Damasceno tem que ser operado com emergência do pé que fraturou faz 8 dias. A fratura no calcanhar é considerada grave, o pé está completamente solto, provavelmente há ruptura de ligamentos, mas não há vaga para a operação porque não para de entrar gente estropiada em acidentes de moto, atropelamento e outros. A operação de emergência não tem data para ser realizada, mesmo que o pé de Damasceno esteja muito inchado, que ele passe os dias chorando de dor deitado no corredor, que um dos médicos tenha deixado escapar que há a possibilidade de que o velho pião de obra, com seus 56 anos, venha a perder o pé. Ele está internado no Hospital Municipal de Campo Limpo, que não é considerado dos piores de São Paulo. Mas o trânsito não para, nem sua fábrica de estropiados.
A chuva não parou, mesmo assim a cada momento aumenta o número de pessoas que chegam e vestem as camisetas com a foto de mãe e filha de mãos dadas com a inscrição em baixo “Não foi acidente”. Balões brancos são distribuídos e inflados pelos participantes. A avenida foi interditada pela CET e alguns PMs se resguardam da chuva debaixo da cobertura de entrada do Colégio Santa Cruz, no Alto de Pinheiros, São Paulo. Um jovem magro, alto, de óculos respingados e capa cinza chumbo, está tranquilo, atendendo a imprensa com uma fala calma, mas um pouco cansada. Eis Rafael Baltresca, o que restou da família atropelada a alguns dias na Marginal. Junto, neste evento denso, debaixo de uma chuva que cada minuto fica mais forte, como um pranto doido vindo das entranhas, há mais outras 8 famílias de atropelados, todos jovens. Mortes estúpidas.
Um casal claramente envelhecido para idade dá uma entrevista para uma TV. O pai declara que não consegue parar de chorar pela morte do filho de 26 anos, que estava em seu primeiro dia de emprego, feliz. A mãe permanece ali, provavelmente sem perceber, agarrando o braço do marido num esforço para não despencar no barro; absolutamente imóvel, olhos desfocados na água que não para de cair dos céus. É um dia cinza. A movimentação da mais de centena que já chegou é pouca, quando há é lenta, silenciosa. Os organizadores circulam entregando as camisetas e colando adesivos com forma de borboleta em quem chega. A imprensa trabalha com discrição. Um abaixo assinado está numa das duas tendas, a azul. É feita a chamada para a passeata e para as falas preliminares.
Três falam, o tio de Rafael que lê um lamento / protesto / manifesto, Rafael e um amigo da OAB. Silêncio entre os 200 ou mais participantes, praticamente todos vestidos de branco, encharcados mesmo se protegendo com seus guarda-chuvas. A mãe de Victor Gurman está abraçada a um senhor, com um olhar plácido quase petrificado. Um pouco atrás uma família estende uma faixa com a foto de duas meninas novas. É difícil identificar quem é familiar de atropelados e mortos porque a emoção forte e dura está em cada e todos os rostos. Terminam as falas e o protesto segue lentamente. Algumas pessoas vão encravando grandes borboletas de cartolina nos gramados. A chuva lentamente retorce suas formas e escorre as cores, bem próprio para uma representação de mortos, ou assassinados pelo trânsito. É o tom da passeata.
Um número absurdo de acidentados entrou nos hospitais durante a passeata, disseram lá atrás. “Um morto a cada quantos minutos?” O que não se vê não se sente. Eles não existem. Só vão passar a existir se sua própria roupa for manchada de sangue dos feridos ou mortos. Mortos passam rápido, alguns são mais doloridos que outros, mas depois de um tempo desaparecem. Não para os pais. O Brasil é um país que tem uma estranha relação cordial com a morte e os assassinatos. Números não mentem. Morre-se assim não mais e só sobra um abismo para os mais próximos, absolutamente indiferente para a sociedade. Os acidentados, aqueles que sobrevivem à carnificina, são em número tão grande que viraram carne de vaca. É tanta gente, tão cotidiano, que já não conta mais. Cansou! Portas fechadas. Quem passa na porta não nota nada. Quem lê jornal tem pequenas notas. A massa que cai no leito hospitalar tem direito a alguns minutos diários de companhia, quanto tem. O nosso sistema hospitalar está criado para dar votos, não para fazer parte de um sistema de saúde pública. É tão útil inaugurar hospitais. O que acontecerá depois é número, que pode ser eleitoralmente bom ou ruim.
