Foi num almoço na casa de minha avó como outro qualquer, mas que na saída, em vez de ir para o carro, ela me levou para a velha grande e misteriosa garagem. Correu um pouco a pesada porta de madeira, desapareceu no fundo escuro do espaço vazio e cheirando forte a mofo, e reapareceu com uma bicicleta empoeirada e já um pouco enferrujada.
- Toma, é sua. Não pude dar antes porque seu pai não permitiu.
Não sabia bem o que responder nem o que pensar, mas fiquei muito feliz e ao mesmo tempo desapontado por ganhar uma bicicleta nova naquele estado. Não era meu aniversário, nem qualquer outra data que merecesse sequer uma lembrança. quanto mais um presente. Até demorei um pouco para tomar posse dela e tomá-la com as próprias mãos. Sabia o porque daquela situação. Um pouco antes do meu aniversário eu fora expulso do colégio. Não interessou a ninguém, exceto minha mãe, saber o porque da expulsão, se havia sido justa ou injusta. Meu pai, principalmente, havia ficado fora de si com a situação. Eu nunca fui um anjo propriamente dito, mas aquele colégio de padres vindos de uma Europa em II Guerra Mundial também não era flor que se cheirasse. Fazia um bom tempo que eles estavam aos poucos convidando alunos considerados inconvenientes, leia-se pobres, mal ajambrados, filhos de famílias de esquerda ou com qualquer posição considerada incomoda aos interesses da escola, além de desajustados, a se retirar. Eu me encaixava em algumas categorias. Aproveitaram minha revolta com a expulsão ridícula de um amigo, Rogê Ferreira, sobrinho de um político da esquerda, e me chutaram no embalo. Não houve uma conversa civilizada para averiguar o que realmente acontecera. Inquieto, arteiro, disperso desde criança, se houvesse distúrbio da ordem já se sabia bem quem poderia ser apontada como responsável. Minha culpa estava definida antes, durante e futuramente. Naquela situação não havia o que fazer a não ser receber a bicicleta. Colocar toda história em pauta para discutir minha versão provavelmente significaria mandar a coitada da bicicleta de volta trevas da garagem fedida e escura, local dos infernos. Ela não merecia.
Não deu para sair pedalando porque o pneu estava vazio. Continuei com a bicicleta na mão, simplesmente olhando. Fazia muito tempo que não tinha uma. Muito tempo. A minha e de minha irmã foram roubadas quando ainda éramos crianças. Desde então pedalava nas bicicletas de primos e amigos. Aquela era minha. Demorei, mas sorri aberto e dei um beijo em minha avó sem largar a bicicleta. Ela ficou quieta, feliz, vendo minha reação. Deu as costas, foi até o Fusca, abriu a porta e puxou o banco para frente.
- Como a gente vai colocar esta bicicleta ai dentro? Se demorar muito ai olhando ela não vai poder encher o pneu e dar umas voltas. A tarde já vai acabar. Fez novo silêncio, olhou nos meus olhos com olhar grave. – Seu pai não queria que eu te desse esta bicicleta agora. Diz que você não se comporta bem, mas eu acredito em você. Comporte-se bem. Não brigue com seu pai.
Limpando a bicicleta em casa fiquei com um pouco de raiva de toda história. Afinal, ganhar uma bicicleta nova que esteja suja e enferrujada não é bem ganhar uma bicicleta nova. Deixar a coitada jogada seis meses no fundo daquela garagem úmida... Deu um bom trabalho fazê-la ficar apresentável. Enchi os pneus e sai para minha primeira volta, que não queria terminasse jamais. Voltei quando o cansaço já não deixava mais sequer lembrar por quais caminhos pedalei. A bicicleta era minha e pronto. Encostei na garagem, subi para jantar e antes de dormir ainda desci para olhá-la novamente. No dia seguinte mostrei para meus amigos e ninguém conseguiu entender bem porque uma bicicleta nova estava com cara de velha.
– É mentira do Arturo, disse um deles provocando, - Quem compra uma bicicleta nova usada? Só a família do Arturo.
Deixei passar sem responder, olhar fixo na minha bicicleta; minha! Deixei o pessoal sair para umas pequenas voltas, controlando aos gritos para evitar fossem longe de minha vista. Minha bicicleta! Mas todos andaram nela. Minha bicicleta!
Não demorou muito e passada a época dos passeios e corridas entre amigos a bicicleta passou a me lavar mais longe, algumas vezes bem longe. Meu pai nunca falou sobre o assunto bicicleta e minha santa mãe evitava expressar qualquer preocupação, se limitando a uma vez ou outra pedir um dolorido “meu filho... toma cuidado”. Se eles soubessem... E deviam saber de minhas aventuras porque sempre aparecia na casa de meus primos, que não era exatamente na outra esquina de nossa casa. Fofoca de família corre mais rápido que chamada de telefone.
Um dia fui até o supermercado fazer algumas compras para minha mãe e deixei a bicicleta parada na porta. Obviamente ela foi roubada. Fiquei perplexo. Naqueles tempos aquilo não era coisa que pudesse acontecer. De novo sem bicicleta e mal sabia que a partir de então por um bom tempo de minha vida. A adolescência chegara, amigos e primos tinham outros objetivos, e eu próprio mudei. Ou quase. Havia uma Sears e lá alguns modelos de bicicletas que de vez em quando ia dar uma olhada. Mas eram caras para mim e a coisa ficou por muito tempo na paquera.
A troca de escola foi a melhor coisa que poderia ter acontecido em minha vida. Descobri que eu podia não ser exatamente um aluno padrão, mas também não fugia muito à regra. Na nova escola a classe era mista. Naquela escola, dita de expulsos, com aquele pessoal, dito indisciplinados, eu me sentia gente. Não sei bem o que sentia na escola dos padres, mas não podia ser normal. No meio da minha gente a vida era leve, fácil, amistosa. Foram anos felizes. Ótimas amigas. Eu era então pedestre. E assim fiquei por muitos anos, mesmo depois que tirei carta. Dirigir era o máximo, mas caminhar trazia a magia da calma, e então era tudo que eu queria. As poucas vezes que tive uma bicicleta nas mãos foi maravilhoso, como um reencontro predestinado. Praticamente tão bom quanto as mulheres. Mulher é mais macia e aconchegante, sem dúvida. Foi por ai que conheci a expressão “casar ou comprar uma bicicleta”. Duvida cruel.
- Não dá para ter mulher sem casar? Acho que encontrei a fórmula mágica!
Só muitos anos depois do roubo voltei a ter uma bicicleta. Não era exatamente minha, mas de meu irmão, santo irmão. Não sei bem quantas vezes ele a usou, mas bem posso imaginar quantas vezes eu a pedi e ele me emprestou. Por um longo ano, este foi o tempo até que eu finalmente pudesse comprar a minha própria bicicleta, igual a dele, mas amarela. Infelizmente nunca saímos para pedalar juntos, e este é um dos vazios de minha vida. Mas meu irmão, em sua eterna boa vontade e sabedoria no bem levar as pessoas, sempre dispôs de sua bicicleta prata para quem quer que fosse pedalar com seu irmão caçula. Provavelmente percebeu que o moleque levado e inquieto acalmava depois de umas pedaladas. E assim foi e sempre será.
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