terça-feira, 16 de setembro de 2025

Viver nas ruas e viver as ruas e a transformação das cidades

Em 1987 a revista Time aceitou que um dos seus jornalistas fosse viver nas ruas de NY por seis meses. Foi uma das matérias mais pesadas que li na vida. Ele teve tempo suficiente para não só entrar a fundo na realidade dos moradores de rua, mas também transformar se num deles. Cruzou o terrível inverno de NY vivendo como mendigo, sobrevivendo no calor das grelhas de exaustão de vapor, enturmando se em túneis de manutenção, em locais proibidos, dormindo de dia quando o sol esquentava um pouco, sofrendo presão da polícia e desprezo da população, comendo o que aparecia, pedindo esmolas, sem banhos, sem trocar a roupa. Mais, sem qualquer ajuda da revista, de seus companheiros de trabalho, amigos e da própria família. Mendigo, morador de rua, miserável como a materia demandava. Este foi o trato e foi cumprido. Mesmo com todas terríveis dificuldades passadas quando chegou o tempo de voltar para a vida 'normal' ele não quis sair das ruas. A Time teve um trabalho para conseguir trazê-lo de volta e reintegrá-lo a vida que ele tinha antes da experiência. Acho que encontrei a matéria - Slow decent into hell - mas estranho que nela não está o processo de retirada do repórter das ruas, que foi tão brutal quanto a sua experiência como mendigo.

Lembrei desta matéria do Time porque o Estadão colocou em suas memórias, que estão sendo publicadas na versão digital, a experiência da jornalista Rebeca Krischt que também foi Viver nas ruas, série especial do Estadão, vira livro nos 30 anos de sua publicação. Ela viveu nas rua por 7 dias aqui em São Paulo.

Há números oficiais e não oficiais sobre o número de moradores de rua na capital paulista, São Paulo. Variam de um pouco menos de 40 mil, que já é um absurdo, até algo em torno de quase 90 mil, o que é um escândalo, uma vergonha para todos.

Para mim ficou claro que tínhamos perdido a mão quando vi pela primeira vez, já faz décadas, um mendigo nissei. A comunidade japonesa sempre havia cuidado dos seus, nunca permitindo que alguém parasse nas ruas ou ficasse abandonado. Pouco tempo depois apareceu o primeiro homossexsual maltrapilho, comunidade que até ali também cuidava dos seus. Para mim foram marcantes até porque eu não estava errado: alguma coisa não boa estava a caminho. Está aí, berrando, para quem até não quiser ver.

O que dá para fazer? Não sou especialista, prefiro não opinar, mas digo que não dá mais para cair em soluções descontínuas ou mágicas. 
A busca de soluções eficientes e duradouras se faz reunindo todos agentes e interessados, olhando o passado, sabendo o que deu e o que não deu certo, juntando e estudando o máximo de informações possível, para só então partir para um planejamento de longo prazo que seja realista em todos sentidos. Vale para absolutamente tudo.

Sempre cito NY como referência de transformação de cidade, porque acompanhei o antes e o depois, e os resultados no geral são ótimos. Óbvio que o planejamento de longo prazo, décadas, foi bem sucedido. Transformou uma das cidades mais violentas dos EUA dos 82 assassinatos / 100 mil habitantes, (aceitável abaixo de 12/100 mil, OMS ONU), que estava a beira da falência, e a transformou numa cidade segura, financeiramente estável, que a cada dia é mais agradável para a maioria dos seus moradores e turistas. Turismo é importantíssimo tanto na economia quanto na venda da imagem da cidade para o mundo, ou seja, na estabilidade financeira da cidade. 
Tem contra ponto? Lógico que sim. Viver em NYC está cada dia mais caro, o que tem afastado os menos privilegiados para longe ou fora da cidade que sempre viveram. Enrequecimento, como tudo, tem seus prós e contras. Os efeitos colaterais preocupam não só as autoridades de NY, mas de todas as cidades que melhoraram sua qualidade de vida. Qualidade de vida para quem? Em que condições? Turismo traz dinheiro, mas a qual custo? Etc...