A passeata chega à Marginal Pinheiros e segue para o ponto exato onde mãe e filha morreram atropeladas na calçada por um motorista jovem, bêbado e a 150 km/h onde é permitido 70 km/h. Paro a bicicleta na esquina e fico olhando o povo passar. Só eu e mais um outro senhor de bicicleta. Onde estarão os outros ciclistas tão preocupados com a violência no trânsito?
Lembro de uma tarde de sábado de outono quando tive contato com meu primeiro ciclista morto. Ia pela av. Cidade Jardim para a casa de Renata, do outro lado do rio, e na cabeceira da ponte havia um ciclista estendido no asfalto, sem sangue escorrendo, de olhos abertos, como se olhando o caminho para onde deveria continuar seguindo. Estava imóvel. Sua bicicleta estava um pouco mais a frente não muito retorcida. O trânsito começava a parar. Deitei minha bicicleta aos pés do acidentado, me agachei, tomei seu pulso ainda quente, e aprendi que o morto tem por um bom tempo uma circulação de fluidos que é estranha, silenciosa, elétrica sem eletricidade, o último suspiro de vida. Cruzou alguém, olhou para mim e fuzilou: “Está morto”. Fiquei ao lado do morto mais uns segundos e depois segui meu caminho. O ciclista deitado no asfalto continuou lá em seu derradeiro anoitecer de outono. Não havia mais nada a fazer, pelo menos naquele momento.
A passeata segue em frente pela Marginal Pinheiros e eu não me sinto em condição de acompanha-la. Fico pensando na Petição INICIATIVA POPULAR SOBRE CRIMES DE TRÂNSITO QUE ENVOLVA A EMBRIAGUEZ AO VOLANTE - http://www.peticaopublica.com/PeticaoVer.aspx?pi=P2011N15216 e nas ações que se pode fazer daqui para frente. Prevenção, eu acredito em prevenção. Prevenção deve ser baseada na ciência. Infelizmente o pouco que se luta contra este estado de coisas, esta barbárie de mortes violentas no trânsito e por assassinato, são pequenas ações sempre posteriores ao acontecido. Como fazer que este país, que convive tão normalmente com a violência, a ter atitudes preventivas? Preventivo não gera votos. Brasil é um país festeiro, ou festivo, como queiram, e o que vale mesmo, como dizem os americanos, é que “o show deve continuar”. É comum no sertão acontecerem brigas no meio das festas, dos forrós, e quando há um assassinado o corpo é recolhido, colocado do lado de fora do salão, encostado à parede, para que o baile não pare. Simples. Mais ou menos como o trânsito que amaldiçoa os motoboys acidentados. “Tira este f.d.p. da rua que estou atrasado!” ouve-se o grito anônimo. Igual ao entregador com sua Fiorino que para ao lado do marronzinho da CET, pergunta o que está acontecendo e sai xingando o protesto. Não há visão da busca de uma solução definitiva, só do ter os problemas pessoais resolvidos imediatamente.
Quem se interessa por reivindicar melhorias para o trabalho da Polícia Científica e do corpo de Legistas? Quantos legistas há no Brasil com especialidade em acidentes de trânsito, principalmente atropelamentos e acidentes envolvendo bicicletas? Em relação à bicicleta em si creio que não exista um sequer. Com dezenas de milhões de ciclistas circulando não há um especialista sequer. Bravo! O show deve continuar! Minha experiência diz que não adianta ter lei se não houver instrumentos e ferramentas para sua aplicação, no caso o trabalho acurado das duas Polícias, civil e militar, da Polícia técnica e dos Legistas. E de escrivão. É neste ponto que toda sociedade brasileira empaca. Nós queremos ver, queremos já, queremos ser enganados pelos nossos desejos infantis de uma justiça que não funciona e é frustrante, a dos nossos próprios delírios e a oficial, do poder público. E ai, acreditamos em falastrões de ocasião, todos, sem exceção políticos.
