade, principalmente o medo. 

Pelo pouco que sei o maior problema para o autista, como para outros, é o ambiente que o cerca.  Via de regra não o contrário.
Aliás, falando em ambiente que cerca, quanto mais amigável for a cidade, melhor será a saúde mental coletiva. Taí algo que não temos por aqui, nossas cidades são muito pouco amigáveis. Como se sente alguém com necessidades especiais dentro de um ambiente que tenso para os ditos normais?


Minha história serve como referência de erro de avaliação. 
Não sou autista. 

Minha primeira suspensão foi no pré primário. Minha babá, santa Conceição, que reencontrei recentemente, diz que eu era "agitadinho", um eufemismo dito por alguém que foi de certa forma foi minha segunda mãe. Agitadinho é, para dizer o mínino, risível. Hoje imagino que acabou o ano e devem ter feito uma festa pela minha saída da escola.

Dos primeiros dias no novo colégio me lembro da palmatória dada com uma régua pela professora. Sei que meu comportamento não foi fácil para eles, do colégio, muito menos para meus pais que eram chamados para conversas praticamente todos dias. Depois de não sei quantas suspensões e infinitas vezes que fui parar na diretoria, conseguiram se livrar de mim.

Em razão do ótimo aluno que foi meu irmão, acabei sendo aceito em um dos mais tradicionais colégios de São Paulo e Brasil, regido, sim, regido por padres úngaros beneditinos. Mais quatro anos de suspensões e outros problemas. Eles também conseguiram se livrar de mim, desta vez expulso na segunda semana do último ano letivo do ginásio.

A única escola que minha mãe encontrou depois da expulsão na segunda semana de ano letivo foi uma que aceitava "semi expulsos". Óbvio que na segunda semana já chamaram minha mãe. Foi a última. Por ela tomei juizo. A verdade é que no Nossa Senhora do Brasil, uma escola que juntava alunos com problemas disciplinares e outros mais, me senti em casa, descobri que eu era gente.

O colegial fiz no Liceu Eduardo Prado, uma escola com educação experimental, reconhecida e respeitada. Acabaram meus problemas disciplinares e principalmente os de minha santa mãe. OK, os que estudaram comigo sabem que eu quase fui levado para o DOPS como terrorista, mas eram ocorrências típicas daquela época. Acredito que minha avó tenha intervido por baixo dos panos e a história acabou resumida num passa moleque na diretoria - felizmente. 

Fui muitíssimo mais disciplinado e fácil de lidar que amigos meus, incluindo os que estudaram comigo no colégio regido por padres de onde fui expulso. Nos colégios onde fiz o primário e o ginásio o aluno tinha que se encaixar em regras que extrapolavam e muito as de necessidade da educação. Condição social, leia-se financeira, princípios da família, leia-se seguir as regras que atendesse os preceitos da igreja, e conceitos sociais, leia-se não ser diferente, leia-se de esquerda, traziam consigo dedos acusatórios apontados. 
 

Há um dado econômico que prova por a+b que as localidades mais ricas e com melhor IDH (+ uma letrinha que nunca me lembro qual é) são aqueles com farta diversidade. Quanto mais diversidade, melhor todos índices humanos e econômicos. Quanto mais ambla a informação circulando, maior é a visão geral, ou a inteligência coletiva. Quanto mais fechada é a sociedade, ou tacanha, mais atrasada. 
Mesmo em países, estados ou cidades diversos, ricos e com alto IDH, há dificuldade para entender e se adaptar aos mais diferentes, os que têm algum comprometimento social, mental ou clínico mais acentuado. 

Neste hospício generalizado que vivemos, quem são os loucos? A afirmação, que parece gozação e banal, em certos países onde a saúde mental da população em geral é precária, fundamentada em besteiras, ou viciada, faz todo sentido. Exemplos é que não faltam, inclusive os muito próximos.

Nascido em 1955, sou filho de uma mulher 11 anos mais velha que meu pai. Mesmo casados, os problemas começavam e não param por aí naqueles tempos. E se desquitaram, aí piorou. "Não quero meus filhos convivendo com filho de desquitada", foi dito com todas as letras por uma tia.
 
Sei que tenho problema de comunicação verbal, passo por cima de palavras, sou exagerado, hoje menos explosivo que num passado não muito distante. Minha memória sempre foi péssima, exceto para mapas... E por ai vamos.

Para completar, sou hiper-hipo glicêmico, tenho uma curva glicêmica em zig-zag, o que me causava picos glicêmicos, que por sua vez me fazia mudar de comportamento muito rapidamente, dai as explosões. Minha instabilidade glicêmica me levou a quatro pré-comas glicêmicas, o que causa cãimbra no corpo todo ao mesmo tempo.

A primeira pré coma glicêmica foi no colégio de padres, no meio de uma aula. Por conta da cãimbra integral (todo corpo entra em cãimbra ao mesmo tempo) passei a enrolar a fala, o que fez com que os padres afirmassem que eu estava possuído e falando latim. Primeiro acharam tinha tido um ataque epilético. 
Depois de minha expulsão descobri a existência de um relatório afirmando que eu sofria de esquizofrenia, o que para um pré adolescente não foi nada fácil de encarar.

A segunda pré coma glicêmica foi Guarujá. MInha tia sempre disse que eu tive um ataque histérico ou chilique. Pelo menos na hora ela contornou a situação molhando minha boca com whisky, o que subiu a glicemia. 

A terceira foi numa corrida de mountain bike em Araras, sub distrito de Petrópolis, e desta tenho recordações divertidas. Passei a linha de chegada e comecei a travar. O médico que me atendeu era um amigo (infelizmente não lembro o nome dele) que me vendo contorcer em cãimbra começou a gritar "Arturo, seu filho da puta, você não vai morrer na minha mão". 
Só esta última pré coma glicêmica não teve reflexos na minha vida social. As duas primeiras deixaram um carimbo de louco aceito por muitos. 

Aí vieram minhas participações em reuniões de trabalho onde o sangue começava a ferver com algumas coisas que não concordava. Não demorava muito eu reagia forte. 


Não sou autista, mas a cada dia tenho mais dificuldade no convívio.

É comum que em festas, que praticamente não vou mais, ou reuniões de família ou amigos, eu termine na pia lavando pratos. Numa destas fugidas da confusão amigável uma amiga mais ligada se deu conta que eu tinha sumido e me encontrou lavando pratos. Ela voltou para a porta da cozinha e gritou o povo que estava lá, "Pessoal, o Arturo encheu da gente e está lavando pratos". Não perdi a deixa, abracei ela, e rindo disse para todos, "É verdade, os pratos estão mais divertidos". Uns riram, outros nunca mais me convidaram para reuniões ou festas. O bom é que ali foram separados os bons amigos dos convenientes.

domingo, 31 de março de 2024

1964 - 1986: 60 anos depois, o que realmente foram aqueles anos?

História, a real, é redentora. A única saída para esta estupidez bipolar que vivemos no Brasil é contar a história dos anos militares sem adjetivos, culpados, heróis, vítimas. O que foi o Brasil entre 64 e 86, ganhos, perdas, erros, abusos...? A história já foi contada? Tenho certeza que não, por ter sido parcial. Tenho certeza que entre histéricos havia um país, uma população e tudo mais relacionada a vida destes dentro do contexto do mundo de então. Mesmo quem viveu aquela época só tem uma visão muito particular dos acontecidos, o que influencia, e muito, uma visão particular, portanto distorcida, daquele momento. Precisamos urgentemente de muitos Laurentinos Gomes e de John Lukacs para começar a passar a limpo nossa história da segunda década do século XX, principalmente aqueles 22 anos da vida no Brasil. Sem isto continuaremos sendo mais um país de histéricos se digladiando inutilmente. 

quinta-feira, 28 de março de 2024

errei

Como você lida com seus erros?
Começaria com como eu lidei num passado próximo com meus próprios erros.


Tive... Melhor, e recomeçando, estou tendo semanas de pequenos (?) problemas irritantes, alguns minha responsabilidade direta, portanto erros meus, outros causados pela forma como o país funciona, portanto como nós permitimos que funcione. Vai aqui a lista de "diversões" (irritantes)
  • Vivo: 3 ou mais anos para resolver a questão da minha linha fixa por fios metálicos
  • Eletrolux: comprei 220 V. Diz uma amiga que trabalha com seguros que é uma espécie de pegadinha. O clique para 127 (110) V ou 220 V está em baixo do pedido e muita gente passa batido.
  • óculos: o mostruário de escolha das lentes multifocal mostra um ângulo de visão sensivelmente diferente da realidade. 
  • compra errada dos raios para uma roda nova que tive que montar: a explicação é longa, deixa para lá, mas a dor de cabeça foi uma ..... Aliás, um dos aros veio meio oval.
  • Dasa, laboratórios de análise clínica: fizeram mais uma vez uma confusão com agendamento de meus exames e pagamento. Saúde, incluindo a paga, está um caos
  • ..., ...., ....
Muitos diriam: "a culpado é o outro". Eu fui educado e treinado para sempre olhar qual a minha responsabilidade sobre os erros cometidos pelos outros.


