quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Tara



Andava há tempos atrás de uma delas, uma necessidade, espécie de obsessão, se assim quiser entender. Fizera inúmeras cantadas, todas sem resultado. Numa delas quase perdi as estribeiras, mas parece que a dona morrerá agarrada a sua menina. Não lhe interessou eu afirmar que há duas décadas ela lá estava, empoeirada, encostada, e porque não dizer - desprezada. “Vai acabar virando tia” ainda brinquei e mais sério afirmei “Não sou tão mau assim, tão desprezível. Deixa comigo, vou tratar bem!”. Foi-se minha paciência e já não mais me interessa. Que bom uso faça a poeira e a ferrugem que do tempo há de vir, e também há de tomar a alma de sua dona. Vaidade, “recuerdos”, o que? Vai lá saber. Somos todos assim. Paciência. Caso encerrado. De volta para casa, só, desamparado.
Algumas beldades giram por ai e vez ou outra passam por perto, como para provocar e não se entregar. Estão com outros e seguem seus caminhos. Mal sabem elas como eu as trato delicadamente. Cheguei a ficar com raiva de um amigo quando depois de uma bobeira ela foi cair nos braços e pernas de outro e eu, de livre e espontânea vontade, fui devolver sua beldade em casa, limpa, cheirosa, deliciosa. Confesso antes também que dei umas voltinhas com ela, mas como a vida sempre faz com quem é muito sedento ela não é minha e ponto final.
Quando menos imaginamos acontece. Entro no parque correndo a pé e lá está uma gostosa, no meio de uns garotos. Linda, magricela, formas equilibradas, delicada, clássica, sóbria, pronta para ser socada por quem sabe como se deve fazer as coisas. Encostadas junto a ela no bebedouro estão duas vulgares, destas pagou levou que se encontra em qualquer ponto da cidade, basta ter um cartão de crédito ou dinheiro vivo. Passo correndo por ela deixando sem constrangimentos ou preocupação meu olhar indecente. Os garotos olham desconfiados. “É melhor continuar correndo”. Um pouco adiante entro no banheiro antes de seguir meus passos de tartaruga na corrida. Para ser bom é preciso estar em forma. E lá está um garoto, também vestido com roupas de ciclismo e aparentemente parte do grupo que guarda as meninas lá fora. “Provavelmente deve estar com uma das vulgares” penso, e puxo conversa.
- Que linda aquela menina que está encostada no bebedouro? Quem está com ela? O grandão?
- Não, ela é minha; diz ele sem o menor problema ou estranheza sobre a pergunta. Eu acho estranho porque a menina é muito alta para o moleque. Ele deve ficar pendurado nela. E comecei a pensar com meus botões que aquela situação tinha muitas variáveis estranhas e até não positivas para simplesmente dar certo. Mas como controlar esta ansiedade que me come, corrompe a alma e o bolso. Pervertido?
- Está a venda, continuou o garoto e a frase me deu um frio na espinha.
Meu Deus, eu que não costumo Citá-lo em vão e por coisas menores, peço ajuda. E ai, que faço? Do outro lado da linha, o Dele, silêncio completo. Porque Ele responderia a pequenas e idiotas questões de uma vida tão vulgar e apaixonada. Tirando minhas culpas e pensando bem, Ele provavelmente também deve gostar de lá suas voltinhas. Afinal, que bom homem não gosta delas? Com certeza deve estar dando bons olhos para esta história. Fiquei mais calmo e segui em frente. Afinal a vida é feita de prazeres. E o paraíso como fica? Em frente!
- Quanto? E a resposta dele com o preço veio rápida e certeira, assim como meu sim, que já estava preparado na garganta há muito. Não negociei, não tentei racionalizar, mais uma vez na vida fui movido pela pura paixão. Como diz o filósofo que sei lá quem era, provavelmente Vinícius de Moraes: “Sem tensão não há solução”. E então veio pela Internet a voz do Senhor e escreveu sem contornos “Vinícius foi uma boa tentativa, meu filho, mas na próxima vez seja um pouco mais letrado. Foi Roberto Freire, meu filho, Roberto Freire!”
Acertamos que eu pagaria imediatamente, uma boa e irresponsável quantidade de dinheiro por uma beleza que sequer eu havia olhado com mais calma, em quem não havia tocado, escorregado os dedos carinhosamente sobre sua superfície fina e lisa, com quem não havia saído para uma voltinha, não tinha ficado um segundo sequer. Nada. Puro impulso. Paixão a primeira vista, ímpeto doentio da emoção. “Idiota, descontrolado” culpei-me olhando os Céus.
Só depois de menos de uma hora, quando ela passou definitivamente para minhas mãos é que pude avaliar o tamanho da encrenca que havia me metido. Ela não andava em linha reta, estava um pouco capenga, puxava a esquerda como querendo cruzar a rua e entrar no primeiro bar para tomar um mé. Olhei bem para baixo, fechei um olho, e ficou claro que as pernas estavam tortas. A curva do guidão chacoalhava, solta; a corrente pulava. Os pneus e alinhamento das rodas nem dizer. Mesmo assim uns metros mais a frente minha experiência de navio escola fez minha felicidade florescer. Que romântico! “Meu bom Homem, tirei a sorte grande”; estava pedalando uma Fuji Del Rey, rodas 27, meio esportiva com guidão em curva, e mesmo com o olhar descuidado de todo a minha impulsividade ela estava original.
Cheguei em casa a noite e só no dia seguinte pude ver bem o que havia feito. O Homem lá em cima definitivamente gosta de bicicletas. “Ele” não tem tanta piedade assim com meu bolso, mas como Ele próprio diz “ajuda-te que ajudar-te-ei”. Definitivamente não podia ter gasto tanto com um prazer, mas o que fazer? Manter aquela beleza nas mãos de uma garotada que não faz idéia de como se deve tratar uma menina destas? Os dias seguintes foram de muito trabalho e novos prazeres. A Fuji estava praticamente toda inteira original. O nível de refinamento e detalhes da tradicional marca nipônica é impressionante. Todas as peças, mesmo as menores, têm o logo e nome Fuji estampado em baixo relevo. Todas as partes, mesmo as que estavam soltas ou desajustadas, depois de limpas voltaram a se ajustar praticamente com a mesma justeza de quando saíram de fábrica. O garfo desalinhado foi zerado cuidadosamente e a bicicleta quando voltou a rodar perfeitamente em linha reta. Aliás, que maravilha era esta geração de bicicletas. Tubos Ishivata tem uma resiliência fantástica. Não consegui descobrir o ano correto de fabricação, mas pelas peças foi possível avaliar que deve ter sido lá por 1982. Maravilhosa.
Como posso eu controlar meus ímpetos de paixão? A brincadeira custou o que os meus ganhos não podem arcar tão facilmente. Mas deito a cabeça no travesseiro e sei que hoje ela está guardada no Museu das Bicicletas como história, o que realmente ela é.

Nenhum comentário:

Postar um comentário