Paris: montanhas de lixo nas ruas, greves, paralisações, pancadarias, batalha campal, uma grade caída no meio da rua e lá abandonada, e a surpreendente gentileza de uma menina.
A gentileza da menina que serve num café me sensibilizou e muito. Nada demais, só uma cadeira que me foi trazida espontaneamente, sem que eu tivesse feito qualquer gesto ou olhar como se pedindo ou expressasse um simples desejo. Um gesto de delicadeza que a cada dia está se tornando incomum.
A forma de comunicação da menina: agiu em silêncio para melhorar o conforto de uma pessoa, não de um cliente. Agiu, ninguém percebeu sua iniciativa e voltou ao trabalho.
Naquele exato momento eu havia enviado uma Whatsapp para Yeda, uma das pessoas mais gentis e delicadas que conheci pela vida, sobre a tranquilidade daquele café e o reflexo nas pessoas que ali estavam. Até então não tinha me dado conta de quão importante para aquele bem estar vinha da delicadeza e gentileza das duas meninas que nos serviam. Discretas e pró ativas.
Ontem foi uma guerra aqui na França. Um confronto entre a extrema esquerda e os policiais resultou em 47 feridos (corrigindo, mais de 200), a maioria policiais (corrigindo, não é certo que a maioria foi de policias). Eles não conseguiram parar a fúria de um grupo de black blocs (corrigindo: o ataque inicial foi da polícia) muito bem organizado e treinado com práticas militares (segundo as autoridades) mesmo tendo disparado 4.700 bombas de lacrimogênio.
Já no fim desta guerra, mas ainda no meio da batalha, uma das TVs conseguiu uma entrevista com um dos organizadores do protesto ou batalha. Perguntado sobre os feridos, todos eles, dos dois lados, ele disparou a falar sobre a violência do governo francês, sobre a legitimidade da violência que ainda estava acontecendo, justificando os policiais feridos como uma espécie de vitória da causa. Outras entrevistas de lideres dos protestos generalizados que vi em algumas TVs francesas tiveram o mesmo tom: que não há outra saída que não seja o conflito para uma derrota do governo e do status quo que vivemos.
(O entrevistado, um dos que discursaram no palanque antes da pancadaria, não teve calma e jogo de cintura para contar sua versão. A forma como ele falou fez com que sua história, que era mais próxima da verdade, acabasse se transformando só numa tentativa de justificativa da ação dos que protestavam. A entrevista com um jornalista presente divulgada bem depois muda completamente a versão oficial da batalha. Veja as imagens e a entrevista no final deste texto.)
Depois que sentei na cadeira do café me veio a pergunta: será que há outra forma para se conseguir as mudanças que todos querem ou sair para a porrada destruindo tudo o que foi construído até hoje é o único caminho? Será que pessoas como Yeda ou as gentis e delicadas meninas teriam força social para realizar uma revolução não violenta, melhor dizendo, acertar o que não está funcionando bem?
Para quantos desta guerra ideológica as delicadas meninas do café tem valor?
Não resta dúvida que se deve mudar. As razões são inúmeras. Chegamos a um ponto que as instituições não estão respondendo mais as expectativas.
Cheguei numa Paris absolutamente imunda, lixo por toda parte, montanhas de lixo. Greve dos lixeiros, segundo um comentarista político um movimento que não deve acabar tão cedo porque há uma forte união pela causa. Que se dane toda população. Andar pelas ruas virou um inferno. Felizmente com o frio o cheiro não é forte. Danem-se, tudo pela causa.
De frente para a janela do café, ainda sentado na cadeira, vejo além dos montes de lixo atrapalhando a vida de todos, principalmente mães com carrinhos de bebe e idosos que é o que Paris mais tem, foram derrubadas no meio da via de trânsito umas sete placas de proteção para os pedestres que fazem parte de uma obra de manutenção na calçada. É o quarto dia que elas estão no meio da rua, algumas vezes com carros passando em cima, e nenhum dos distintos, bem educados e civilizados cidadãos foi lá para levanta-las.
Passeando de ônibus vejo uma família de turistas alemães, pai, mãe, filho, filha jovens, que estão sentados nos assentos reservados a idosos. Entram idosos, passam por eles e vão sentar lá no fundo. Dos alemães nenhuma reação, justamente um povo tão cumpridor das leis e regras sociais?
O número de pessoas que tem saído às ruas para protestar é irrisório se comparado a população francesa. Os que estão botando para quebrar menor ainda. Tem vidro banco, lojas e McDonald's quebrados por toda os lados. O grito destes tem falado mais alto.
A gentileza está pelas ruas de Paris, isto é claro. A cidade respira um bom grau de civilidade ou não teria tanto turista. As placas da obra caídas no meio da rua são um detalhe e ao mesmo tempo são o detalhe.
A gentileza das meninas que servem o café vai muito além. O que importa é o bem estar do outro, mesmo que este outro não consiga avaliar corretamente suas necessidades.