O caso da Vivo... Desde 1987 tinha uma linha telefônica fixa, 3816-1166. Com muita frequência parava de funcionar, piorou mais ainda quando aterraram os fios. Vinham consertar e nunca resolveram para valer. Numa delas ligaram no vizinho. Noutra, consertando a linha do vizinho conseguiram derrubar minha internet e liga-la no vizinho. Dentre outras. Faz uns 5 anos, ou mais, fiz o pedido para desligarem a linha. Para que pagar se não usava, melhor, não conseguia usar? Foram a minha casa duas vezes e as tentativas de desligar a linha fixa por fios derrubava minha internet por fibra ótica. Como é que é? Sim, entenderam bem, a explicação é longa, mas certeira, e paro por aqui. 
Bom, encurtando, finalmente desligaram o 3816-1166 sem derrubar a internet. Ufa!

O que aconteceu no caso Vivo? Simples: o setor vendas conversa com o setor de atendimento técnico interno, que conversa com setor técnico externo, de rua, que conversa com os técnicos de rua que são terceirizados, que por sua vez tem que conversar com os técnicos da Vivo que não são os primeiros técnicos da Vivo aqui citados, mas os que habilitam o serviço prestado pelos terceirizados... Opa, quase esqueci do setor de engenharia, que faz seu trabalho, entrega, e tchau! Enfim, quem conta um conto, aumenta um ponto. No caso em questão, diminui um ponto, ou muitos. O setor de vendas não faz a mais remota ideia do que acontece na rua, mas acredita e tem como única referência o que diz o setor de atendimento técnico interno. E assim vai.
Vivo é exatamente a mesma companhia que no passado se chamava Telefonica, que teve que mudar seu nome para Vivo para apagar a péssima imagem que tinha perante o público.


Deixo a pergunta: o que realmente aconteceu para o Centro de São Paulo ficar sem energia elétrica por mais de uma semana? Culpa da Enel? Só culpa da Enel? De minha parte definitivamente não acredito. É uma resposta muito simples para ser verdade. O que mais? Quem mais? Por que?....
Repito exatamente a mesma pergunta para o caso Vivo. E para o caso Dasa, óculos...

Acredito a cada dia mais e mais que a palavra culpa é um erro terrível, um termo que não deve ser usado. Em vez de "culpa", prefiro pensar em "o que aconteceu de verdade?". Quando se tira a palavra culpa e se livra dos acusatórios, as respostas e os resultados são sempre melhores que culpando, dito tenho toda certeza.

Repito com todas as palavras: os problemas que nos atormentam no dia a dia são resultado de nosso silêncio absolutamente vergonhoso.
Perguntarão vocês a este que escreve: então por que não foi lá e reclamou. Responderei: reclamei, mas estou cansado, já paguei minha cota de tentar ajudar nesta vida. Reclamei um monte de vezes no passado via Procon, desta vez via ouvidoria, escrevendo para jornal e por outras vias. 
Minha casa e mais outras nove casas foram invadidas num curto período, cinco terrenos vizinhos de um lado da rua e cinco vizinhos do outro lado da rua. O único que foi fazer boletim de ocorrência fui eu. O delegado que atendeu disse que não era coisa de ladrão. Uns dias depois apareceu uma corretora imobiliária perguntando a todos se queriam vender suas casas. O único que fez B.O. fui eu. 
Esta história dá a resposta do porque estou cansado. Ainda vou para as ouvidorias, mas é triste constatar que nem nelas acredito mais. 

Sobre o Brasil de hoje: quem cala consenti.

- Não me interessa o que o outro fez para você, mas o que você fez para ele fazer o que fez - Dona Lollia, minha sábia mãe.

Sobre esta frase quero fazer uma explicação preciosa. Lollia, minha mãe, foi uma mulher comum, muito inteligente, mas comum, até fazer uma mastectomia radical e entrar num tratamento de câncer brutal. Belíssima, vaidosa, detalhista, viu todos seus valores serem varridos pelo tsunami. Poderia ter qualquer resultado, mas Lollia reviu todos os seus valores e descartou as besteiras, os erros grosseiros, as inconsistências, e construiu uma linha de posições sensatas, pragmáticas, eficientes. Resumindo: dar valor ao que realmente tem valor. Parece fácil, mas não é, ou se tem noção do que é valor, do que realmente vale, ou se valoriza o que não serve.

