Istanbul, 30 de Agosto de 2011. Estar aqui sempre foi um dos sonhos de meu irmão, que acabo realizando eu. Ele sabia bem o que queria. Conhecer a Mesquita Azul de um lado e doutro Santa Sofia, obras monumentais da mais fina arquitetura. Conhecer este país e cidade, ponto encontro de povos e culturas seculares. História em estado bruto.
Quis o destino que eu chegasse aqui no último dia do Hamadan e tivesse a experiência de ver o povo tranqüilo vivendo a grande praça nas últimas horas deste mês religioso. Nada de especial que indicasse que ali acontecia um dos momentos mais importantes desta sociedade. Exceto a discreta e bem montada quermesse, ou feira, cercada de grades, iluminada, com seus ótimos artesãos e comidas, mesas e cadeiras. Povo muito tranqüilo, limpo, educado, organizado, silencioso; crianças livres correndo soltas e brincando longe dos pais, brinquedos luminosos voando para cima e para baixo; o som marcante, mas não estridente, de uma banda folclórica, ou o que seja, tocando num palco assistido por uma pequena multidão atenta. A iluminação dos maravilhosos minaretes, do muro da Mesquita Azul, da abóboda da própria, do pequeno obelisco no meio deste lado praça, junto com as luzinhas de Natal da quermesse, casam com perfeição com a suavidade do andar de tudo ali. Não há um rosto fora do compasso tranqüilo da comemoração. As mulheres com as cabeças cobertas ou roupas religiosas são em número menor que eu imaginava e estão integradas a tudo. Vida normal. As de burca são raríssimas, mais ainda as só com os olhos expostos. Muitas são jovens e bonitas. Os homens são absolutamente normais. Raro ver um obeso. No meio deste povo religioso circula turistas de todo gosto e gênero, vestidos de todas as formas, e não há um olhar de repreensão, nem para as européias mais despidas e impróprias para a ocasião. Algumas muito impróprias. O povo de Istanbul vive a cidade e a vida com tranqüilidade e respeito aos outros. Impressiona, muito. Dá o que pensar. “Somos todos iguais esta noite” aqui não é uma música de Ivan Lins.
O contraste com uma festa religiosa qualquer no Brasil é muito grande. Hoje, primeiro dia após Hamadan e feriado nacional Turco, todo povo novamente voltou às ruas e praças. E o contraste só se reforçou. Nós, brasileiros, somos desmedidamente barulhentos, um tanto mais expansivos que o conveniente, não raro pouco respeitosos com o próximo e, vendo este povo daqui, fica claro que somos, ou estamos, profundamente inseguros sobre nós mesmos. Isto aqui, Turkia, é civilização secular. Dá para sentir nas ruas. Nós nascemos ontem. Ou melhor, ainda estamos em trabalho de parto.
A Lira Turca tem praticamente o mesmo valor que o Real, mas a economia dos dois países tem uma escala muito diferente. Não sei se Brasil é uma potência ou um monstro econômico. Fico com o monstro. O que liga Istanbul a selvageria ocidental, em especial a nossa, é o automóvel e sua filosofia pela qual o resto que se dane. Não são tão agressivos como em nossas paragens, mas a filosofia é a mesma, e as conseqüências também. Uma das idéias mais geniais da civilização virou subversiva e faz terrorismo sem fronteiras, talvez o pior deles.
Não quis pensar muito sobre o que me aguardava vindo para cá. Gosto de surpresas e ironias da vida; e o convite caiu no colo, talvez vindo dos céus. Cá estou. Preciso repensar minha vida. Todos nós precisamos, deveríamos ter este direito, mas infelizmente a imensa maioria simplesmente não tem alternativa que deixar a vida levar. Ou não se dá este direito, sabe-se lá. Como civilização nunca fomos tão livres e aos mesmo tempo tão presidiários. Estou pensando em ficar fora, desligado, em silêncio, por um bom tempo. Preciso muito. O norte meio que se foi. Não foi a alma, mas a bússola. Turquia não estava nos planos. Ironia do destino. Minha crise é menos pessoal, mais com o que somos como povo, nação, como Brasil. Muito confuso, muito sujo.
Ironia, novamente, voei para cá num 777 da Turkish Airlines novo, praticamente zero km, companhia aérea de país onde bem mais de 90% é islâmico, de quem nós pouco conhecemos, falamos ou ouvimos falar. Exceto que “libanês é turco”; mais que falta de respeito, uma mediocridade educacional. Deu para ver bem o avião porque não havia mais finger disponível no Aeroporto de Cumbica, Guarulhos, e subimos nele por escadinha tipo anos 60. Passamos pelo gate 14B, um buraco no nível da pista, de onde fomos levados em vários ônibus para o 777 reluzente parado de frente ao futuro puxadinho, ainda não inaugurado e incompreensível. Realidade risível? Também do gate 14 saiu o vôo para Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Outra piada. O contraste da Turkish com o lixo de viagem que acabei de fazer na American Airlines é bem sensível, principalmente quando se leva pensa o que nós acreditamos estar por trás destas duas realidades, a americana e a turca, por nós desconhecida. Na Turkish fomos tratados como gente. Na AA avião e aeromoças, ou aerovelhas, estavam caindo aos pedaços, quase que literalmente. “Chicken or pasta?”.
E a brincadeira continua quando entramos no aeroporto Atatürk de Istanbul. Bem vindos à civilização! É bom nem pensar no Cumbica que nos resta, mas boa parte dos brasileiros faz comentários sobre o contraste. Tupiniquins de São Paulo, Porto Alegre, Curitiba, Rio de Janeiro, passam em rapidamente pelos controles, sofrem uma certa demora na entrega das malas, e estão todos livres. O aeroporto Atatürk é grande, organizado, limpo, funcional, os funcionários estão todos bem vestidos e são solícitos. A avenida que nos leva à cidade é limpa, sem buracos, florida; a velocidade máxima, 70, respeitada. A primeira impressão da cidade é muito agradável. Isto aqui é civilizado, lembra Europa. A bem da verdade, estamos no continente europeu, bem no finalzinho dele. Do outro lado do Estreito de Bósforo já é Ásia. Rapidamente chegamos ao hotel. Área turística, parte velha da cidade, nada demais. Bem vindo, de fato, à Istanbul. Bem vindo à uma outra cultura.
A língua deles é incompreensível para nós. Tem “ç” até no começo das palavras, “s” com cedilha, tremas, e outros acentos e formas completamente desconhecidos por nós, sons novos. Gostaria de aprender a falar pelo menos “obrigado” em turco, mas até isto é complicado de guardar. Comento com o atende do hotel sobre esta dificuldade e ele me conta sobre as línguas e povos que tem a mesma origem de fala e escrita. Me sinto um euro-centrado tupiniquim completo. A vida e o pensar infinitamente maiores que nosso simplório dia a dia brasileiro-paulistano. Por um segundo me lembro do que me guiou no passado: o horror à mediocridade. Quero voltar a ter o direito de pensar. Quero ver uma luz no fim, mas no Brasil de hoje sequer sei se estou num túnel.
Tomo um banho rápido e vou para a praça em busca de comida. E dou com a última noite do Hamadan.
Parabéns pela crítica. Adorei. Acho que assim se aprende de verdade um pouco sobre nós mesmos.
ResponderExcluirAbraço, Cláudia.