Eu
me lembro de ver o campinho de futebol no fundo do vale antes da construção da
avenida. Lembro também vagamente da edícula de dois andares à esquerda de quem
ia para os fundos do terreno, de onde se via o campinho. O estranho é que
lembro bem da edícula para os homens, mas a memória não faz a passagem da
fachada desta para a lateral da mesma. A imagem que tenho é descontínua.
Na
minha época (anos 60) vivia lá, no segundo andar da edícula, uma criança com
alguma deficiência grave, paralisia mental, é isto?
Também não me lembro direito como era
a edícula. Afinal, a casa de vovó era bem mais interessante do que as edículas.
Sim, tinha Ana. Não sei o que ela tinha,
mas não saia da cama, não andava, e tinha que ser assistida 24hs, mas
conversava direitinho.
Não era criança, pois era a neta mais
velha.
Ela era uma espécie de tabu familiar,
que quase ninguém podia ver.
Por alguma razão que não me lembro
qual, um dia eu fui vê-la. Ela me recebeu tão bem, que guardo dela a melhor das
lembranças.
Nunca mais a vi, e até hoje não posso
imaginar porque a segregavam a esse ponto. Nem de longe era uma figura grotesca
ou apavorante. E olha que eu só tinha uns 10 anos (início da década de 50).
Imagina o que foi para o futuro da
família, principalmente naquela época (provavelmente década de 20), ter nascido
esta primogênita. E é fácil entender por que ela sempre foi escondida. Um
especialista em pessoas com necessidades especiais afirma que a cidade de São
Paulo tem hoje meio milhão de presidiários, seres humanos que não podem sair de
casa, vivem escondidos, não são comentados, inexistem até para relações mais
próximas ou mesmo internas da própria família.
Lembro de ter visto a porta da
edícula aberta uma única vez. O mistério para minha geração beirava o conto de
terror. Esta história sobre seu encontro com ela é muito forte. Muda
completamente toda a perspectiva dos acontecimentos da família.
Nossa história real corre em trilhos muito
diferentes de nossas crenças e verdades.
Brasil
tem um quinto de sua população invisível, inexistente. Mais invisíveis
que a bicicleta foi até bem pouco. Será que nós, ciclistas, não podemos temos
nada a oferecer a estes invisíveis?
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