Aprendi ou estou aprendendo a respirar. Ou fico mais louco que já sou. Ainda me sinto louco, insano. Reclamo demais, critico demais. Estou de saco cheio. Gostaria de viver em paz, mas o Brasil que temos é exatamente o que o caso Marielle está expondo, com todas letras, pontos e vírgulas, sobre o que se tornou o Rio de Janeiro e, para bom entendedor, o que é todo o Brasil. Quem delira o contrário?

Pouco ou nada adianta só reclamar; aliás, é muito perigoso só reclamar porque quem só reclama e não exige ver resultados fica sujeito a ouvir "Vai mané!". E nós, brasileiros, não paramos de ouvir deboches.
Pedro e o lobo!

domingo, 24 de março de 2024

Há saída para a crise da bicicleta?

Há uma saída para a crise...? Sim, há. Sempre há saídas para qualquer crise. O caso da bicicleta não é diferente.

Assim como o automóvel particular, a bicicleta, a movida a propulsão humana, não elétrica, não deve desaparecer. São várias as razões, mas o prazer de pedalar, o bem-estar, a sensação de poder, dentre outras que são e continuarão sendo à únicas bicicleta. O que resta saber é qual a escala que o futuro reserva para a bicicleta tradicional. Talvez alguém tenha uma projeção, mas eu nunca vi. Quanto espaço ela perderá para as elétricas, o que é líquido e certo, é o que definirá como fica o setor produtivo, de vendas e manutenção. O resto, estrutura urbana e afins, talvez sofra alguma mudança, mas ainda não dá para prever qual. 

O que quer que venha acontecer, o futuro da bicicleta dependerá e muito da cultura do pedal estabelecida em cada população. 

Ponto básico: nada está isolado, tudo está interligado, inclusive e com certeza o setor da bicicleta também. 
Faço um aparte; o mundo está globalizado, como esteve desde..., (na minha ignorância) vou colocar o Império Romano. A diferença é que hoje estamos muito mais conectados e uma mudança da China tem reflexos praticamente imediatos no resto do planeta. Não precisa ser ligado diretamente ao setor afetado, muito pelo contrário.
 
Acontece alguma coisa que parece não ter nada a ver e pimba! acertou em cheio no setor de bicicletas. Pode ser até fake news ou notícias vindas de um mago das redes sociais.
 
Dados de PIB e IDH comparados com o número de usuários da bicicleta apontam uma relação direta entre o número de usuários de bicicleta, estabilidade individual, social e do setor. Quanto mais ciclistas, melhor o PIB e o IDH, aliás, menor o índice de violência, melhor a saúde, melhor a educação das crianças, melhor o comércio interno do bairro..., melhor, melhor, melhor, melhor..., e muito menos trancos no setor.

Outro fator extremamente importante é o nível educacional e cultural dos usuários. Quanto mais alto, menor a possibilidade de embarcarem numa moda ou desvairio. 

Quando se coloca no cálculo nível educacional, consciência, civilidade, forma, função, tudo com boa qualidade, a reposição geral do setor de bicicleta se torna lenta, ou, o setor caminha devagar e sempre, sem grandes picos para cima ou para baixo.
Já quando os índices sociais são baixos, como é o nosso caso, parte do mercado vai aos trancos, parte vai relativamente bem por conta da baixa qualidade das bicicletas vendidas para a população de baixa renda. Custa barato, quebra, troca pelo mais barato, troca de novo...

Houveram outras crises no setor de bicicleta além desta que estamos vivendo. A que se apresenta é profunda, resultado de um erro grosseiro de avaliação de todo o setor, que embarcou numa bolha previsível e muito inflada pela pandemia mundial.

Repito: "Não é vender bicicletas. É vender uma ideia, mais, contextualizar um conceito sem cair na armadilha do óbvio, e sem acreditar em cenários que não se sustentam" ouvi num almoço.

O maior inimigo que a bicicleta (bicicleta de verdade, as movidas por arroz e feijão e pedal) são as elétricas. Espero que a sociedade entenda o que está acontecendo.

