Sou de uma das últimas gerações que teve a
oportunidade de dirigir como se fosse uma brincadeira, uma diversão
completamente inconsequente. Não tenho vergonha de dizer que me diverti a não
poder mais. Alguns amigos morreram, outros se arrebentaram; eu tive uma sorte
sem tamanho.
Outro dia vi um motoboy descendo a rua Major
Natanael como se estivesse numa prova do Mundial de Moto Velocidade. A Major
Natanael é uma ladeira muito inclinada que fica atrás do Estádio do Pacaembu e que
termina numa sequencia de curvas em “S”. É bem perigosa e só faz aquilo com bom
tempo (rápido) quem sabe das coisas. Vi o garoto sair do túnel, engatar quarta,
quinta e vir no talo (aceleração total, uns 140 km/h) até quase a parede do
Pacaembu e entrar nas curvas com uma classe que não via fazia muito tempo. Freou
no limite, levantou o corpo no tempo certo, não travou, não escorregou, reduziu
as marchas limpo, fez os pêndulos suavemente, acelerou forte e sumiu, lindo, perfeito.
Qualquer outro teria estampado na parede do Pacaembu.
A cidade não permite mais estas loucuras; ou estas
brincadeiras. A bem da verdade, nunca permitiu. Antigamente ainda havia um
certo espaço, menos gente, menos carros, mais espaço; hoje simplesmente não dá
mais, não há espaço para brincar, acabou. Hoje a possibilidade de matar ou
machucar é grande. Os veículos daquele tempo eram lentos; hoje são muito
rápidos, com um limite muito alto. Passou do limite dançou feio, não recupera
mais. Estou falando de pé na tábua, andar no limite, não de velocidade normal.
Os carros de hoje são muitíssimo mais seguros dentro das velocidades permitidas
que os de minha época. Tudo mudou, mudou muito, quase que radicalmente.
Ai vem aquela coisa: De bicicleta ainda dá para
brincar. Dá mesmo? Ainda dá. Talvez. Melhor não. Depende muito de onde se está,
quem está levando a bicicleta e em que bicicleta o sujeito está pedalando. Exatamente
como no carro, ir ao limite numa bicicleta antiga era uma coisa e numa destas
caras maravilhas modernas é outra. Bicicletas atuais praticamente corrigem os
erros do ciclista, principalmente as full, o que leva o ciclista a limites
muito mais altos. Ai errou dançou, sem dó nem piedade. Bicicletas atuais são
muito mais seguras que as antigas “em baixas velocidades”. O problema é que chamam
o ciclista a socar os pedais e a maioria não tem prática ou técnica para correr.
O fato é que a bicicleta hoje carrega exatamente o
mesmo espírito humano que o automóvel carregou no passado. É status, brinquedo,
diversão, modo de transporte, objeto de poder, poder comprar, poder mostrar,
poder pedalar mais forte, poder pavonear se para os outros, masturbar o próprio
ego...
Não importa o brinquedo nem o local, a criança
sempre será ela mesma. O caráter individual não muda, pode até ceder um pouco
perante o caráter coletivo, ficar um pouco mais controlado, oculto, mas mudar não
muda mesmo.
Fomos, somos e seremos todos iguais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário