terça-feira, 14 de junho de 2011

O Estado de São Paulo
São Paulo Reclama

Folha de São Paulo

O mordomo sempre é o culpado

Mais um ciclista morreu no trânsito de São Paulo e o culpado sempre é o mordomo. Ops!, desculpe, o motorista. Vício de leitura. Mais uma vez. É tudo tão banal, automático, que a língua cai na obviedade da mesma resposta.

São Paulo produz números absurdos no que diz respeito às mortes no trânsito. Alguém deve ser responsável por esta situação, provavelmente o mordomo. Estes números se repetem há décadas sem que haja uma investigação mais profunda sobre as causas. Toda vez que morre alguém mais proeminente ou que o fato gere boa notícia os paulistanos acabam tendo uma nova conversa de péssimo gosto para os bares e esquinas. Do contrário nada. Falar sobre mortos desconhecidos e desinteressantes é muito. Discutir a questão para valer, ponderando fatos e nuances importantes? Nem pensar! Ai já é demais; fica chato. Enfim, deixa morrer..., os mortos e o assunto.

Morrem algumas dezenas de ciclistas. Morrem algumas centenas de motociclistas e morre muitas centenas de pedestres. Por ano. A imensa maioria de baixa renda e lá longe. Lá por aquelas bandas só dá notícia quando há efeito boliche, daqueles que o carro invade o ponto de ônibus. O resto é resto. Como diz a própria CET, o pedestre é o responsável pelo próprio acidente. O trânsito de São Paulo gera algo em torno de 1.500 B.O.s de IML por ano, (repito: há décadas), o que constitui literalmente uma guerra, ou genocídio. Há um órgão constituído que é responsável direto pelo trânsito. Mas toda vez que acontece uma tragédia o culpado é o mordomo. Literatura barata.

Av. Sumaré tem uma ciclovia que está abandonada. O projeto original desta ciclovia previa sua extensão da rua Turiassú (Palmeiras) até a av. Henrique Schauman, e, se não me falha a memória, dali até o Parque do Ibirapuera. Por que não foi implantado o projeto completo? E os outros projetos do Projeto Ciclista, da SVMA de São Paulo? Por que deu em nada os esforços da GTZ (http://www.gtz.de/en/aktuell/625.htm ) alemã, do ITDP (http://www.itdp.org/ ) e Fundação Clinton Brasil (http://www.clintonfoundation.org/) americanas, do I-Ce (http://www.cycling.nl/) holandês, e do Banco Mundial, para citar os mais importantes? Por que a questão do desenvolvimento da bicicleta como modo de transporte, melhorias para pedestres e pessoas com deficiência não sai da gaveta? Por que nada dá nunca certo? Por que a população acredita que não há projetos para humanizar esta cidade, para frear esta guerra? Quem melou a história? Quem melou estes esforços????

“Estamos fazendo algo, estamos começando a trabalhar”já afirmaram. Mas quem pergunta: “em que termos?”? Qual a história de bastidores das ciclovias da Radial e Pinheiros; da Ciclo Faixa de Domingo? Por que só estas saíram do papel? A que custo? Com que resultados? Para quem? Por que a CET está fazendo trabalhos só em algumas áreas periféricas? O que faz com que a escolha seja ali? Quantidade de ciclistas circulando nos locais? E o que mais há nesta história? E o resto da cidade? E os pontos críticos? Os locais de maio índice de acidentes? Por que deu tanta confusão com a ciclovia de Parelheiros? Quem assinou o projeto? Por que assinou? Em que condições? Quem é responsável de fato, pelo que manda a lei? Será que alguém que é crucial para estes projetos tem algum medo com relação ao uso da bicicleta? Qual é o enrosco? Qual é o babado entre quatro paredes? Qual é a história não contada?

Infelizmente sempre que há uma matéria especial sobre trânsito os mesmos nomes são entrevistados, sempre respondendo as mesmas mesmices e anacronismos. “Bicicleta não é compatível com o trânsito de São Paulo” - só pode ser piada publicar uma besteira destas. Trezentos e cinqüenta mil ciclistas dia de trabalho circulando pela cidade é a verdade incontestável. Não seria interessante buscar novas idéias, conceitos, visões? Não seria interessante procurar chegar mais perto da verdade? Do que vale repetir sempre a mesma coisa? É para manter tudo igual ou para satisfazer o que o público quer ouvir? Notícias Populares? Onde está a inteligência? Falando nela, seria melhor os ativistas de vez em quando tirar o capacete para arejar as idéias. Para evitar outras tragédias e construir uma cidade melhor é necessário ver o todo, não o que parece óbvio, o que foi vendido pronto e serve aos interesses de terceiros.

Márcia Prado morreu pedalando um veículo “bicicleta” (Código de Trânsito Brasileiro) numa faixa exclusiva para ônibus da av. Paulista (estabelecida dentro da lei). Este senhor, ciclista com prática, perdeu o equilíbrio e morreu numa curva de acesso para a av. Sumaré; onde todo motorista olha para o lado contrário da posição de qualquer ciclista para justamente acessar com segurança na avenida. Há ali uma seqüência de postes, como em toda a cidade; postes que tiram diminuem a visão de qualquer motorista. Não sei se o ciclista estava indo para a ciclovia de canteiro central existente na av. Sumaré; mas se ele tivesse optado por pedalar no meio da avenida eu não estranharia porque a conservação da ciclovia é péssima, ela é usada por pedestres, não está sinalizada, dentre outros problemas. A simples sinalização dos acessos à ciclovia Sumaré ajudaria muito na segurança; mas constrói-se a obra, corta-se a faixa, e o trabalho está concluído. Será?
Enfim, restringir o acidente, a morte do ciclista, ao fato local, com culpa imediata do motorista, demonstra uma falta de vontade de chegar à verdade e assim tentar evitar novos dramas. É como a coisa das drogas: prende o viciado ou o pequeno traficante. Sobre o financiador ninguém fala uma palavra. No caso do trânsito, quem “financia” estas mortes? Quem são os responsáveis diretos e indiretos pelo fato? Parece que ainda não estamos maduros para encarar esta verdade. A violência generalizada é fato inconteste. A falta de interesse na busca da verdade também. E o mordomo é sempre o culpado.

Arturo Alcorta

Um comentário:

  1. Teoristas sobre o "erro humano" costumam classifica-los em três diferentes tipos com três diferentes tipos de causas e portanto com diferentes contra-medidas: slips (deslises/lapsos), mistakes (erros/equívocos), violations (violações). Culpar o mordomo não deveria eximir das autoridades a responsabilidade em tomar as contra medidas necessárias. Deslizes ocorrem devido à falibilidade humana e só pode ser atacados com infra-estrutura (por exemplo, sistemas viários seguros e à prova de erros) ou melhoria na aptidão física, ou habilidade do indivíduo (por exemplo treinamento e qualificação dos motoristas). Equívocos são decorrentes de decisões incorretas, erro de julgamento, e só se corrige através de capacitação. Violações são erros intencionais no sentido culposo da palavra, quando o sujeito decide por não seguir a uma regra ou procedimento. decisão esta que contribui ao erro. Acredito que somente neste caso é que o mordomo poderia ser realmente crucificado, mesmo entendendo que também seria papel das autoridades coibir violações, quaisquer que sejam.

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