Tem um "pequeno" detalhe que não se pode descartar: a China veio a público para avisar que está mudando sua política industrial, portanto comercial. Eles querem e estão entrando e vão entrar mais pesado ainda no setor de mobilidades elétricas, inclusive com preços subsidiados. Para se fazer ideia da brincadeira, em uma das fábricas de automóveis elétricos mais modernas do planeta, a Nio, a China está perdendo US$ 35.000,00 em cada automóvel vendido. Não, não estou maluco, a cada automóvel vendido eles perdem US$ 35 mil, ou, 35 mil dólares, como queira, simples assim. Se eles 'brincam' assim no mercado de automóveis, porque não vão brincar da mesma forma no mercado de mobilidade elétrica que o planeta aposta que é futuro da humanidade?
E o governo central chinês avisou que a política industrial deles vai dar um imenso pula para a sofisticação tecnológica, o que deixa dúvida de como ficarão os setor de tecnologia mais básica, o que inclui o das bicicletas.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Setor da bicicleta em crise: Brasil

Faço um aparte para falar do Brasil. O mountain bike fez uma revolução em todo setor da bicicleta brasileiro. Antes do mountain bike, Monark e Caloi tinham praticamente todo mercado de bicicletas nas mãos. A base de vendas estava toda voltada para a população de baixa renda. As bicicletas eram de baixa qualidade, para dizer o mínimo, mas as vendas eram volumosas. Na década de 80 o Brasil era o 3° maior fabricante de bicicletas no mundo. A chegada das mountain bikes quebra um jogo muito bem estabelecido e o brasileiro descobre que "bicicleta não é coisa de pobre", como se dizia na época.

Se nos primeiros anos do mountain bike foi uma festa, inclusive com o número de competidores crescendo rapidamente, ajudando inclusive o ressurgimento do ciclismo de estrada, a intervenção com mão pesada da Confederação Brasileira de Ciclismo, leia-se Caloi, obrigando todos a cumprirem as regras da UCI, praticamente mata o que vinha bem e tinha futuro. O mountain bike de competição demorou anos para se recuperar, e com ele os lucros do setor. Infelizmente repetiram o mesmo erro grosseiro que haviam feito com o BMX. Era um esporte de família, praticamente desapareceu por interesses burros e mesquinhos.

Houveram mais crises no setor do que a que se apresenta agora. Aliás, trabalhar com bicicleta no Brasil é para quem tem estômago forte. Esta crise que vivemos é resultado de um erro grosseiro de avaliação de todo o setor, não só no Brasil, que embarcou numa bolha previsível, muito inflada pela pandemia mundial.

"Não é vender bicicletas. É vender uma ideia, mais, contextualizar um conceito sem cair na armadilha do óbvio, e sem acreditar em cenários que não se sustentam". A frase não é minha, a ouvi num almoço e digo que ela acerta na mosca.

Para que o setor da bicicleta no Brasil tenha a estabilidade esperada é necessário varrer os amadores, aproveitadores, e colocar no seu devido lugar os delirantes ideólogos. É preciso tratar como um todo, com princípio, meio e fim, e principalmente a manutenção de tudo. Falo do setor de produção e vendas, mas sobretudo os que definem políticas públicas. Aliás (de novo), educação não é a chave de tudo? Então porque esta verdade não vale para a bicicleta e os ciclistas? Ou alguém acha que se vai construir algo apontando o dedo para todos que estão em volta?

Apresentar números de crescimento sem detalhar é 'causo' para entrar no "Como mentir com estatísticas" do Darrel Huffy, sucesso editorial desde 1956. Brasileiros não são nada afeitos a números, dados, e menos ainda a verdades. Exagero meu? No caso das bicicletas tudo fica mais crítico porque bicicleta é apaixonante. Misturar paixão (que sempre é pessoal) com negócio ou política pública não dá certo, acho que já está mais do que provado. 

domingo, 17 de março de 2024

Setor da bicicleta em crise; mais uma vez

Eu entrei no mundo da bicicleta e dos pedais no meio da década de 70, quando o setor vivia sua maior crise, não só aqui, Brasil, mas no mundo. O marco desta crise fica patente quando se vê a qualidade das bicicletas vendidas então: um lixo. O número de usuários da bicicleta diminuía sem parar, o que afetou toda cadeia de produção, que por sua vez teve que cortar custos, o que reduziu sensivelmente a qualidade geral da bicicleta, peças e acessórios. Como consequência o número de ciclistas diminuiu, e estava criado o pior ciclo vicioso possível. 

