quarta-feira, 7 de maio de 2014

versões da história

Menina pedalando uma 10 clássica prata, 20 e poucos anos de magreza, beleza e rosto variando do enfadonho para o mal humorado, fone de ouvido, olhar fixo e perdido para a rua à frente, talvez perdida em algum pensamento. A paisagem passa no ritmo da música escolhido por ela. Do passado restarão imagens criadas, particulares, um mundo muito particular.
Um dia cheguei num jantar de família e todos já estavam com a macaca, prontos para provocar, debochar e rir. Cumprimentei todos, sentei e um primo, gente finíssima, perguntou se eu tinha ido de bicicleta e sem querer meteu fogo no circo. Virei mico de circo de cavalinho. Até servirem o jantar, um longo tempo de gozações sobre a minha opção. Aconteceu lá por 1980, quando só um pequeno punhado da classe média usava a bicicleta. Gente normal ia de carro.
Uma década depois, já com o mountain bike na moda, jantando com as mesmas pessoas da família, entrei, cumprimentei todos e sentei. E o mesmo primo de antes virou-se para mim, ai com seriedade e respeito, e disse: “Comprei uma mountain bike. É muito legal...” E antes que ele terminasse eu cai na gargalhada... e infelizmente ele se ofendeu.
Viver a história é uma coisa. Saber contar a verdadeira história, com isenção e justiça é outra, sábia.
O pai está deprimido por conta dos problemas da relação muito deteriorada com os filhos. Foi bom pai, mas com um temperamento muito difícil, sempre fazendo coisas do arco da velha, impróprias, muitas delas realmente grosseiras. Os filhos têm muitas razões para querer vê-lo longe, o que faz que não consigam ver que se hoje eles têm um futuro é principalmente pelo que o pai foi e fez. A cada encontro, hoje raros, a conversa acaba caindo na armadilha da raiva, do ressentimento, da versão individual da história de cada um.
“O tempo diz tudo a todos”, repetia minha mãe. E completava “Não guarde suas raivas, seus ódios; não vale a pena”.
A Escola de Bicicleta teve que mudar o início do texto sobre a história da bicicleta. Infelizmente passou batido que ainda estava no ar alguns parágrafos citando o desenho da bicicleta de Da Vinci como o marco da invenção da bicicleta. Não é! O desenho, tão divulgado e conhecido por todos, é obra de um monge que queria notoriedade, nada mais. Da Vinci seguirá sendo o inventor da bicicleta.
Há pouco interesse... Melhor, é difícil desfazer uma versão estabelecida da história. E dependendo da necessidade a história real, com olhar sobre todos pontos de vista, sobre a dinâmica dos fatos, as individualidades, o ambiente...
Yn-Yang!
Na TV, como sempre, um banho de sangue. Olho por olho, dente por dente. Mais uma mulher linchada e morta; uma bala perdida; um assassinato...
Logo depois, no jantar, uma discussão sobre política, praticamente olho por olho, dente por dente, aos passos da procissão da comissão da verdade.
Pela janela da sala de jantar olho para fora. Lá em baixo passa pela rua um ciclista piscando suas luzes. Que música estará ouvindo?

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