Vi uma palestra sobre o Tolerância Zero de NY na sede da Prefeitura de São Paulo, Edifício Matarazzo. Mostraram com detalhes o que custa para os cofres públicos e de toda população cada um dos pequenos crimes, até deslises sociais, como jogar bituca no chão, pixar uma parede ou mendigar. Mesmo antes desta palestra já tinha lido sobre o problema sério que os mendigos que ficavam sentados na escadaria da Catedral de St. Patrick estavam criando para as finanças da própria igreja. Aliás, desta e de todas outras. No caso, em vez de enxotá-los a cassetetes, fizeram reuniões com todos e explicaram que da forma como estava entrava cada dia menos pessoas, que por sua vez as doações estavam minguando, e sem as doações a igreja estava com dificuldades financeiras e não poderia continuar com seus trabalhos assistenciais, o que só pioraria a situação dos miseráveis. Funcionou.

No momento certo Janette Sadik-khan, com a cidade muito mais calma, menos violenta, começou a implantar mudanças nas ruas de NYC, tirando espaço dos automóveis e devolvendo espaço para transeuntes e ciclistas. Não foi só aumentar o espaço para os "não motorizados", como eram chamados na época, mas criar espaços de convivência, cadeiras, mesas, e outros, onde a população conseguisse sentar e fazer o que bem entendesse no meio da rua, leia-se espaço público.

Aqui, lembro que o centro de São Paulo está meio as moscas porque a população tem medo de ir lá, seja por medo de assalto, seja por medo dos moradores de rua, ou até para não ver miséria. 

Menos pessoas circulando, mais violência, é líquido e certo.
Menos pessoas circulando, menos dinheiro circulando, maior a miséria, também líquido e certo.

Por outro lado:
Mais dinheiro circulando, melhor para todos, incluindo os mais necessitados
Muito dinheiro circulando, sem o controle, sem uma política civilizatória, sem programas cidadãos, se transforma em um sério problema até para a classe média baixa. E aos poucos este problema se volta contra os que tem condições de bancar a vida na cidade 'rica'. 

Desajustados sociais foi, é e continuará sendo uma realidade inevitável. Para início de conversa faço a pergunta: Como definir desajustados sociais? A pergunta merece uma resposta realista, pricipalmente em nosso caso, Brasil. E para São Paulo, Município.

Moradores de rua, mendigos e pessoas com problemas mentais são considerados um sério problema para a maior parte dos paulistanos. "Incomodam demais". A questão sequer é pensada com o devido cuidado e atenção. "Tira eles da rua", como temos visto faz muito, definitivamente não resolve. É tão burro quanto o '
"prende quem usa ou tem drogas", o que obviamente nunca deu nem dá resultados, como os números provam. 

O que fazer então? Em todo planeta se provou que devolver os espaços públicos para a população, inclua aí ruas e avenidas, dá ótimos resultados. Quanto mais gente nas ruas, menos problemas com moradores de rua e miseráveis, isto sem higienização. Afastar, limpar, tirar, extinguir... os diferentes, empobrece, é líquido e certo. Não há dado que prove que higienização funcione, muito pelo contrário. Todos dados apontam para que quanto mais diversidade, mais riqueza em todos sentidos. Riqueza se constrói com a diversidade de pensamentos e formas de viver, ponto final. Quem duvida disto é porque não tem cultura, é chucro.

Distorções sociais se resolvem com programas realistas de longo prazo. Não há soluções fáceis, muito menos ideológicas ou religiosas. 




Estas fotos foram tiradas em Paris, onde quase apanhei de uma parisiense por estar fotografando um mendigo que dormia na escadaria de um edifío histórico. A mulher furiosa partiu para cima de mim e queria por todo custo que eu apagasse a foto. Tentei encontrar a foto, mas não consegui.
Negar uma situação não funciona, só aumenta o problema.


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