sexta-feira, 5 de maio de 2023

Mulheres

O elevador desce lentamente passando por andares. Abre-se a porta, entra uma jovem mãe com sua filha no colo. Produção independente. A criança de colo tímida, uma menina, agarra-se as roupas da mãe e olha pelo espelho o desconhecido que está no elevador. Ele faz caretas, ela finge que não vê, mas acha graça e se entrega a brincadeira. A mãe sorri para o velho careteiro. Produção independente, será ela por ela. Vai levar a linda menina para escola. Ele as vê passando caminhando leve e felizes.

Mais uma vez a mãe de Ana é chamada à escola. De novo Ana foi vestida com o uniforme do Corinthians e brigou para entrar no time dos meninos. "Deve ter alguma coisa errada com Ana", diz a orientadora. "Não, não há. Ela é a única menina na família, todos primos são meninos, ela só brinca com meninos. Não vejo problema em ela estar vestida de futebol e querer jogar com os meninos"  responde a mãe com um tom duro, olhando nos olhos da orientadora e completa "Mais alguma coisa?". Sem resposta da orientadora atônita, levanta-se, se despede e dai da sala. 

O quarto do hotel da Disney está todo revirado. O responsável pelas pré-adolescentes está dentro do quarto com o gerente do hotel que sem meias palavras diz que se não parar a bagunça amanhã todas têm que deixar o hotel. As quatro anjinhas sentadas nas camas estão de cabeça baixa contendo a risada. O responsável por elas dá bronca, dispensa o gerente, fecha a porta e porta fechada completa a bronca com dificuldade para se controlar e não rir. As anjinhas continuam com a cabeça baixa, trocam olhares, e sem troca palavras, mas  ato ensaiado, levantam-se juntas e abraçam forte o pobre homem que se derrete e imediatamente muda o tom de voz. Na noite seguinte o gerente vem de novo ao responsável rindo, dizendo que vieram as quatro pedir desculpas, mas voltaram a fazer bagunça, agora um pouco menos problemática.

O jovem adolescente americano que está fazendo intercâmbio finalmente aparece na praia. Está fazendo intercâmbio, fica mais uns dias no Rio de Janeiro. Vestido em com uma bermuda até os joelhos bem americana, pele branca, mas de corpo bem formado, vai sendo apresentado aos meninos e meninas. Uma delas está deitada de barriga na canga sobre a arreia, abre os olhos, cruza as mãos debaixo do queixo, só vê as canelas do menino, dá um "oi" a distância e volta ao seu banho de sol. Todos vão jogar bola, a bem formada adolescente é chamada atenção pela tia pela forma como o tratou e manda que também vá jogar com os outros. Não se mexe. Não demora muito a bola cai perto, joga um pouco de arreia em seu braço, ela torce o pescoço, abre um olho e aí presta atenção no estrangeiro. Senta na canga, olha o garoto mais uma vez, levanta-se sorrindo, sem jeito senta na cadeira que está ao lado, e estica seu olhar lento e muito interessado de alto a baixo no americano. Animada vai jogar. De volta ao apartamento, banho tomado, sentada no sofá entram primos e primas adolescentes junto com o americano. Ela de novo olha com muita atenção o garoto, levanta-se passa pela tia avisando que vai mudar para a casa onde estão todos, principalmente o americano.

O marido compra duas bicicletas, a dos seus sonhos de grande ciclista e uma bicicleta feminina com cadeirinha para a sua mulher passear com o pequeno filho. Depois dos treinos vez ou outra ele se animava para levar a linda mulher e seu filho para uma breve pedalada. Ela reclamava da breve pedalada, de sempre fazerem a mesma coisa. Um dia ele dá uma de bonzinho e diz para ela ir junto, que no meio do passeio ele faria um treino de subida e que ela ficaria pedalando no plano com o filhinho na cadeirinha. Saem os dois e ela decide subir junto com ele, que reclama, diz que a subida é longa e que ela vai se cansar. Ela não para, ele acelera, ela acelera, pedala mais forte e acompanha, ele força mais ainda e começa a ficar exausto, ela passa por ele e segue em frente, bicicleta feminina com filhinho na cadeirinha e tudo mais. De volta a casa ele está desconcertado. Sentam no sofá, criança solta pela sala, ele olha para ela e pede desculpas. "O que você gostaria de fazer?". Dias depois a cadeirinha está na bicicleta dele e ela começa a treinar para competir.

