sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Primeiras viagens pedalando


Em 1978 fiz minha primeira viagem pedalando, fui até Bom Jesus do Pirapora na época das romarias e procissões de Corpus Christi. Não tinha segredo: Castelo Branco até o trevo de Santana do Parnaíba, pegar a estradinha que acompanha o rio Tiete até Bom Jesus do Pirapora. Conhecia perfeitamente o trajeto em carro, o motel de preferência ficava por ali, também, mas não só. Transar num silêncio total e depois relaxar ouvindo de fundo as águas do córrego limpo e o coaxar dos sapos foi inesquecível. Inesquecível até o dia que tomei um choque e quase virei presunto, mas isto é outra história. Pedalar e ver as matas e várzeas do Tiete depois de Santana do Parnaíba com calma, podendo parar onde queria, foi delicioso. Pena que na época não ia para o motel pedalando com minha namorada, aí seria divino total, mas naquela época mulher não fazia estas coisas, para quem não sabe o que elas não faziam, trepar nem sequer pensar numa viagem no pedal. Mulher não podia ficar mal falada e qualquer motivo era motivo. A coisa era tão atrasada, ou retardada, que até eu tive que ficar quieto sobre esta minha pequena aventura para não ficar mal falado, ou pior afamado do que já era. Já era, afinal, eu usava bicicleta para lá e para cá, coisa que um jovem educado não era muito apropriado para um jovem bem educado. Que seja, assim era.
São Paulo era muito menor, o mato começava um pouco depois das marginais do Tiete e Pinheiros. A Castelo Branco era uma estrada moderna, larga, com acostamento, muitíssimo menos movimentada, muito diferente do que é hoje. A estradinha para Bom Jesus do Pirapora tinha bem pouco movimento, poucas casas e indústrias, tão perto de São Paulo e tão interior.
Fui numa Caloi 10 com um bagageiro feito de barrinha de aço de pequeno diâmetro e cromado em formato de 7, de desenho delicado, chique, mas frágil. Carregando uma mochila relativamente leve e amarrada aos poucos foi embarrigando e tive que parar para desentorta-lo umas duas vezes para continuar. Os pneus 27 X 1 3/4 daquela época furavam e deformavam com frequência assustadora, mas para minha felicidade foram e voltaram sem problemas. O selim era um horror, uma peça de plástico duro só com uma espuminha de nada para enganar. Pouca redução, pedalada dura contra o vento da Castelo e nas subidas, mas rodava divinamente bem no plano. Água? Que água? Para que? Eu lá sabia que ciclista precisa beber água. Juventude acha tudo ótimo e lá fui eu para os 48 km de ida, plano na Castelo e sobe desce da estradinha. Não faço ideia que hora saí e quanto tempo demorei, mas lembro que cheguei no meio da tarde. Lembro disto porque antes de Bom Jesus há uma subida curta e muito íngreme, boa para ciclista de primeira viagem pendurar a língua. Parei no topo, virei o corpo e olhei para trás com raro prazer para várzea do Tiete.
Bom Jesus foi divertido porque não tinha mais lugar nos hotéis, eu também não tinha muito dinheiro para estes luxos, e acabei dormindo no chão de uma praça ao lado da igreja junto com um mar de romeiros vindos a pé, cansados e também felizes. Demoraram para parar de tagarelar, talvez tenham tagarelado toda a noite, mas eu capotei. Muitos estavam ali pela farra, poucos se levantaram quando os sinos tocaram para ir a primeira missa. Desta viagem só me arrependo de não ter ido em frente, seguido até Cabreúva e depois Itu, o que só vim a fazer muitos anos depois e recomendo. A Estrada dos Romeiros, que segue acompanhando o rio Tiete a partir de Bom Jesus do Pirapora, é um dos lugares mais bonitos e agradáveis de se pedalar aqui próximo a São Paulo. Infelizmente a sorveteria de Cabreúva que ficava ao lado da igreja fechou. Tinha um sorvete de milho que era dos deuses.

