Menina pedalando uma 10 clássica
prata, 20 e poucos anos de magreza, beleza e rosto variando do enfadonho para o
mal humorado, fone de ouvido, olhar fixo e perdido para a rua à frente, talvez perdida
em algum pensamento. A paisagem passa no ritmo da música escolhido por ela. Do
passado restarão imagens criadas, particulares, um mundo muito particular.
Um dia cheguei num jantar de
família e todos já estavam com a macaca, prontos para provocar, debochar e rir.
Cumprimentei todos, sentei e um primo, gente finíssima, perguntou se eu tinha
ido de bicicleta e sem querer meteu fogo no circo. Virei mico de circo de
cavalinho. Até servirem o jantar, um longo tempo de gozações sobre a minha
opção. Aconteceu lá por 1980, quando só um pequeno punhado da classe média
usava a bicicleta. Gente normal ia de carro.
Uma década depois, já com o
mountain bike na moda, jantando com as mesmas pessoas da família, entrei,
cumprimentei todos e sentei. E o mesmo primo de antes virou-se para mim, ai com
seriedade e respeito, e disse: “Comprei uma mountain bike. É muito legal...” E
antes que ele terminasse eu cai na gargalhada... e infelizmente ele se ofendeu.
Viver a história é uma coisa.
Saber contar a verdadeira história, com isenção e justiça é outra, sábia.
O pai está deprimido por conta
dos problemas da relação muito deteriorada com os filhos. Foi bom pai, mas com
um temperamento muito difícil, sempre fazendo coisas do arco da velha, impróprias,
muitas delas realmente grosseiras. Os filhos têm muitas razões para querer
vê-lo longe, o que faz que não consigam ver que se hoje eles têm um futuro é
principalmente pelo que o pai foi e fez. A cada encontro, hoje raros, a
conversa acaba caindo na armadilha da raiva, do ressentimento, da versão individual
da história de cada um.
“O tempo diz tudo a todos”,
repetia minha mãe. E completava “Não guarde suas raivas, seus ódios; não vale a
pena”.
A Escola de Bicicleta teve que
mudar o início do texto sobre a história da bicicleta. Infelizmente passou
batido que ainda estava no ar alguns parágrafos citando o desenho da bicicleta
de Da Vinci como o marco da invenção da bicicleta. Não é! O desenho, tão
divulgado e conhecido por todos, é obra de um monge que queria notoriedade,
nada mais. Da Vinci seguirá sendo o inventor da bicicleta.
Há pouco interesse... Melhor, é
difícil desfazer uma versão estabelecida da história. E dependendo da
necessidade a história real, com olhar sobre todos pontos de vista, sobre a
dinâmica dos fatos, as individualidades, o ambiente...
Yn-Yang!
Na TV, como sempre, um banho de
sangue. Olho por olho, dente por dente. Mais uma mulher linchada e morta; uma
bala perdida; um assassinato...
Logo depois, no jantar, uma
discussão sobre política, praticamente olho por olho, dente por dente, aos
passos da procissão da comissão da verdade.
Pela
janela da sala de jantar olho para fora. Lá em baixo passa pela rua um ciclista
piscando suas luzes. Que música estará ouvindo?
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