Uma das mais antigas recordações que tenho de minha infância é ser colocado para dormir tendo um inseticida espiral, o tradicional fumacinha, no móvel de cabeceira entre um quase grudado no meu nariz e uma janela escancarada um pouco mais a frente. Eu achava reconfortante o forte cheiro daquela fumaceira numa noite de calor e umidade infernais típicos de verão do litoral, ainda por cima sem vento.
Anos mais tarde lembro de estar na casa de minha avó em Santos, também numa noite de calor insuportável, sem vento, tentando dormir num quarto com mais dois primos, tudo escancarado, janelas, porta, ventilador no máximo e na orelha, o que sempre me incomodou muito, mas ali achei uma benção. Renato e Ricardo, meus primos, embalaram logo, eu rebolei no suor dos lençóis por um bom tempo amaldiçoando a lua cheia, maravilhosa por sinal.
E cá estou eu em mais uma noite de calor infernal na finada terra da garoa. Que saudades dos tempos que isto aqui era fresquinho. Acordei com o travesseiro tão molhado quanto as boias salva-vidas que me obrigavam a vestir quando criança. Preferia morrer afogado.
Ah! São Paulo da garoa! Que prazer estar no meio da névoa fria, algumas vezes gelada, daquela São Paulo da garoa que se foi. Ir agasalhado para a avenida escondida na névoa gelada pegar o ônibus para a escola. Primeiro se ouvia o barulho invisível dos ônibus e carros vindos de longe, e só muito em cima, uns 30 metros se tanto, rompiam a névoa como vindo do além. Adorava o som dos ônibus elétricos, o leve ronco do motor e as antenas escorregando na fiação elétrica. Era fácil reconhecer o meu da escola por seu motor impecavelmente regulado. Na escola o recreio era de camiseta num geladinho que a correria não fazia sentir e só estimulava mais correria. Coitado do paciente bedel.
Calor, ufa!, calor. Rio de Janeiro 40 graus..., (mais quente do que a música!) Falo de um Rio com 45 graus, onde sair para rua de dia, debaixo do sol, era um suplício. E por isto, cinemas cheios em plena tarde de trabalho, ah! santo ar condicionado! Filme? Que filme? Poltronas e poltronas em ronco solto. O mesmo vivi em Recife. Quem se importa o que passa na tela? Em Recife assisti vários filmes "culte" que nem em São Paulo passavam. Por que? Provavelmente porque o público estava querendo ar condicionado, não importa o que estivesse na tela, e para o cinema o custo de filme culte devia ser muito mais barato. O que o calor infernal não faz com a vida!
Rio 40 graus, a noite vinha um refresco, não muito, nada que permitisse bocejar com prazer. Janelas escancaradas, todas, sem exceção, um ventinho abafado, pesado, que pouco ou nada servia. Dormir... só mais tarde, bem mais tarde, muita TV ou leitura a espera da madrugada... abafada. Dormir? Acordando várias vezes para um banho gelado. Corpo estendido um pouco sobre a cama, vira de cá, vira de lá, leçol ensopado e se joga para o duro tapete empoeirado destendido sobre o chão de pedra, uma benção de sono até doer o corpo e voltar para o quente colchão. Mais alguns banhos gelados pela meio da noite. Gelado não, porque a água vinha morna, menos que o suor, mas refrescante. Mal dormido acordava com os primeiros raios de sol. Pequeno café da manhã e o mais nú possível para praia, aproveitar enquanto as areias não escaldam os pés. Fritam, melhor.
Olho os que trabalham e seguem trabalhando debaixo do racha coco, como conseguem?
Outro dia ouvi pela primeira vez de uma madame sentada num sofá frente ao furacão do ventilador "Como eles conseguem trabalhar neste calor? Agora entendo porque a produção em áreas tórridas é tão baixa."
Mas o calor pode ser pior, muito pior, só quem experimentou sabe. Experimente um navio cargueiro, cruzando o equador. Vai entender o real significado e insuportável. Fomos avisados pela tripulação, ao meio dia não toquem nas paredes externas, e na cabine cuidado para não queimar a mão ou o corpo com o vapor que vai sair da torneira ao abri-la. "Gire a torneira só um pouco com o corpo longe da pia e deixe o vapor sair". Dormir? Fácil. Tudo estanque, ar condicionado forte e geladinho, mas se tocar as paredes vai sentir calor.
Aprendi que portas e janelas abertas para circular o vento é um erro grave, só piora o calor dentro de casa. Quem sabe, mede a temperatura dentro e fora da casa para saber onde está mais fresco e abre ou fecha tudo. Funciona, ou melhora muito.
Corumbá, Corumbá, sem dúvida a noite mais difícil de minha vida. Calor e unidade sem igual. Aceitei uma gentileza e fui dormir numa casinha de gente bem simples, pobre mesmo, que com muito esforço construiu um espaço reduzido de paredes finas e telhado de zinco. Não queira saber o que é estar debaixo de um telhado de zinco com janela que abre pouco.
Das boas recordações que tenho desta vida foi ter deixado o calor absurdo de Corumbá e chegado ao banho congelante que tomei em Santa Cruz de la Sierra. Nunca uma água que doeu na pele foi tão agradecida.
Em Corumbá começou minha preocupação, minha dor no coração, com a vida dos favelados. Como se permitiu o absurdo urbano que milhões vivem?
Tem gente que gosta calor, inclusive de fritar ao sol. Afirmo que meu corpo definitivamente não gosta, aliás, para de funcionar a partir de uns 25, 27 graus. Pedalando ainda vai, aguento, mas quando paro... desmonto. Na estrada de Itu para Jundiaí, a que mais sofri, pedalei com 'deliciosos' 40 e tantos graus, fora o bafo vindo do asfalto. Como aguentei? Não faço ideia. Sei que quando cheguei, tomei litros e litros de tudo quanto fosse líquido e gelado, um banho gelado, cai duro na cama. No dia seguinte quase chamei uma funerária.
"Vai pela sombra" dita a velha recomendação. Vergonhosamente tenho cumprido a risca. Outro dia fui repreendido por um senhor por estar pedalando na calçada. Parei, pedi desculpas, e lembrei-o o "vai pela sombra". Ele imediatamente desanuviou-se. E seguimos cada um para seu lado pelo que na rua resta de sombra e algum frescor. Frescor?
Nenhum comentário:
Postar um comentário