terça-feira, 9 de agosto de 2011

Céu sem estrelas

As 5h00 já estava na rua esperando um ônibus que como sempre demorou. E olhei para o céu, límpido, todo estrelado. Estrelado! A quanto tempo não via um céu estrelado? Céu estrelado! Que maravilha! Estrelas em São Paulo. O céu desta grande cidade desapareceu há muito, primeiro pela iluminação, cada dia mais forte e ampla, depois pela poluição, cada dia mais grave, densa, cinza, opaca. Eric sempre repete “nos acostumamos com o ruim”. Quando em doses homeopáticas mais fácil ainda. Nossas grandes cidades não tem mais céu, não tem mais estrelas, não vemos mais a vida, não enxergamos nossa insignificância, não sabemos mais quem somos.

Quando passou o comenta de Harley fomos, eu, meu irmão e uma amiga, até depois de Santana do Parnaíba para tentar vê-lo, mas mesmo lá a interferência das luzes da grande cidade se fez valer e o céu tinha poucas estrelas e nada de cometa. Na década de 70, em Cambuquira, sul de Minas Gerais, uma cidadezinha então com bem menos de 15 mil habitantes, era possível ir para a laje do sítio e ver um maravilhoso céu estrelado. Não tão estrelado quando o que algumas vezes vi do mar. Uma em especial me marcou; quando fui e voltei de navio cargueiro para os Estados Unidos. Foi ai que entendi o quanto somos insignificantes perante o universo. Numa das feitas subi a parte mais alta do navio, deitei no chão e depois de 45 minutos minha vista ainda estava se adaptando para ver novas e minúsculas estrelas. Outro dia me perguntaram se dava para ver a Via Lactea claramente. Claro que sim, perfeitamente. E distinguir as cores e formas das estrelas e planetas. Mas infelizmente nossos olhos não estão acostumados. Estamos cegos pelas luzes e verdades da cidade. Que universo pequeno!
À noite as luzes do navio são apagadas para quem está no comando ver melhor. Não dá para confiar só no radar. Ou pelo menos não dava então. Ficam só as luzes de posição, verde em um bordo, vermelha noutro. E o universo escancarado. Marinheiro sabe quem é neste jogo de forças gigantes. Nada, absolutamente nada! Completamente impotente!
Não ter as referências cotidianas faz bem para a alma. Em alto mar só há água. Você caminha por todos os costados e não vê nada mais que águas revoltas e o céu. Solidão. Engana-se com a convivência de meia dúzia de também solitários. As verdades lá são outras. Dizem respeito a vida, ou melhor, a sobrevivência, a própria sobrevivência. Isto ficou claro quando acordamos um dia no Caribe, Triângulo das Bermudas, já próximo da foz do Mississipi, e o mar parecia um vidro de tão calmo e liso. Responderam ao “bom dia” com um silêncio macabro e olhos fixos no infinito. Mar zero, águas tão lisas aquelas, são o sinal de tempestade forte, de tornado, talvez furacão. Nenhuma onda, céu perfeitamente azul, terror geral. Durante todo dia cruzaram uns pouquíssimos navios e um grupo de golfinhos, e deles sobraram umas pequenas marolas, nada mais. Aqueles homens, velhos marinheiros, sabiam que sofreríamos a força da natureza, era só uma questão de tempo. Como se a fúria de todas aquelas lindas estrelas despencassem sobre nós. Desbravadores dos sete mares trazidos para a realidade do universo: insignificantes!
No dia seguinte entramos no rio Mississipi e o tornado mostrou sua força. Um barco imenso, de umas 25 mil toneladas, simplesmente foi carregado uns 500 metros terra adentro. O pavor de algo desconhecido, mas sabido real, inerente àquele mar zero havia se concretizado. Estávamos todos trancados dentro do navio, estanques ao vento e chuva furiosa que parecia que iria quebrar todos vidros. O comandante, sujeito calmo, estava a beira da histeria. Os marinheiros mais velhos se recolheram aos camarotes. E assim passamos boa parte do dia. Ficamos todos exaustos. Somos nada perante a natureza, menos ainda perante o universo.
Não consegui de parar de olhar para aquelas estrelinhas lindas. O pessoal no ponto até olhou um pouco para cima, mas o frio era tanto que estavam mais preocupados em não congelar seus pescoços. Durante todos estes anos nossa vida urbana foi degradando. Sei disto porque a bicicleta me apresentou uma cidade que poucos viram. Não só São Paulo, que era de uma riqueza arquitetônica única no mundo. Tínhamos de tudo um pouco porque aqui pousou gente de todas as partes e culturas do mundo, principalmente portugueses, italianos, japoneses, alemães... A cada bairro, a cada quarteirão, a cada rua, uma nova e rica miscelânea enchia os olhos. Muito foi abaixo, destruído, perdido para sempre. A pior experiência que tive foi com Joinville, que quando conheci, lá pelo 2000, era uma gracinha de cidade, com suas pequenas casas em estilo germânico, com uma personalidade forte e tranquila. Muito foi abaixo.
As cidades fecham a alma de seus habitantes para um universo muito limitado. É nelas quer nos juntamos para sobreviver. A transformação da cidade, e nossa junto com ela, acaba nos segando sobre quem somos como indivíduos e como sociedade. Nos acostumamos com as coisas, o bom e ruim. Infelizmente nós, brasileiros, somos muito pobremente educados e acabamos usurpando do bom e nos acostumando com o ruim. Minha vida, como a de todos, deveria ser um caminho sem esquecimentos, sem sustos, sem perder o rumo. Ainda temos um universo sob nossas cabeças. Somos e sempre seremos um quase nada. Aprendi isto navegando em alto mar e vivencio esta mesma verdade toda vez que pego a bicicleta e pedalo como um verdadeiro ciclista.

Um comentário:

  1. Arturo, gostei demais do seu texto. Não sabia que escrevia tão bem! Viajei no texto e pude imaginar o céu estrelado. Um grande abraço. Cristiano - Guarapari ES (Usuário de Bicicleta como Meio de Transporte).

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