Antes de deixar a passeata tenho uma última visão da mãe de Victor Gurman. Até hoje não entendo o que aconteceu. A qual velocidade estaria o carro? Há um cálculo, mas com um grau de imprecisão grande. Quem estava dirigindo? Afirmam que era a motorista, mas ainda pairam dúvidas. Me pergunto se o exame de corpo de delito, que deveria ter sido feito logo após o acidente no motorista, ele ou ela, e no passageiro, ele ou ela, não é citado por nenhuma reportagem. A Land Rover do acidente é um carro sofisticado que tem airbags, que supostamente devem ter aberto no acidente. Se isto aconteceu, deve haver marcas nos corpos dos dois que estavam no carro. Se o airbag não foi acionado provavelmente os corpos devem ter sofrido outros hematomas. Mas numa batida daquelas seguida de capotagem corpo sem hematoma só por milagre ou pura cegueira. Em qualquer das duas hipóteses as marcas dos corpos devem provar quem de fato estava na direção no momento do acidente. Nem se sabe o grau de teor alcóolico dos dois. Pelo que li, ela também afirma ter bebido, mas só um copo.
Mas a questão da perícia não deveria parar por ai. E a questão da condição da via na área do acidente? Como é a sinalização vertical e horizontal, como está o geométrico da via? A calçada existente no local oferece condição para o pedestre? Se há erros na técnica da segurança viária, de quem é a responsabilidade? Houve outros acidentes? Há especialistas nesta área legista que tenham independência e isenção para fazer uma análise? E o corporativismo, como vai? Vai bem? Não existe?
Pelo menos o acidente de Victor parece ter andamento. Do outro lado da Marginal está a USP, e me vem à memória de outra tragédia que vem torcendo minhas entranhas. Estive com a mãe e o irmão de Leonardo Araújo dos Anjos, atropelado e morto no começo do ano na Rod. Raposo Tavares depois de sua festa de calouro da FEA USP. Ao que tudo indica nunca saberemos o que realmente aconteceu. Os fatos continuam não fazendo sentido. O tempo passa e nada parece acontecer. Leonardo está prestes a entrar nas horrorosas estatísticas que trucidam nosso futuro. É um mal, um câncer que vai invadindo a de todos, sem exceção. Ninguém está isento. Segurança no trânsito é saúde pública, ou pelo menos deveria ser.
A imprensa? Quantos jornalistas têm formação ou capacidade para acompanhar qualquer destes casos e escrever matéria coerente? A maioria dos jornalistas que tenho conversado faz sua pauta em cima da Assessoria de Imprensa da CET, o que é uma boa fonte, mas é um pouco como perguntar para o lobo o que está acontecendo. CET ou outros órgãos são os culpados por tudo? Não, não necessariamente, mas responsáveis pela questão de engenharia. Há filigranas que fazem muita diferença, para o bem e para o mal. Ou todos erram e a engenharia de trânsito é impecável? Não há quem possa dar informação técnica isenta, o que levaria a sociedade ter outra visão dos fatos, que também levaria a uma mais apurada autocrítica dos próprios técnicos e responsáveis pelo trânsito, o que finalmente e mui provavelmente levaria a uma diminuição no número de acidentes, hospitalizados e mortos. Esta é a matemática que qualquer lugar civilizado do mundo faz. Tal qual Oswaldo Cruz fez em sua batalha pela saúde pública. Trânsito é saúde pública.
Eu me sinto culpado por estar escrevendo textos tão pesados e publicando-os no blog. Ao mesmo tempo me sinto culpado pelo silêncio. Silêncio mata, normalmente mui lentamente, sem que a gente perceba ou morra de fato. “Não adianta ficar só falando de desgraça”, dizia alguém. É verdade. Falar só não adianta, é preciso agir. Mas como agir?