terça-feira, 9 de outubro de 2018

Individualismo sempre paga por seus atos

No Aeroporto de Munich uma garota estava no celular ocupando duas cadeiras, as únicas disponíveis naquele local. Estava esparramada com pernas cruzadas sobre uma cadeira e meia e tinha sua imensa bolsa no que restava doutra. Eu me aproximei com a mochila, ela discreta e rapidamente olhou para meus pés sem mudar a posição da cabeça, e continuou onde e como estava. Eu precisava de um lugar para abrir e organizar a mochila, fiquei parado ali um breve tempo que falou por si. Que importa? Uma discreta mudança na sua feição deixou claro entender o que eu queria. A jovem levemente cerrou suas pálpebras forçando seu olhar no celular como se nada houvesse. Como última súplica, dobrei os joelhos lentamente, curvei-me para frente num movimento estranho, notável, joguei a mochila irritado e sentei no chão. Nada. Impassível. 
No Aeroporto Charles de Gaulle, de Paris, uma funcionária vem empurrando um cadeirante para retirar suas malas da esteira rolante. Para um pouco atrás de um grupo de senhoras idosas, deixa o cadeirante que aponta sua primeira mala que chega. Ela com o braço esticado abre passagem por entre as senhoras sem dizer palavra e em espaço apertado puxa da esteira as malas e as joga no chão. O grupo de senhoras dá um passo atrás e para a conversa. "Acabou?", pergunta ela secamente para o cadeirante, já saindo empurrando as malas pelo meio das senhoras atônitas. A cena teria sido trivial, se é que assim se pode dizer, não fosse o fato que um pouco a frente das senhoras a esteira rolante estava completamente livre.

No ônibus entramos nós e um casal jovem, ele um pouco mais alto que eu. Fomos para o fundo do ônibus e sentamos frente a frente. Eu e ele somos grandes para o pequeno espaço entre os bancos. Ele educadamente girou o corpo para eu tivesse espaço para minhas pernas. Lhe disse que nos ajeitássemos com joelhos entre pernas, o que fizemos com ele agradecendo, e assim seguimos viagem. O corredor ficou livre e outros passageiros foram se acomodar no último banco. A menina que o acompanhava era de uma feição leve, delicada, sorridente, não precisou de palavra para ser delicada. O casal desceu um pouco a frente agradecendo. "Agradeço eu".
No metro de Paris um rapaz entra e senta torto, em diagonal, pernas no meio do corredor, abre um grosso livro sobre os joelhos e se perde na leitura. O carro do metro está vazio. Um senhor levanta-se um pouco a frente e atento o rapaz move os olhos. O senhor sai pela outra porta, o rapaz volta a leitura de Proust, Em Busca do Tempo Perdido. O metro não estava tão cheio e não pude ver se seu comportamento teria sido o mesmo que de um que se perde na rede social hipnotizado pela luzinha mágica. Será que há pesquisas sobre o grau de imersão e abstração da realidade numa leitura de um livro e num seguir uma rede social?

O mundo está se encaminhando ao individualismo? Há quem diga que sim, inclusive estudos, mas é preciso mais tempo para saber ao certo. Provavelmente é mais um ciclo da humanidade.
Desde que me conheço por gente aprendi que individualismo tem preço. Toda a boa evolução social que tivemos nestes mais de dois séculos de mudanças radicais partiu de coletivos. A história prova que todo individualismo exacerbado resultou em atraso ou problema sério.
Será que existe alguma relação entre esta explosão mundial da direita e o individualismo inerente ao "empoderamento" dado pelos novos meios de comunicação? Na frente de um celular e suas redes sociais o indivíduo é um indivíduo, fato novo na humanidade.
Outro dia fiquei curioso para saber a história do espelho. Quando o povão começou a ter espelhos e com isto a possibilidade de olhar-se, descobrir-se? Qual foram as consequências?
Uma coisa é saber quem se é; outra, completamente diferente, é "eu sou" sem sê-lo. "Eu sou (mais eu)" tem seu preço. Nesta fórmula um dia a conta chega.

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