Demorei para repetir a dose. Passei anos descobrindo a cidade de São Paulo no pedal e só voltando para estrada quase uma década depois quando fui de São Paulo para Cambuquira, exatos 300 km de porta a porta. Creio ter feito em 3 dias pela Fernão Dias: São Paulo - Vargem, Vargem - Pouso Alegre, e finalmente Cambuquira, cada trecho com 100 km numa Cruiser Extra Light com um bagageiro legal e alforjes. Mesmo com muito mais leitura que quando fui para Bom Jesus do Pirapora cometi erros básicos. Sair na louca, no tudo vai dar certo, no vamo que vamo, pode ser empolgante, mas não vale a pena, mesmo que tudo dê certo como 'inesperado'.
O primeiro trecho foi uma loucura, pelos 100 km de cara, pegando a serra de Mairiporã e Atibaia, e depois entre Atibaia e Bragança Paulista uma ventania de frente que me fez pedalar com toda força nas descidas dando graças a Deus que as subidas faziam sombra para o vento. Não me lembro das minhas paradas para comer ou beber, só de ter chegado exausto em Vargem, onde fui até uma vendinha de secos e molhados bem pobrezinha para comer um sanduíche e beber tubaína, já que nem Coca-Cola a vendinha tinha. O sanduíche foi com sardinha em lata, Gomes da Costa. O pessoal tava lá para o mé, que vendia mais que água, uns minduim, fatia de queijo (de minas) e jogar conversa fiada fora. Encostado no batente de uma das portas de madeira fiquei olhando o povo passar pela rua estreita de paralelepípedo e me deleitando com um pôr de sol alaranjado, glorioso.

Lembro bem do quartinho extremamente simples que consegui para dormir em Vargem, pequena cidade ainda com ares de São Paulo do café do século XIX. E da névoa fechada na estrada quando parti. A plantação de morangos em Extrema, uns km depois, que nunca tinha visto pessoalmente e demorei para entender o que era. Da parada para o almoço onde tomei seis Coca Colas seguidas para espanto do dono do restaurante. Eu não fazia ideia do que era hidratação. Um pneu estourado perto de Pouso Alegre que troquei no acostamento e joguei fora no mato mesmo, um absurdo que nunca me perdoei. De ver a placa do trevo na Fernão Dias indicando Campanha, Cambuquira, Lambari, “Enfim!”. De meu espanto com a lonjura dali até Campanha, nunca sentida num carro. E a sensação incrível de prazer quando da estradinha de Cambuquira vi a casa de minha prima Sara no topo do morro, onde fiquei descansando uns bons dias. Cambuquira tem águas maravilhosas, e a comidinha mineira... Bons dias.

Uma semana depois segui viagem indo para Caxambu, Passa Quatro, Aparecida do Norte. As manhas eram muito frias, mas a saída de Caxambu em particular foi um dos momentos que mais senti frio na minha vida. Tive que parar uns quilômetros depois porque tinha as mãos completamente congeladas. A estrada era linda, e espero que continue assim, cercada por imensas árvores, num corredor mágico que lembrava uma entrada interminável de grande fazenda de café. Dormi em Passa Quatro, sai com uma manha mais quente, felizmente, e pedalei bem até o topo da serra, que estava com a vista limpa de todo vale do Paraíba, sem uma nuvem, sem névoa, limpa, linda, maravilhosa, distante. Parei e fiquei olhando aquela imensidão por um bom tempo e não parei de admira-la nem quando comecei a descer com a bicicleta. É uma descida veloz, na época era uma estrada de pista nos dois sentidos, e num destes momentos que me perdi na paisagem, fui para a contramão, e só fui me dar conta quando estava muito próximo do radiador de um caminhão. Fração de segundo. Ainda lembro do rosto assustadíssimo dos dois que estavam na cabine do caminhão, que passaram raspando pelo guidão. Não sei como não bati na caçamba de madeira. Eles sequer tocaram a buzina, talvez porque também estivessem perdidos na belíssima paisagem.

Para minha sorte o trecho final, plano, no Vale do Paraíba, foi pedalado com um vento forte nas costas, tão forte que praticamente não tinha que fazer força nos pedais na última marcha da pesada Cruiser. Na Basílica de Aparecida agradeci, pela viagem e pelo diabo não ter me aceitado lá na descida da serra. Ou teria sido intervenção divina? Quem sabe? Agradeci. A Basílica não estava pronta, mas já era uma obra monumental, belíssima, coisa que Aparecida do Norte, a cidade, definitivamente não era (e continua não sendo). Peguei um ônibus e voltei feliz.

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