Antes de continuar, deixo dito que não sou historiador ou pesquisador, que o que escrevo a seguir vem de lembranças de leituras e conversas que tive pela vida. Serve só como referência para quem queira se aprofundar no assunto, que é vasto, interessante e muito significativo do que aconteceu não só no mundo da bicicleta, mas da vida de todos em geral. 
E entro no assunto porque numa das revistas especializadas, a Bike Magazine, saiu um artigo mostrando números, que não são nada bons. 

Voltando:

O ressurgimento mais marcante da bicicleta em toda sua história que tem como marco Amsterdam, a partir de 1972. A luta por mudanças em cidades Europeias não começa aí, mas o retorno da bicicleta como peça importante para recuperar a qualidade de vida de todos sim. Nos Estados Unidos, uma década mais tarde, surge o fenômeno mountain bike com sua alta qualidade, resistente, divertida, precisa, segura, e, mesmo sendo uma bicicleta vendida como esportiva, pode-se dizer que ali deslancha mais outra ressurreição da bicicleta como modo de transporte, agora abrangendo um público muito mais amplo e diverso, talvez a mais abrangente de sua história.

O primeiro ressurgimento vem logo depois do início do fim dos biciclos, final do século XIX, com o início das vendas da bicicleta de segurança, basicamente a que conhecemos hoje, e uma sensível diminuição do preço devido à consequente padronização, tornando-a acessível ao grande público. 
O boom do uso das bicicletas nos pós Primeira Guerra Mundial (1914-18) e Segunda Guerra Mundial (1939-45) foi decorrência do colapso total urbano e econômico sofrido pela Europa, principalmente, mas não só.
A primeira crise do petróleo, em 1973, pela primeira vez questiona o uso indiscriminado do automóvel e dá um empurrãozinho para a bicicleta. É muito provável que tenha ajudado os movimentos populares europeus que pediam a recuperação da qualidade de vida nas cidades, o que ajudou na melhoria da segurança do uso da bicicleta.
 
O crescente caos urbano causado pelo uso irracional do automóvel é que vem colocando a bicicleta em pauta como bem mais que uma alternativa de transporte. 

Estes e outros momentos das sociedades e das suas economias obviamente afetaram o setor da bicicleta. Poderia falar sobre as causas das crises sofridas pelo setor, mas o resumo é mais ou menos simples: em momentos de estabilidade econômica e muito dinheiro circulando a bicicleta entra em crise. 
O que diferencia o momento que o setor está vivendo agora é um fator novo: a entrada das elétricas, não só bicicletas, mas de todas as mobilidades elétricas, que ao que tudo indica vieram para ficar. 
A questão é que o setor de bicicletas ainda está montado muito voltado para fabricação e vendas de bicicletas movidas a arroz e feijão. Em outras palavras, a concorrência agora é interna, ou "fogo amigo". Vem aí uma mudança muito maior que se possa imaginar, não só no setor de bicicletas, mas nas cidades e principalmente na cabeça das pessoas.

Há uma sensível diferença entre o que aconteceu nos Estados Unidos e na Europa em cada um destes momentos históricos da bicicleta. Estados Unidos foi muitíssimo menos afetado pelas duas grandes guerras do que a Europa, que ficou completamente devastada, principalmente depois de 1945, onde a bicicleta se transforma numa importante alternativa de transporte, e porque não dizer sobrevivência. A Primeira Guerra Mundial foi uma guerra de campo, a Segunda Guerra Mundial foi uma guerra de mobilidades e urbana, ou seja, destruiu praticamente toda infraestrutura de transporte. Mesmo em vias em péssimas condições, onde automóveis tem muita dificuldade de rodar, pedalando sempre é possível achar caminhos e seguir em frente.
A diferença de escala de mercado se dá porque enquanto a bicicleta europeia era e continua sendo uma bicicleta para transporte urbano e diário; a americana era voltada essencialmente para o lazer, ou uso eventual.

Mountain bike entra no mercado a partir de 1984. Foi sobretudo uma moda esportiva / urbana / divertida que estourou num país de longas distâncias e cidades desenhadas para os automóveis, e com muito dinheiro circulando. Antes do mountain bike, bicicleta era coisa de criança, aliás, de bem poucas crianças americanas. Era difícil ter onde pedalar. A maioria morava em cidades do automóvel. Mais, muitos moravam e seguem morando em subúrbios, distante do trabalho, comércio, serviços e mesmo sendo tranquilos, são monótonos. Normalmente toda estrutura urbana não tem qualquer infraestrutura para ciclistas, não raro pedalar é proibido ou restrito a parques. Tudo jogava e de certa forma seque jogando contra a bicicleta nos Estados Unidos, mas está mudando, NY é um dos exemplos mais recentes.

