Dentro do vagão de metro, em uma composição que
imagino seja dos anos 50 ou 60, de vagão pequeno, estreito, paredes finas e
janelas grandes, a maravilhosa mulher jovem sentada a minha frente, pequena,
delicada, de traços fortes e pintura de rosto discreta, não tira seus olhos
verdes, como água translúcida de nascente, contornados por rímel azul escuro,
do texto do I.phone. Seus dedos e unhas redondas, bem tratadas e pintadas num
vermelho discreto, praticamente acariciam em movimentos suaves, como se ajeitasse
a seda do lenço florido, a tela. O vestido preto preso à cintura por um cinto
bem estreito feito de pequenos adereços variados e parisienses marca o corpo
jovem de pernas cruzadas que apontam uma bota de cano longo e salto não muito
alto. A expressão compenetrada traz a ela um ar elegante, de mulher...
Uma imagem explode na janela e nesta fração de
segundo percebo passar luzes de janelas que vão na direção contrária, junto com
o barulho de sua composição que logo silencia e só me resta a desorientação dos
ecos e rangeres do metro que estou viajando. A deslumbrante jovem sequer moveu
os olhos da celular. Para ela aquela composição que passou simplesmente não foi
registrada, não existiu. Olho para os lados procurando rostos, expressões, e todos
seguem em suas realidades. Minha cabeça assustada está acessando acidentes,
colisões, o ocorrido nesta semana no túnel de Sierre, Suíça, onde 28 dos 50
passageiros morreram numa colisão sem explicação dentro de um túnel. Vinte e
duas das vítimas eram crianças.
Lembro dos velhos filmes de competição de carros,
dos primeiros anos de Fórmula 1 que acompanhei onde era comum haver algumas
mortes por ano, de minhas loucuras quando comecei a dirigir, de colisões
frontais que já vi. Passo para os biciclos, as primeiras bicicletas de roda
grande na frente, que eram extremamente perigosas. Vejo a gravura de um livro
que mostra uma “bonne shaker” (biciclo) prestes a começar uma descida íngreme
onde se lê um aviso sobre o perigo da descida para os ciclistas. Muitos se
machucaram feio, mas provavelmente machucar-se era natural à vida, a
sobrevivência numa época ainda sem piedades.
Na linha do metro na qual estou as composições
passam realmente muito perto uma da outra. A velocidade normalmente é baixa
porque há muitas curvas, mas naquele exato momento íamos bem rápido. Nos acostumamos
a que o sistema do ir e vir funcione, que coisas passem raspando sem que
tenhamos qualquer reação. “Vai dar certo” está tatuado em nossas cabeças e não
poderia ser diferente. Do contrário não teríamos seguido em frente.
Há um paralelo ai com a coisa virtual. Se a evolução
fosse deixada para os mais velhos, a maioria assustada com as mágicas assustadoras
desta nova era, não teríamos chegado onde chegamos. Mudou tudo, mas não mudou o
processo de evolução. A cada evolução novos temores que depois se dissipam e só
voltam a tona quando o que pode não dar certo volta, por alguma razão, à tona. E
então os temores voltam, algumas vezes apavoram, mas normalmente passam. “Vai
dar certo”.
Não me lembro qual o nome daquele filme no qual uma
garrafa de Coca Cola cai de um avião e é pega por um menino de uma tribo
primitiva da África, entendida como algo divino que tem que ser devolvida aos
seus donos, homens europeus. Esta armada a confusão da novidade, o
desconhecimento, e a procura por solução. Ninguém se entende porque a realidade
dos fatos é tão obvia e distantes entre as partes que não faz sentido. O obvio
não assusta. Depois que se habituou fica mais fácil, não se pensa nos efeitos,
nas consequências.
O velho vagão de metro de Paris segue em frente. “Qual
será sua manutenção?”, penso eu. A jovem maravilhosa continua ali, encrustada
em sua tela. Seu mundo é outro. Como terá sido a transição desta nova geração
de eletrônicos, binários, digitais, ou que quer que seja, que hoje pedala comigo. Como foi sair da
verdade virtual para a realidade dos pedais. Como terão sido as emoções, os
primeiros medos, o cair na vida real do perceber, mesmo que só num sutil
pensamento, que somos frágeis, mas que a liberdade vale mais que a fragilidade,
o desaparecer. Será que o digital oferece esta opção de realidade?
Chegou minha estação. Espero a composição parar e
aciono a alavanca de abertura da porta, que se abre. Desço, ando uns poucos
passos, mas paro e volto meus olhos para as grandes janelas em busca de uma
última visão da linda jovem. A composição passa e não a vejo. Está escondida no
meio da massa, provavelmente olhando para sua tela. A composição entra pelo
túnel e desaparece. Silêncio. Olho para escada de saída para rua e vejo que a
vida continua.
Chove e faz frio. Caminho para casa de cabeça baixa
e vejo no chão um jornal de hoje com uma manchete sobre o acidente de Sierre.
Passados quatro dias a notícia ainda está fresca nos corações e mentes
europeus. Acidentes como este são raríssimos por aqui, quase o oposto do que
acontece no Brasil. Não se sabe a causa, mas há duas hipóteses fortes: mal
súbito do motorista ou falha mecânica do ônibus. No dia seguinte já se falava
nas medidas que devem ser tomadas imediatamente para evitar a repetição do
fato. Mas todos vão se cruzar de frente bem próximos e rápidos.
Vou comer alguma coisa. Entro num restaurante e dou
com um grupo de jovens sentados numa mesa, cada um teclando seu celular e todos
em silêncio. O garçom deposita os pratos na mesa e só um deles olha para ele e
agradece. Não há nem velocidade, nem colisão. De novo voo nas imagens e lembro um
grave acidente aqui em Paris, com um Renault Clio destroçado na traseira por
uma Mercedes. E um rapaz aos urros no celular. Segui em frente a pé para meus
estudos. A curiosidade estava satisfeita. Depois das aulas já não me lembrarei
mais da jovem, do susto, e desta colisão. A vida é assim.
muito legal colega!!!! o texto é seu??
ResponderExcluirbonito, também achei bem legal.
ResponderExcluir