sexta-feira, 18 de março de 2022

abandonados

Esta coisa linda é a Carlota, ou como gosto de chamar, Fraulein Carlota Joaquina. Foi adotada depois de ter sido resgatada pela equipe da Luiza Mel em um canil com 1700 cachorros que estavam praticamente abandonados em Piedade, próximo a Sorocaba. No primeiro filme sobre o resgate dos animais, no meio de uma completa algazarra da cachorrada, é possível ver uma única gaiola com uma coisa cinza quieta, no caso a própria Carlota. Ela era reprodutora, pelo que se supõe saia da gaiola só para cruzar, como prova estava com o grupo muscular traseiro atrofiado por falta de caminhar ou correr, ou seja, ela passou uns 4 ou 5 anos trancada. Tereza adotou um pano de chão sujo. Demorou alguns meses para se comunicar, interagir, atender aos chamados, perceber a vida nova. Carlota não tinha nenhuma referência de normalidade. Tem sido uma aula de como um ser bem estimulado ganha vida e inteligência, e como vem ganhando.
A história dela me faz lembrar o filme O enigma de Kaspar Hauser, do intensamente genial diretor alemão Werner Herzog. Vale a pena ver. O paralelo com Carlota é grande.

Faz mais um pouco de um ano tive que assumir a responsabilidade de administrar a vida de uma prima com Alzheimer. Organizada a parte financeira comecei entrar na realidade de um sem número de seres humanos doentes que são literalmente largados para trás e simplesmente desaparecem na teia social. Por muita sorte, com ajuda de Dra. Fernanda, consegui contratar uma profissional de alta qualidade, Vânia, que me ajudou muito a colocar praticamente todos os outros aspectos dos cuidados com a prima em ordem. Mesmo tendo alguma condição financeira falta um tanto para chegar ao que é recomendado pelos especialistas. O absurdo é que os mais próximos a esta prima, todos educados, simplesmente não procuraram nem leram sobre o que se trata a doença e os cuidados básicos que deveriam ser tomados. Está na cartilha da ABRAz, Associação Brasileira de Alzheimer. Para mim cuidar dela foi uma loucura porque passei a pensar o que deve ser a vida de quem não tem quem olhe por eles ou não tem condição financeira. Nem falar dos que tem condições e largam, que pelo que fui informado é bem normal.
Algum estudioso social disse que os doentes "desaparecidos" giram em torno de uns 700 mil só na cidade de São Paulo. Desaparecem lenta e dolorosamente atrapalhando a vida dos que estão por perto. O Estado nestes casos praticamente não existe. Passei a não conseguir dormir direito tendo pesadelos constantes com este drama social invisível e com minha incapacidade de ajudar a melhorar o mundo. Um delírio?

Tudo nesta vida tem dois lados. Sempre me considerei um imbecil, literalmente e sem o menor chororô, tendo vários heróis como pontos de referência, alguns acreditei pela vida inalcançáveis. Com este trabalho que venho fazendo acabei descobrindo que não só não sou um imbecil como algumas das minhas referências de vida se não o são, beiram.

Faz dois dias foi assinado o último documento que dará um mínimo de estabilidade financeira para a doente, portanto dará boas garantias que ela terá um fim de vida com certa qualidade, não a ideal, mas a possível. Não é o que eu gostaria, mas é um ano luz da situação que a encontrei. Faz bom tempo que acertar na Mega Sena tinha deixado de ser um sonho, agora é um desejo porque aí dou a qualidade de vida que esta minha prima de segundo grau merece. Ela sempre foi do bem, pessoa gostosa de conviver que alegrava os ambientes, bem vinda em todos lugares. Os primeiros dias do Alzheimer são muito intensos e foi um drama. Meu convívio com ela pela vida foi bem pouco; o convívio de muitos foi perene; entendam como e o que quiserem.

Olho minha vida para trás e agora entendo claramente o que significa bullying ou bulling, em particular o familiar. A palavra idiota foi presente durante anos, dentre outros até não ditos. Ter virado ciclista foi então uma opção social intensa, para dizer o mínimo. Já faz tempo que tenho consciência plena que os problemas que tive, pessoais e de trabalho, foram causados pela minha dificuldade de expressão verbal, com certeza resultado de um problema clínico, dislexia provavelmente. Escrever também nunca foi um ato fácil.

Depois de minha prima ter assinado o documento que lhe deu garantias, e que foi fruto de meu trabalho e estratégia, fiquei completamente exausto, como raras vezes na vida fiquei. Não consegui chorar e se tivesse chorado seria compulsivo, visceral. Sou invisível e confesso que nesta sociedade que vivo até que dou Graças a Deus. 

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