Foi jogadora de vôlei até se casar, teve quatro filhos, foi boa mãe, boa companheira, boa esposa, só se perdia um pouco quando transmitiam algum jogo de vôlei pela TV. O marido pediu para a sogra ficar com os quatro filhos, queria ter um tempo com a mulher. Saem os dois e vão jantar, ela se sente feliz, lembra o tempo de namoro, a vida a sós dos dois. No meio do jantar ele tira um papel cuidadosamente dobrado do bolso e coloca na mesa. Ela pergunta o que é e ele responde sem hesitar "Tua liberdade, vai jogar vôlei. Daqui para frente eu cuido das crianças que não são mais tão crianças assim". 

Elaine pede divórcio. O juiz faz a pergunta obrigatória por lei, por que quer se separar? Sem papas na língua ela responde apontando para o (ex) marido: "A única coisa que funciona nele são os cinco membros". Espanto geral dura segundos e a gargalhada estoura na audiência de reconciliação. Divorcio imediata e irremediavelmente assinado, ela está livre.

O casamento não foi bem, a bem da verdade nunca foi. Os dois ficavam sentados na frente da TV sem trocar palavra. Nunca ele perguntou a ela como iam as coisas, como estava a vida dela. Ele trabalhava o dia todo, chegava em casa cansado, tinha o jantar posto a mesa para depois do banho, e TV. Naquela noite ela pediu o carro dele para comprar cigarros, ele deu as chaves. Ela ligou o motor, abriu o portão, manobrou com cuidado, ele olhando pela janela da cozinha preocupado com o carro novo. Não ousou dizer "cuidado". Ela demorou para voltar, ele nem percebeu vendo o jogo, chegou caminhando a pé, entrou em casa, ele já cochilava na poltrona. Ela o chacoalhou, ele abriu os olhos, ela estava com a chave do novo carro pendurada na ponta dos dedos, ele agradeceu sem entender. 
- Vai pegar ele (o carro) na ponte. Eu vou pegar minhas malas que estão prontas. Meio adormecido ele não entende bem.
- Você não viu as malas no quarto quando foi tomar banho?
Perplexo e já furioso pergunta,
- Para onde você pensa que vai?
- Para o aeroporto. Embarco daqui umas horas para a Europa sozinha, livre. Vou viver.
- Como aeroporto? Cadê meu carro? O que houve com ele? Cadê meu carro?
- Quando eu voltar, repito, quando eu voltar, sei lá quando, explico. Aliás, quer saber, explico já. Sabe o córrego? Então, o teu carro está fazendo companhia para os peixinhos. Mas não se preocupa porque o segurança e toda vizinhança está tomando conta dele, ninguém vai roubar. 

Luciana passou sua vida cuidando de sua mãe e tia doentes. Verônica passa a vida cuidando de sua mãe e tia doentes. É responsabilidade de mulher estes cuidados, homem não tem jeito para estas coisas, dizem, e todos em volta sumiram. Somem de perto de doente sem o menor pudor da mesma forma como todos somem dos deveres de casa das mulheres; lavar, limpar, cozinhar, cuidar das crianças, dos velhos e doentes. Deveres das mulheres, só das mulheres? Luciana foi a luta e conseguiu comprar toda futura herança dos irmãos, com isto ganhou a liberdade de calar a boca de quem quer que seja, mas foi só ela que cuidou da mãe e tia doentes até estas morrerem. Mesmo já entrando na velhice está livre, é dona de seu nariz.

O marido de Elídia está tão doente que tiveram que chamar uma equipe para cuidar dele. Fizeram bodas de ouro com festa animada, agora terminou, ele está lá na cama. Um dia abriu a geladeira e percebeu com grande susto que nestes 50 anos de casada só fez o que ele gostava e que já não sabia mais o gosto dos prazeres que tinha. Fez um simples ovos mexidos com torradas e se deliciou. Ficou sentada na mesa um bom tempo vendo a sala vazia. Levantou-se, deixou os pratos na pia sem lavar, subiu as escadas, parou na porta do quarto que virou a enfermaria do marido e pensou com certo remorso "Estou velha e livre. O que faço agora?" Foi para o quarto e pela primeira vez na vida deitou-se no meio da cama de casal desligou a luz do lustre que sempre odiou, ligou o abajur, olhou para o vazio do teto por uns instantes, disparou a rir. Esticou o braço, pegou o celular, ligou para a velha amiga que logo atendeu.
- Estou livre
- Ele morreu? O que houve? Quer que eu avise...; e foi interrompida
- Não, não, ele não morreu. Eu que me sinto livre, sabe o que é isto, me sinto livre. Comi uns ovos mexidos que estavam maravilhosos; e antes que a amiga conseguisse dizer qualquer coisa completou,
- Então, onde vamos almoçar amanhã? 

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