segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Pauladas da vida

Cristine, família europeia, pedalou desde seus primeiros dias, e pedalou bem. Dá prazer vê-la pedalando morro acima e conversando como se nada houvesse enquanto o ciclista ao lado de língua de fora, rosto e roupa encharcados, tenta acompanhá-la e pede ambulância. 

Nunca se preocupou em ter uma bicicleta melhor do que a tranqueira velha e enferrujada que sempre usou, o que só reforça a origem européia de seu nome. Cuidou da mãe até seus últimos dias, senhora culta e inteligente, de conversa sóbria, farta, cativante. Neste tempo de cuidados a velha bicicleta ficou um tanto largada num quartinho, poucas vezes usada para alguma pequena compra de emergência na farmácia ou mercadinhos próximos. Foi-se a mãe, foi-se a casa onde nasceu e viveu toda a vida, passou pelo luto e pelas incertezas que uma perda destas irremediavelmente traz. E meses depois numa de suas longas caminhadas a pé passou pela vitrine de uma bicicletaria. Parou, olhou, olhou, ouviu a voz delicada e precisa da mãe francesa, entrou na bicicletaria e sem delongas apontou "quero esta" e pagou. Bicicleta novinha, linda, macia, pintura alegre como o sorriso da mãe quando a chamou até a garagem no meio de uma noite de Natal de sua adolescência. Vermelha igual. Sem culpa, de novo pensando no que a mãe lhe daria, não pensou no preço, comprou bicicleta sofisticada, para durar toda uma vida, pensamento europeu, como um marco de lembrança para o resto da vida de tempos que não voltam mais.

Em frente a vitrine vazia deixou fechar o sinal da esquina, o trânsito acalmou, quase parou, e as duas, Cristine e bicicleta nova, foram para o asfalto rumo ao parque. Homenagem à mãe e a liberdade ainda um pouco dolorosa daquela nova vida.

Entrou no parque, fez a primeira volta completa, a segunda, e na terceira, próxima ao lago, de trás de uma árvore saiu uma paulada no meio de seus seios.

- Você compra outra; diz a amiga sem mais preocupações sentada no sofá, taça de vinho tinto na mão, no jantar com amigos. 
- Como assim compro outra? Estou toda roxa. Dói muito. Não vou mostrar aqui, mas estão roxos, muito doloridos; respondeu com raiva em voz baixa.
- A dor passa e você compra outra, termina a amiga.
- Pegaram o ladrão? pergunta outra amiga desviando o mal estar

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