“A meia não entra, a meia não entra!”, reclama o menino de 6 anos angustiado, sentado na borda da cama, sem perceber que na pressa está colocando a meia de cima para baixo. Está praticamente pronto, banho tomado, roupas limpas, passadas e cheirosas, cabelo engomado penteado cuidadosamente para trás, um sapato preto lustroso no pé, outro no chão, e a meia que não quer entrar na mão. A família passa pela porta e olha fazendo caretas. “Não existe meia que não entra no pé. Olha com calma a meia”, diz a mãe; e o menino remexe na meia irritado e volta a reclamar que “a meia não entra”. A irmã mais velha entra no quarto com a toalha enrolada na cabeça, tira a meia da mão do irmão, olha bem e grita “Mãe, quem costurou o furo da meia? Costurou o buraco e fechou a meia. Ele não vai vestir nunca esta meia”. “Pega outra meia cor azul no armário e ajuda seu irmão a vestir”, responde lá do quarto a mãe. E completa “Deixa a meia fechada em cima da mesa que esta eu quero ver”. A irmã pega a meia no armário e o irmão diz que ele mesmo veste. Ela sorri, entrega as meias, faz um carinho, “Veste logo”, e volta para o banheiro desenrolando a toalha da cabeça. Ele termina de se aprontar e sai correndo escada abaixo.
Todos prontos. “Cadê este menino?” E de dentro da casa ele começa ouvir os chamados da família, primeiro calmos, depois aos gritos. “Estou aqui, estou aqui”, responde ele sem sair da sua pequena bicicleta. O pai vai até o corredor da garagem e vê o filho girando para cima, para baixo, não fala nada e volta para dentro da casa. Em seguida surge a mãe, linda, bem vestida, pronta para a festa, e no passo do salto alto com vontade de rir chama a atenção do menino “Você já está todo suado”, passa a mão com suavidade na camisa do filho, “Nós vamos para o Natal. Você não poderia ter ficado quieto por uns minutos? Não poderia ter ficado quieto na televisão? Sempre a bicicleta, sempre a bicicleta... Vamos, deixa ela lá dentro e vamos que já estamos atrasados”.
Há muitos caros estacionados perto da casa velha. “Me ajuda a levar os presentes, por favor”, pede a mãe para todos filhos. A porta da frente está aberta e já da escada se vê muita gente passando entre as salas. Do porão dois primos sobem correndo, quase derrubando os presentes. No topo da escada a família faz uma parada. São bem recebidos e começa o “Feliz Natal” acompanhado de sorrisos que será repetido algumas centenas de vezes, tantas quantas os parentes que cruzarem a frente. É muita gente junta. Há algumas meninas mais velhas sentadas conversando na escada que leva aos quartos. Elas acenam e continuam conversando, ou provavelmente fazendo fofocas. O menino se desprende da mão da mãe e some no meio da multidão. Corre para ver a árvore de Natal e o pequeno Papai Noel que se mexe sozinho. Encontra os primeiros primos de sua idade. Conversam um pouco e logo saem correndo por entre as pernas dos adultos. O menino passa pela sala de jantar, pára para admirar a cuidadosamente a mesa preparada para a ceia. Dourados, brilho, uma toalha de renda, detalhes em cor vinho, velas, um grande arranjo central com frutas e nozes. Há três anjos pendurados e um grande lustre de cristal cheio de lâmpadas acesas. Cadeiras vazias. E no menino toma uma palmada carinhosa, “Vai brincar que aqui não é lugar de criança”, diz alguma tia que o menino já viu, mas não sabe bem quem é. E ele dispara. “Pela cozinha não!!”, grita a tia brava e inutilmente.
Lá fora estão muitos primos, distribuídos pelo jardim, agrupados por tamanho, e um velocípede que passa conduzido por garoto feliz e arrogante pelo seu novíssimo presente. Velocípede vermelho. O garoto passa sorrindo olhando nos olhos. ‘O velocípede é meu’. Os mais velhos acham a situação engraçada e fazem chacota do garoto. Ele não está nem ai e segue em frente costurando entre os primos.
1982
Um pouco antes do banho o mocassim foi engraxado com cuidado. Está brilhante. As roupas estão cuidadosamente estendidas na cama. São vestidas com bastante calma. Depois do mocassim vem o toque final: prender a perna da calça para ela não sujar na corrente. Ele sai do quarto, vai até a sala, dá um beijo na testa da mãe. “Você está muito chique. Abaixa um pouco para eu arrumar o nó de sua gravata”. E enquanto acerta gravata e colarinho desce os olhos e pergunta com falso tom de espanto: “Você vai de bicicleta?”. Olha nos olhos do filho com autoridade de mãe e dispara “Vai devagar para não chegar suado e vê se não suja roupa. Que hora você está de volta?”. “Fica tranqüila, eu volto cedo. Só vou dar uma passada para desejar Feliz Natal e rapidinho volto. Se eu for com o carro não vai ter lugar para estacionar. Vai ser um saco”. E quando a porta já está quase fechada ouve-se “Vai com cuidado. Volta rápido”. “Beijo”.
O tempo que a chegada do ciclista na festa de Natal era quase aguardada como a chegada de um aventureiro ficou para trás. Já eram dois a ir para o jantar pedalando. Ele entra e já não perguntam mais “Você veio de bicicleta?” Mas ninguém esquece a primeira vez que o primo ciclista chegou na portaria do edifício e o porteiro desandou a repetir “Com a bicicleta o senhor não entra, com a bicicleta o senhor não entra...” Teve que descer o tio para convencer o porteiro. Nos Natais seguintes o ciclista foi recebido pelo mesmo porteiro com quase inaudível e acabrunhado “Boa noite, Feliz Natal para o senhor também”. De rabo de olho o nortista deixava sua contrariedade com aquela situação. A história virou piada obrigatória do Natal.
Chegou o tempo das luzes da cidade, das ruas decoradas, do clima de festa. As ruas estão completamente lotadas, entulhadas de carros com suas janelas pretas e fechadas. Há uma reclamação geral que não dá mais para sair de carro. Muitos vão a pé ver o Natal criado para ser visto. Se as lojas ainda não estão cheias, os supermercados e as casas de comidas estão. Não dá para entrar. Não há mais espaço para tanta gente. Faz um bom tempo que a bicicleta tem dificuldade de encontrar espaços para passar entre os carros e até mesmo nas calçadas. Já não é mais só um fenômeno de Natal. O velho ciclista encontra um velho e querido primo na bicicletaria comprando uma bicicleta para a mulher. Linda bicicleta.
- Você saiu em algum passeio para ver as luzes?
- Saímos alguns dias atrás. Antecipamos por causa do trânsito. Provavelmente vamos sair de novo, mas bem mais tarde, lá por volta das onze, quando o trânsito melhora.
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