quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Comunicação de ciclista para ciclista

Logo a frente vai rodando o garoto na sua BMX. Ele baixa o pedal e deixa a pequena bicicleta com o selim lá em baixo deslizar com sua perna esticada e a outra perna cruzada, com uma leve garça. Um pouco a frente troca de perna e volta ser uma garça, e assim por diante, na dança típica do pessoal do BMX. Desliza rápido. A BMX é de primeira, pró, numa pintura alaranjada quase fluorescente. Eu vou me aproximando aos poucos admirado com a dança ritmada da pedalada e vejo comprazer e inveja ele dar um bob no meio fio e a água da chuva parada. Garça! Mesmo grudado nele não ouço o tocar da roda no chão.
Tomo um educado cuidado para ultrapassa-lo, abaixo a cabeça como saudação e também reverência, e sigo na minha cadência, com uma pitada de inveja de seu estilo. Vindo de frente na ciclovia um ciclista que de longe fica claro que está bêbado. Paro de pedalar por um momento e faço uma discreta sinalização com a mão direita com absoluta certeza que o BMX entenderá, o que realmente acontece. Pedalar com quem sabe é uma outra história. Diminuo mais um pouco a velocidade pedalando mais leve e toco a campainha para chamar a atenção do bêbado que se aproxima em uma linha incerta e gesticulando com a mão. Quando o bêbado está bem próximo levo minha bicicleta um pouco para o centro da ciclovia de forma a proteger o BMX. O bêbado passa por mim, olho para trás e ele passa sem problemas pelo BMX. Seguimos em frente com o BMX me seguindo em silêncio de perto. Vou desviando das poças de água deixadas pela chuva. Numa das esquinas diminuo a velocidade na frente de um carro para proteger o BMX e ele me ultrapassa e retribuiu a ação na próxima esquina. E assim fomos pelos 3 km da ciclovia. Não trocamos uma palavra, nem é necessário, só seguimos. Quando viro à esquerda ele passa por mim e disse simplesmente "Boa noite". 
Anteontem na ciclovia da Faria Lima uma menina, linda por sinal, quase arranca a camisa de um pedestre num trecho que ainda é só calçada para em seguida passar a mil raspando no braço de uma criança bem pequena que se segurava desajeitada na mão da mãe. A ciclista sequer diminuiu a velocidade, não sinalizou a aproximação, não pediu desculpas, seguindo em frente como se estivesse numa competição. Para que? Estava fugindo de mim? Ou era mais uma que vê as ciclovias um bom local para treinar? Não sei o que passa pela cabeça deste pessoal, mas tenho a clara sensação de que estão fazendo racha. Tão parecido com os boyzinhos...
Fazendo jus à verdade, esta insanidade não é uma exclusividade paulistana e muito menos brasileira. Munique é uma delícia de se pedalar... fora do horário de pico de final de dia. Ai cada parada em sinal vira largada de prova de curta distância. Acontece igual em outras cidades grandes da Europa. Londres é a pior. Confesso que não quero pedalar nas ciclovias do Tâmisa, até talvez por que tenha medo. Só vendo a velocidade que eles passam e o grau de agressividade de boa parte deles. O pior de tudo é que muitos destes enlouquecidos, aqui, ali, lá e onde mais seja, acham que sabem pedalar, e ai é que mora o perigo. São extremamente individualistas, o oposto do ser ciclista.
Como é raro quem consegue entender o que é uma bicicleta e mais raro ainda os que rezam pelos dogmas do pedalar bem, tenho sentido muita saudade do tempo que eu pedalava no meio dos carros. Era muito mais seguro. Experiências como a pedalada com o garoto do BMX estão se tornado joias perdidas na cidade.

Ciclismo é a arte da suavidade!

2 comentários:

  1. Também ressinto disso: suavidade. Não só no ciclismo, mas nas relações humanas, sejam comerciais ou pessoais. Tenho percebido ao longo dos anos (estou nos 62) o desaparecimento da gentileza ou mesmo a simples boa educação entre as pessoas. Que parecem levar à barbárie como padrão de comportamento, vide o noticiário policial...

    Começo a desconfiar que aqueles filmes de ficção apocalípticos estão errados... o futuro me parece bem pior.

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  2. Gentileza, com certeza gentileza. Onde está a gentileza?

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