terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Chão e visão


É lógico que deveria ter mantido distância do carro à frente. Só senti o impacto impiedoso associado ao barulho seco da porrada no batente da suspensão. Minha coluna sentiu, minhas mãos adormeceram, mas continuei pedalando. Um urro maldizente ficou no ar. Encostei a mão no freio para ver qual o tamanho do estrago nos aros. Limpos, perfeitos. Ainda assustado e furioso agradeci minha sensatez de haver calibrado os pneus pela manha. Parei e olhei o alinhamento do quadro, passei delicadamente a ponta dos dedos nas soldas e no tubo inferior para ver se o quadro entortara. Limpo, nada, zero! Voltei a pedalar e soltei a mão do guidão e a bicicleta estava perfeitamente alinhada. Zerada, perfeita como sempre. Um pequeno raspar soava da roda dianteira. Parei, olhei, olhei, busquei uma deformação no aro, um corte no ótimo pneu. Nada. Voltei a pedalar e lá estava o suave raspar. “Calma meu caro, pense! O aro não desalinhou; o que resta?”. Pedalando e olhando vejo o sensor do ciclo-computador desalinhado. “Ótimo, já passou. Que tal curtir a sensação de estar inteiro e pedalar em paz de volta para casa?”. E assim segui.

Não muito longe dali, daquele outra cratera de minha vida de ciclista, não tive tanta sorte. Na época, final 1989, tinha minha velha JNA de guerra, pesada, primária, simplória, ultrapassada, mas eficiente. O apego por aquela menina era total. Juntos fizemos grandes corridas, vários pódios, muitos passeios, muita diversão. Havia saído do jantar de minha avó, a rua estava escura, havia chovido muito e aquela cratera abrira do dia para a noite. Não vi nada, simplesmente senti um baque, girei 180° no ar e cai de costas com ela perfeitamente encaixada entre minhas pernas, tênis nos firmas-pé, mão na manopla, guidão alinhado, dedos nos freios, como se estive pedalando de ponta cabeça. Foi uma fração de segundo e o peso e inércia da bicicleta a fizeram voar longe de meu corpo. Enquanto ela escorregava pelo asfalto um carro abriu a curva para desviar, seu motorista olhou para mim, passou pelos dois corpos estendidos no chão e seguiu em frente sem procurar saber o que havia restado daquilo. Dei um tempo para sentir o corpo e fui até a bicicleta. As rodas com seus indestrutíveis aros KKT estavam perfeitas, assim como garfo, mas o quadro havia trincado na solda do tubo inferior atrás da caixa de direção. Eu tinha uns poucos arranhões nas costas e braços e agradeci muito por não haver quebrado a coluna. O giro no ar foi tão perfeito que não encostei a cabeça no asfalto. Agradeço aos meus protetores. Subi na velha companheira comecei a pedalar. Ela funcionava bem, mas eu sabia que estava machucada. Uma das manoplas e os passadores de marchas estavam levemente arranhados e nada mais. Mas minha menina estava ferida. E eu tive um ataque de choro saído do fundo da alma, difícil até hoje de descrever, que durou sem parar quase uma hora seguida. Não chorei pelo susto, mas pelo absurdo de haver machucado minha menina. Ela não merecia. Poucas vezes na vida senti tamanha angústia.

O susto sem conseqüências desta tarde me fez recordar os chãos que tomei e as poucas bicicletas que perdi por acidente. Talvez a mais gozada tenha sido no Cruiser das Montanhas de Campos de Jordão, em 1988, evento genial montado pela Renata Falzoni. Foi um mês de trabalheira legal, prazerosa, com direito a dois dias de folga, quando saia o grupo completo para fazer um mountain bike de verdade - para a época e as precárias bicicletas de 5 marchas. Num destas folgas fomos levados para o topo da montanha mais alta da cidade, que é óbvio que não me lembro o nome, e de lá “descemos” para cidade. Num dos morros, cortado por uma estreita e inclinada trilha de pedestres e vacas ladeada por capim, decidi sair da trilha para ver se no capim o chão era mais regular. Elas por elas, mas segui desembestado e pulando no capim. A questão é que entre o fim da descida e o começo da subida do outro morro havia um capim mais alto, um pouco diferente, por onde achei que poderia passar. A bicicleta desapareceu e eu dei de peito no chão do outro lado do riacho. Bati seco, perdi momentaneamente a respiração, mas nada além disto. Cacei a bicicleta afundada no meio do riacho e de cara vi que a roda dianteira simplesmente havia entrado. Uma Cruiser a menos e muita gozação em cima de mim.

Não fosse a excelente qualidade da bicicleta que estava pedalando provavelmente hoje teria perdido mais um quadro ou o garfo. Minha velhice já vinha me cantando a bola para que deixasse de ser velhaco comigo mesmo e não ficasse tão próximo do veículo da frente. Não pedalo colado, no vácuo, mas pedalo próximo, dentro do limite de minha segurança de capacidade de frenagem, que é muito diferente da segurança visual. Há uma regrinha que funciona bem para a segurança de quem dirige carro que diz que a distância entre você e o carro da frente deve ser de dois segundos. Nesta distância normalmente dá para frear. Eu disse “normalmente”. O mesmo não vale para ciclistas porque um carro freia muito mais rápido que bicicleta. Pior, a maioria dos ciclistas provavelmente travaria o freio dianteiro e voaria para o chão, o que só piora a situação. Mas pior que isto é não ver o que passa entre as rodas do carro que vai a frente.

Um comentário:

  1. Olá Arturo
    Li esse post com a sensação de Déjà vu (até então não tinha olhado o nome do autor), lembrei imediatamente de um texto escrito na falecida Bici Sport de 1990, 91 não sei... Na verdade era o teste de uma Bike Gary Fisher Paragon (acho que era esse o nome), com um texto muito divertido e matreiro, você contou a experiência de pilotar aquela bike, virei seu fã imediatamente, além de ter ficado fissurado naquela bike. Muitos anos depois, continuo pedalando e hoje desenvolvo o site: www.trilhasbr.com.br onde mapeio as trilhas aqui da região da Grande Florianópolis. Parabéns pelos textos (esse e o antigo) e um grande abraço.

    Luiz Peixoto
    luizpeixoto@gmail.com

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