A praia é
maravilhosa, isolada, quase virgem, limpa, sem construções a beira mar, só com
algumas poucas passagens pelo meio da mata existente entre as ruas e as dunas
com vegetação rala. Faz três dias que o mar vem ficando mais agitado e neste
fim de tarde estava com ondas altas, picadas, irregulares, difícil para quem só
quer nadar um pouco para se acalmar. Não vejo os poucos surfistas que até ontem
ainda se arriscavam pacientemente para conseguir pegar ondas “gordas e curtas”,
segundo eles. Cruzar a arrebentação, que não acontece muito distante da praia,
e sair nadando a favor da correnteza me vai levar para onde está a sequência de
bandeiras vermelhas indicando perigo. Nado até onde as ondas da primeira
arrebentação param de espumar. Fico só com a cabeça para fora da água subindo e
descendo ao sabor das ondas como uma gaivota. Sou levado pela correnteza para a
frente das bandeiras vermelhas que somem e aparecem ao sabor das ondas. Fico de
costas para a praia olhando as ondas que vem e repasso páginas de Sidarta, de
Herman Hesse. Definitivamente minha vida não esta sentada a beira do rio
olhando as águas que passam, mas o marejar daquele mar a cada minuto mais
agitado vai aos poucos me dando paralelos de meus problemas imediatos, um
balançar de respostas que vão trazendo paz. Continuar boiando só vai me levar
para onde há mais bandeiras vermelhas.
São três
crianças, 10, 8 e 7 anos. Foi um dia particularmente difícil para nós, os mais
velhos. As três crianças juntas foram capazes de colocar em prática um ‘complô’
contra o pai, a avó e eu, que não sou nada ali, segundo eles próprios. Chegaram
a beira do desrespeito. Ou chegaram ao completo desrespeito premeditado. Não
sei mais, aliás, não sei mais nada, afinal são crianças, não fazem ideia do fio
da navalha que há entre a gozação e o escárnio. Não sabem o que é escárnio, mas
tem uma facilidade incrível de pratica-lo. Não fui pai, não sei quanto se deve
esticar a tolerância; sou de uma outra geração onde o respeito social era
princípio essencial. Sou de outro tempo, esta é a única dúvida que não me
resta. Nestes últimos dias conseguimos pelo menos evitar que sentem à mesa jogando
nos tabletes ou lendo gibis. Na casa deles os pais permitem. Algum controle a
qualquer preço tem preço. Ontem pela manha uma vizinha comentava que seu filho
de um pouco mais de um ano só senta a mesa se estiver com um celular na mão,
que sabe que é um erro, mas permite; e que o marido fica furioso. Pequenos mal
hábitos, pequenas concessões, grandes estragos ou pitadas de liberdade?
Liberdade? Duvido. As três crianças de casa dificilmente respondem quando eu e
a avó perguntamos algo. Somos serviçais e devemos, de preferência, ser
invisíveis. Me sinto mal como se comunicam com os pais. Praticamente fazem o
que querem. Eu não devo estar louco, talvez tenha algum direito que achar
anormal. Ontem passaram uma longa reportagem na Globo justamente sobre este
problema de crianças, melhor dizendo pais, que não tem ou dão limites com estes
aparelhos.
Ainda subindo
e descendo ao sabor das ondas do mar vejo que tudo está a cada minuto mais
agitado aqui assim como lá no apartamento. Dou braçadas fortes e vou para o
raso. Fico em pé nas minhas próprias pernas e saio andando, meio desequilibrado
com as ondas que ainda me pegam pelas costas. Saio d’água, cruzo a arreia, subo
o primeiro trecho de duna, paro e olho em volta. A praia está linda, já
contornada pela delicada névoa amarelada que vai chegando suavemente com o por
do sol. O mar está muito agitado, se vê mesmo de longe, mas lá dentro me senti
uma gaivota. Tenho que abrir as asas e voar.
Volto ao
apartamento e as crianças estão surpreendentemente tranquilas vendo Forest
Gump. Tereza conseguiu controlar a situação, não faço ideia como. Me pergunto
quem sou eu e qual o valor de meus valores. As ondas do mar não são as mesmas
nem nunca serão. Consigo boiar com muita facilidade, mas por mais que me
esforce parece que estou destinado a morrer com a inflexibilidade de um pau que
desce com a correnteza. Pau de chuva? Ou estou errado? Que Brasil é este?
Leiam a
notícia que Thiago Benicchio, do ITDP, fala sobre os problemas das ciclovias de
São Paulo. Estarei errado? Que cidade é esta?
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