Quem já
pedalou ou competiu com um ciclista do “além” sabe. A primeira experiência que
tive foi numa prova de mountain bike em Atibaia, que tinha uma subida muito
íngreme, tão íngreme que alguns ciclistas capotavam para trás. Ficou conhecida
pelo nome da mãe da organizadora da prova. Como praticamente o mesmo grupo
vinha competindo fazia um bom tempo junto, sabíamos quais eram as diferenças de
pedal, principalmente nas subidas. Aquela foi a primeira prova onde participaram
dois ciclistas profissionais de primeira linha vindos do ciclismo de estrada.
Dada a largada o pelotão seguiu em frente na ordem habitual, os da ponta
abrindo o costumeiro do resto. Passado
um tempo, no meio da subida final que era mais leve, olhei para trás e vi um destes
ciclistas profissionais de estrada se aproximando. “Deve ter quebrado algo e
ficou para trás”, pensei. E ele passou por mim como se eu tivesse engatado a
marcha a ré e acelerado fundo. Não entendi nada. Santa inocência! O resto dos
ciclistas estava comendo poeira e ele estava dando uma volta no pelotão do
meio, coisa que nunca havia acontecido. Foi difícil de entender o que acontecia
porque Eduardo Ramirez vinha de treinamentos e boas corridas nos Estados Unidos.
Foi coisa do ‘além’ ?!?
Uns meses
depois, numa prova em Piracicaba um dos ciclistas mais velhos de nosso grupo,
conhecido no meio pelas bombas que tomava, simplesmente desapareceu do resto e
venceu com muita facilidade a prova da qual todos resmungaram a dureza daquele
arreião sem fim. O velhinho terminou a prova como se nada houvesse acontecido.
E ai um amigo comentou que naquela manha ele havia vencido uma prova de
ciclismo de estrada e que viera de sua cidade para a prova do arreião pedalando,
uns 50 km dali. E o velhinho ainda disse, rindo, que voltaria para casa
pedalando para relaxar. Morreu uns anos depois vítima de suas bombas.
Depois que se
vê o primeiro dopado pedalando perde-se a inocência e praticamente não há mais
dúvida sobre quem está ou não bombado. É mais ou menos como olhos muito
vermelhos e lentidão de fala, língua enrolada e cambaleante, ou excesso de
brilho nos olhos e ligado no duzentos e vinte. A força e resistência de um
bombado são sobrenaturais, do além.
Quem
acompanha Tour de France, Giro d’Itália, e outros do nível, sabe que a coisa é absurda.
As médias são altíssimas. “Limpo não dá”, afirma quem conhece por dentro. A
discussão sobre limites e lisura vem de longa data.
Quem
acompanhou o Tour de France da época do Lance Armstrong e viu suas famosas
escapadas, principalmente nas subidas, entendia que havia algo sobrenatural na
história. O que mais chamava atenção era o rosto de Armstrong, sempre limpo,
tranquilo, praticamente sem expressão de cansaço ou dor. Numa das mais famosas
escaladas (subidas) Armstrong e Marco Pantani, vencedor de um Giro e um Tour e
um dos melhores escaladores, disputaram palmo a palmo os quilômetros finais
sendo filmados de frente. Viu-se um Pantani deformado pela dor e Armstrong absolutamente
tranquilo, conversando com Pantani como se estivesse tomando o chá da tarde na
varanda. O fato foi muito comentado e a mídia acabou divulgando que Armstrong havia
sido treinado para não usar os músculos do rosto para não perder energia. Pode
até ser, mas foi muito estranho, estranho mesmo.
Nunca fui fã
de Armstrong, mas não há como negar que ele foi um atleta excepcional desde
novo e que seus resultados no Tour foram fruto de um trabalho de equipe que
elevou o ciclismo a um patamar muito mais alto de profissionalismo. Com eles,
Armstrong e equipe, o ciclismo deixou de ser ciclismo para ser algo como uma
Fórmula 1. A transformação se deu inclusive em alguns conceitos básicos, como uma
cadência mais rápida e a postura de tórax mais aberto pedalando, dentre outros.
Armstrong fazia refeições usando tabela nutricional e balança de precisão. Os
detalhes chegaram a extremos. A quantidade de trabalho e dinheiro investido foi
imensa, sem precedente, o que de certa forma justifica o resultado, mas que
sempre teve um cheiro de coisa do além, ah, teve!
Sempre
quiseram pegar Armstrong por doping, mas nunca conseguiram sustentar as suas
suspeitas. Pegaram um monte de ciclistas. Floyd Landis, um deles, lutou o
quanto pode para negar as acusações e o fez abrindo ao público os graves desajustes
das agências que controlam doping. Armstrong acabou encurralado não por exames
de sangue, que sempre deram negativo, mas por testemunhas, vários deles
ciclistas que foram pegos por doping, num processo que tem mais cheiro de caça
as bruxas que a busca da honestidade.
Infelizmente
há muitos relatos de doping entre ciclistas amadores aqui no Brasil. Não só
entre ciclistas, mas em vários outros esportes ou práticas físicas.
Infelizmente se vê pelas ruas das grandes cidades muitos jovens, homens e mulheres,
claramente bombados. Não fazem ideia do crime que comentem contra si próprios e
contra a sociedade, principalmente contra a sociedade. O que não resolve é
caçar bruxas. Resolve é uma política séria de prevenção e contenção baseada em
uma discussão honesta. Repito: eu não tinha simpatia por Armstrong, mas gosto
menos ainda a forma como acabou toda esta história.