terça-feira, 16 de junho de 2020

Comentários sobre previsões para as novas cidades


Complemento o texto 'Pandemia vai mudar a cidade brasileira' que publiquei sobre os inúmeros textos que falam sobre as mudanças em nossas vidas e nas cidades. Uma delas me chamou atenção, a publicada no "mobilidade" do Estadão em 10 de Junho de 2020 agora. Na página 2, + URBANISMO - 7 pontos para um Plano de Mobilidade Urbana eficiente dá "algumas medidas mencionadas por Estela Alves, mestra em planejamento urbano e regional, graduada pela FAU USP. Em negrito as propostas de Estela Alves seguidos de meus comentários 

1 - Gestão local participativa: OK, desde que o "participativa" seja de fato participativa e dê resultados, o que não costuma acontecer. Um pequeno grupo fica sabendo - porque já está envolvido de alguma forma - e sempre serão estes que participarão, o que não significa a voz do povo ou da comunidade. Por outro lado, é comum a participação de indivíduos que levam pontos muito particulares - dele, ou os que não entendem nada do assunto, não se inteiraram antes. 

2 - Modernização e pontualidade do sistema de ônibus: OK, mas se existe há décadas em vários países do mundo porque nunca conseguimos ter aqui? Uma das razões é a instabilidade da fluidez de nosso trânsito, o que tem relação direta com semaforização, sinal de comunicação, inteligência artificial, treinamento de todos, incluindo motoristas, leis. Não temos nada disto funcionando bem.

3 - Aumentar a abrangência e eficiência dos bilhetes únicos: Não opino, não conheço. O ideal é que o número de viagens dentro da cidade diminua, uma velha discussão. Bairros mais autossustentáveis deve ser o caminho para isto. 

4 - Semáforos realmente inteligentes e resistentes: É ridículo o que temos. Não consigo entender porque a sociedade não exige a troca de tudo. A CET SP (e provavelmente departamentos de trânsito de outras metrópoles) tem projeto para troca de toda semaforização que nunca saiu da gaveta. Um deles quase foi, mas na administração Kassab morreu. O que se tem no país é completamente obsoleto, um custo Brasil que deveria ser absolutamente inaceitável. Investir em semaforização inteligente de última geração custa muito, mas vale cada centavo. Um detalhe importante: para mudar o destino das metrópoles brasileiras é necessário investir em programas de semaforização que levem em consideração transporte de massa, pedestres, ciclistas, veículos leves, com definição de tempo de fluidez para cada um dos modais. Trocar o sistema por um que só dê fluidez geral, como é hoje, onde abre para todos, com alguns cruzamentos tendo um pequeno tempo para pedestres, vamos jogar dinheiro no lixo, vamos definitivamente enterrar o futuro de nossas cidades. O correto seria que o sistema semafórico fosse o mais abrangente possível, já levando em consideração uma geração de veículos sem motoristas. 

5 - Facilidade na interligação entre diversas modais: O Brasil desprezou por décadas o que foi feito em Curitiba, que serviu de referência internacional, mas não aqui. Para facilitar a interligação entre modais deveríamos ter pelo menos calçadas decentes ou, pior, ter calçadas, o que é comum não ter. E num país quente como o nosso ter sombreamento verde. Onde chove escoamento das águas. Bicicletas? É preciso mudar a forma como está sendo pensado e implantado o sistema cicloviário. Aliás, os especialistas em sistemas cicloviários deveriam minimamente saber o que é uma bicicleta, o que é um ciclista, como se pedala numa cidade e acreditar nos dados estatísticos. Interligação é tema velho, que caminha a passo de lesma. Por que?

6 - Conscientização para a redução de viagens nos horários de pico: Óbvio e simples de fazer, mas por que não se fez faz tempo, muito tempo? Onde enrosca? Quem ganha deixando como está?

7 - Promoção do transporte coletivo para crianças e adolescentes: Sem dúvidas. Crianças e adolescentes indo em bicicletas ou patinetes é pratica comum na Europa e em Caraguatatuba e Ubatuba, e provavelmente inúmeras outras cidades brasileiras, mas não é nas metrópoles. Por que? Uma das razões é a venda da insegurança, um rentabilíssimo negócio para uns poucos, mas inviabilizador de vários aspectos sociais das cidades. Crianças indo sozinhas para a escola? Vivemos um grau baixíssimo de segurança, mas também vivemos uma pandemia de medo.

Falta na análise dizer o que se faz com as leis brasileiras, o feroz corporativismo do funcionarismo público, os interesses pétreos que levam vantagens, com a população de pouca urbanidade, a precária formação de profissionais, o excesso de utopias, e principalmente de onde se tira o dinheiro para realizar estas mudanças. Só como exemplo, a troca da semaforização de Los Angeles que acabou de ser implantada custou algo em torno de 1 bilhão de dólares e levou quase uma década para ser completada. 

Ainda no "mobilidades do Estadão, página 4, +  O QUE ACONTECE NO MUNDO; Por que a China é referência em mobilidade sustentável?", uma pequena correção e uma referência histórica: Bicicleta só se tornou popular na China depois de Mao literalmente mandou que assim fosse. Por razões de tradição e cultura, antes da revolução comunista, a bicicleta foi mal recebida e se popularizou. Já na Holanda e em outros países ricos a bicicleta sempre foi bem recebida e popular. Há uma diferença brutal entre um "cumpra-se" vindo de mão forte e a concordância popular. Vale lembrar também que uma pesquisa realizada entre ciclistas em Copenhague apontou que 27% deles se pudessem não usariam a bicicleta (provavelmente preferem o conforto do carro).
Bicicleta é uma das soluções com certeza, mas deve ser tratada sem ilusões. 

Nossas cidades são anacrônicas, obsoletas, precárias. Nem sequer a manutenção preventiva é realizada da maneira adequada. O buraco é muito mais embaixo.
A discussão sobre o que fazer com as cidades brasileiras vem de muito tempo, muito antes da pandemia. Mesmo tendo profissionais e especialistas competentes muitas das propostas apresentadas ou colocadas em obras careceram de realismo por não considerarem todos os entraves e atores envolvidos ou beneficiados. Continuar com projetos de prancheta e relatórios é um erro que não podemos mais nos permitir. Urgem ações que estabilizem a vida na cidade. Urgência não é daqui 2, 3, 4 anos. Urgência é já.

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