domingo, 18 de março de 2012

Beleza, futuro, susto e inconsciencia


Dentro do vagão de metro, em uma composição que imagino seja dos anos 50 ou 60, de vagão pequeno, estreito, paredes finas e janelas grandes, a maravilhosa mulher jovem sentada a minha frente, pequena, delicada, de traços fortes e pintura de rosto discreta, não tira seus olhos verdes, como água translúcida de nascente, contornados por rímel azul escuro, do texto do I.phone. Seus dedos e unhas redondas, bem tratadas e pintadas num vermelho discreto, praticamente acariciam em movimentos suaves, como se ajeitasse a seda do lenço florido, a tela. O vestido preto preso à cintura por um cinto bem estreito feito de pequenos adereços variados e parisienses marca o corpo jovem de pernas cruzadas que apontam uma bota de cano longo e salto não muito alto. A expressão compenetrada traz a ela um ar elegante, de mulher...

Uma imagem explode na janela e nesta fração de segundo percebo passar luzes de janelas que vão na direção contrária, junto com o barulho de sua composição que logo silencia e só me resta a desorientação dos ecos e rangeres do metro que estou viajando. A deslumbrante jovem sequer moveu os olhos da celular. Para ela aquela composição que passou simplesmente não foi registrada, não existiu. Olho para os lados procurando rostos, expressões, e todos seguem em suas realidades. Minha cabeça assustada está acessando acidentes, colisões, o ocorrido nesta semana no túnel de Sierre, Suíça, onde 28 dos 50 passageiros morreram numa colisão sem explicação dentro de um túnel. Vinte e duas das vítimas eram crianças.

Lembro dos velhos filmes de competição de carros, dos primeiros anos de Fórmula 1 que acompanhei onde era comum haver algumas mortes por ano, de minhas loucuras quando comecei a dirigir, de colisões frontais que já vi. Passo para os biciclos, as primeiras bicicletas de roda grande na frente, que eram extremamente perigosas. Vejo a gravura de um livro que mostra uma “bonne shaker” (biciclo) prestes a começar uma descida íngreme onde se lê um aviso sobre o perigo da descida para os ciclistas. Muitos se machucaram feio, mas provavelmente machucar-se era natural à vida, a sobrevivência numa época ainda sem piedades.

Na linha do metro na qual estou as composições passam realmente muito perto uma da outra. A velocidade normalmente é baixa porque há muitas curvas, mas naquele exato momento íamos bem rápido. Nos acostumamos a que o sistema do ir e vir funcione, que coisas passem raspando sem que tenhamos qualquer reação. “Vai dar certo” está tatuado em nossas cabeças e não poderia ser diferente. Do contrário não teríamos seguido em frente.

Há um paralelo ai com a coisa virtual. Se a evolução fosse deixada para os mais velhos, a maioria assustada com as mágicas assustadoras desta nova era, não teríamos chegado onde chegamos. Mudou tudo, mas não mudou o processo de evolução. A cada evolução novos temores que depois se dissipam e só voltam a tona quando o que pode não dar certo volta, por alguma razão, à tona. E então os temores voltam, algumas vezes apavoram, mas normalmente passam. “Vai dar certo”.

Não me lembro qual o nome daquele filme no qual uma garrafa de Coca Cola cai de um avião e é pega por um menino de uma tribo primitiva da África, entendida como algo divino que tem que ser devolvida aos seus donos, homens europeus. Esta armada a confusão da novidade, o desconhecimento, e a procura por solução. Ninguém se entende porque a realidade dos fatos é tão obvia e distantes entre as partes que não faz sentido. O obvio não assusta. Depois que se habituou fica mais fácil, não se pensa nos efeitos, nas consequências.

O velho vagão de metro de Paris segue em frente. “Qual será sua manutenção?”, penso eu. A jovem maravilhosa continua ali, encrustada em sua tela. Seu mundo é outro. Como terá sido a transição desta nova geração de eletrônicos, binários, digitais, ou que quer que seja,  que hoje pedala comigo. Como foi sair da verdade virtual para a realidade dos pedais. Como terão sido as emoções, os primeiros medos, o cair na vida real do perceber, mesmo que só num sutil pensamento, que somos frágeis, mas que a liberdade vale mais que a fragilidade, o desaparecer. Será que o digital oferece esta opção de realidade?

Chegou minha estação. Espero a composição parar e aciono a alavanca de abertura da porta, que se abre. Desço, ando uns poucos passos, mas paro e volto meus olhos para as grandes janelas em busca de uma última visão da linda jovem. A composição passa e não a vejo. Está escondida no meio da massa, provavelmente olhando para sua tela. A composição entra pelo túnel e desaparece. Silêncio. Olho para escada de saída para rua e vejo que a vida continua.

Chove e faz frio. Caminho para casa de cabeça baixa e vejo no chão um jornal de hoje com uma manchete sobre o acidente de Sierre. Passados quatro dias a notícia ainda está fresca nos corações e mentes europeus. Acidentes como este são raríssimos por aqui, quase o oposto do que acontece no Brasil. Não se sabe a causa, mas há duas hipóteses fortes: mal súbito do motorista ou falha mecânica do ônibus. No dia seguinte já se falava nas medidas que devem ser tomadas imediatamente para evitar a repetição do fato. Mas todos vão se cruzar de frente bem próximos e rápidos.

Vou comer alguma coisa. Entro num restaurante e dou com um grupo de jovens sentados numa mesa, cada um teclando seu celular e todos em silêncio. O garçom deposita os pratos na mesa e só um deles olha para ele e agradece. Não há nem velocidade, nem colisão. De novo voo nas imagens e lembro um grave acidente aqui em Paris, com um Renault Clio destroçado na traseira por uma Mercedes. E um rapaz aos urros no celular. Segui em frente a pé para meus estudos. A curiosidade estava satisfeita. Depois das aulas já não me lembrarei mais da jovem, do susto, e desta colisão. A vida é assim.

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