Um cartaz numa locadora de Amsterdam ironiza as diferenças: "Americanos usam capacete. Nós (holandeses) pedalamos".

Ao contrário dos Estados Unidos, os europeus com suas cidades pequenas, no geral com urbanismo ou influência medieval, ruas tortas, estreitas, muitas criadas então só para pedestres ou cavalos, aproveitaram o ressurgimento do interesse pela bicicleta fortalecendo políticas de incentivo não só para os ciclistas, mas todos os não usuários do automóvel. O termo "mobilidade ativa" surgiu muito tempo depois; antes era usado "mobilidades não motorizadas", apontando para o automóvel como o centro do universo.

A febre do mountain bike se espalha pelo mundo e muda o padrão de qualidade das bicicletas, mudando alguns padrões de precisão e confiabilidade inclusive na Europa. Passada a primeira mania do mountain bike as vendas caíram, mesmo assim houve um aumento do uso da bicicleta nos Estados Unidos e o surgimento de movimentos de pressão para melhoria da segurança dos ciclistas. Acompanhando todo este movimento cresce o setor, os fabricantes de bicicletas, peças e acessórios começam a fabricar suas bicicletas mais básicas no oriente, Japão, Taiwan e China. O setor muda completamente seu perfil, entrando numa nova era, a da bicicleta confiável. Estados Unidos e Brasil deixam de estar entre os cinco maiores fabricantes de bicicletas do planeta. China entra para valer no mercado e em pouco tempo tem suas próprias marcas para concorrer com as grandes americanas e europeias, uma em particular: Giant.  

O pensar europeu é muito mais pragmático, voltado a soluções coletivas, funcionais, que se sustentem a longo prazo. A bicicleta, que já era uma tradição europeia, veste como luva de pelica nesta forma de pensar, mesmo assim as mudanças vieram lentamente, assim como o crescimento do mercado de bicicletas. Vale lembrar que uma pesquisa realizada na Suécia aponta que 27% dos usuários da bicicleta se pudessem iriam de carro, o que faz todo sentido no meio daquele frio, chuva e neve.

Holanda, o país referência, é pequeno e plano, as distâncias entre as cidades são curtas, se não está ventando, ou nevando, que é mais raro, ir pedalando é muito prático, econômico e agradável que num automóvel. Ali a bicicleta tem tudo a ver, mas a imensa maioria são bicicletas básicas, as 'old dutch', velhas holandesas. 

Neste últimos anos se viu uma quebradeira das grandes marcas de bicicleta americanas que se firmaram apoiadas no fenômeno mountain bike, mas não só entre elas. Segundo um artigo, Cannondale foi administrada com paixão e não razão, o que lhe causou sérios problemas. Várias marcas sofreram com a paixão pelo negócio. Paixão é uma coisa, negócio é outra. Misturar os dois costuma não dar certo. Negócio exige frieza, racionalidade, compreensão do ambiente de negócios.

Ponto importante para esta dificuldade das fabricantes e do setor que vem acontecendo faz tempo é a troca da bicicleta por pequenas motos ou scooters mundo afora, principalmente na China. Importante dizer que a relação do povo chinês com as bicicletas foi bem ruim até que Mao Tsé-Tung impôs, sim, impôs o seu uso logo no começo da Revolução Comunista. Faz alguns anos o governo chinês novamente criou estímulos para que a população deixe as motos e scooters e volte a pedalar. 
 
A alternativa dos fabricantes frente aos novos desafios do mercado foi de novo estimular mais uma 'moda', agora as 29, bicicletas de estrada, gravels, dentre outras categorias. Interessante notar que o mercado europeu sempre foi menos suscetível a trancos e bolhas, e a razão pode estar que lá eles são pragmáticos. A bicicleta tem que levar daqui para lá e voltar, para facilitar a vida. Modas, novidades? 
A pandemia ajudou demais o mercado, que acabou virando uma bolha. Parece que a pandemia não foi bem entendida como uma situação especial. Acabou a pandemia e os estoques de todo setor ficaram inchadíssimos. 
É impressionante a miopia histórica do setor de bicicletas. Repetindo: paixão é uma coisa, negócio é outra. Misturar os dois costuma dar ruim.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Quando seu valor é o da sua bolsa, ou bolso


O pequeno detalhe na foto acima é o preço. Quanto? R$ 239.810,00. Não, a vírgula não está errada. Você entra na loja e eles confirmam, "duzentos e trinta e nove mil e....". Uma bolsa. Não é o código? Não, não é. Tem quem compre? Tem. E não é a mais cara. 
Numa papelaria de bairro, tirando um sarro da loucura do preço, e perguntando para a mulher simples que estava ao lado se ela pagaria, ouvimos lá no fundo uma voz de uma bela menina, "Se eu tivesse dinheiro para pagar, compraria. A (não me lembro o nome da cantora americana) tem dinheiro e comprou, eu também compraria, se tivesse dinheiro compraria". Ups! Vai responder o que?

A questão é "quem sou eu?", que já faz tempo se pode traduzir em "quanto eu valho?". Entro e saio rapidamente da discussão sobre capitalismo que talvez passe pela cabeça. Quanto mais eu leio, mais fica claro que o "quanto eu valho" definitivamente não é uma questão capitalista, de política, mas humana, que acontece em toda e qualquer ideologia, religião ou o que quer que seja. Ser ou ter é uma questão humana e não só, é um dilema que atinge todos animais e insetos, todos, sem exceção. Regra de sobrevivência, simples assim, só isto e nada mais.

Agora, bolsa de R$ 20.000,00, 30.000, 40.000,00..., R$100.000,00 (?)..., R$ 240.000...? E não para por aí, acreditem se quiser. Não sei o que estão pensando, mas eu não consigo entender. Ou consigo e não aceito, nem sei se tenho direito de aceitar ou não. Para mim é um símbolo de extrema pobreza. Não tem nada a ver com ser chique. 

"Vão se os dedos e ficam os anéis", ou, "Vão se os anéis e ficam os dedos"; that's the question! A versão original e popular é "Vão se os anéis e ficam os dedos", ou seja, tudo é possível recuperar, mas não a vida. Por um outro lado tem a questão religiosa, a da vida eterna, o quem eu sou hoje para ser lembrado amanha, e daí caímos no "Vão se os dedos e ficam os anéis" (para a minha lembrança quando chegar a minha vida eterna). Os dois tem seu valor, guardadas as devidas racionalidades.
 
A questão ambiental está provando que nem tudo que se perde é possível recuperar, aliás, dependendo do que está envolvido a perda pode ser simplesmente irreparável. Pensou nas brutais perdas com queimadas e desmatamento, na extinção em massa de espécies? Pensou correto, mas definitivamente não só. O incêndio no Museu Nacional foi uma perda simplesmente irrecuperável para a humanidade, para citar um único exemplo, completamente estúpido e trágico, dentre os infinitos que temos tido neste Brasil. 
O mesmo Museu Nacional era uma forma e eternizar um legado de cultura não só para os brasileiros, mas para a história do mundo, para a compreensão do planeta. Perda deprimente!

A preocupação com a perda dos anéis ou dos dedos define quem é cada um e quem somos nós em grupo. Por que não equilibrar prática e racionalmente o ter e o ser? Deste dilema simplesmente não escapamos. O desvario do ter nos trouxe pela história evolução que acabou por ser socializada para o bem de todos, sem exceção, ao mesmo tempo que o desvario do ter é um grave problema para o planeta. Uma bolsa de R$ 240.000,00? Aí é loucura, insanidade, para mim não faz o mais remoto sentido. E para mim não faria se tivesse todo dinheiro do planeta.

"Vai se o planeta e fica a humanidade", ou, "Vai se a humanidade e fica o planeta"? Este é nosso dilema do qual não há como fugir. A saída talvez, repito em minha santa ignorância "talvez", esteja num meio termo, mas qual? São tantos os meios termos, não são? Ouso afirmar então que a única saída que me parece sensata é colocar na mesa todos números e fazer cálculos de custos \ benefícios, tudo sem emoções, ideologias, religiões, o mais pragmático possível, para saber como se consegue algum equilíbrio que seja. Pelo que dizem os especialista, os anéis já se foram faz tempo. Os dedos? Talvez os tenhamos por uma pura ilusão, tão delirante quanto se achar mais gente porque tem uma bolsa de sei lá quantos mil Reais pendurada na mão ou no ombro. 

Vídeo sobre quanto realmente custa a fabricação de uma bolsa destas.





Quanto você pedala? Quanto você precisa de uma bicicleta top? Você quer sentir o prazer de pedalar ou se mostrar? That's the question!