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domingo, 28 de junho de 2020
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Black Lives Matter e a cultura
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terça-feira, 2 de junho de 2020
O que era liberdade, o que é liberdade, o que será liberdade
Primeiro: o que é liberdade?
Ontem fui até minha casa onde desde dias antes do decretado isolamento
está Cristina, que chegou de Londres para tratamento dentário e o casamento da
sobrinha e encalhou no Covid 19 daqui. Amanha volta para Londres onde mora faz
30 anos. Os três meses que passou isolada em minha casa, longe de marido e
filhos, foi para ela um bom momento de estar consigo própria. Perguntei como
tinha sido a experiência, ela falou pouco de si e muito dos filhos, da família
e marido. "Pensou sobre liberdade?" e ela continuou falando sobre
filhos, família e marido.
Tenho pensado demais sobre liberdade, uma palavra que está mais que
nunca em voga. "Como será a liberdade depois da pandemia?", tema
predileto em rádios e TVs. Comecei por olhar o que foi minha liberdade antes
desta confusão, uma revisão de vida a qual ainda não cheguei a uma conclusão,
exceto que me considero um abençoado. A vida que tive e tenho é de uma
tranquilidade..., o que de certa forma me dói um pouco. Senso de culpa cristão
provavelmente, mas não só. Liberdade é fazer acontecer?
Sentado no meu pequeno jardim conversando com Cristina me dei conta que
não é liberdade, mas liberdades, muitas, em muitos sentidos. Estou solto no
mundo, quase que completamente livre. Cristina tem as famílias e um extenso
grupo de amigas muito próximas com quem está praticamente todos dias. A
pergunta "liberdade" não lhe é tão contundente.
Hoje vou estar com ela para uma pizza de última noite antes da volta
para Londres. Deixarei um recado: "olhe mais para si própria, deixe os
filhos e a família voarem de si". Ela foi e é uma mãe e mulher de raro
valor, tem que começar a olhar para si própria, pelo menos deveria. É o que
resta a quem entrou no “senta!”: cinquenta, sessenta, setenta... Pelo menos é o
que nos leva ao sinônimo de liberdade: maturidade. Não é a mesma coisa, mas
serve bem.
Quem se ver no espelho enxerga seus demônios, os normais, os bonzinhos e
os que assustam. Abençoado é aquele que olha no espelho e se vê pleno. A
liberdade começa aí, a própria liberdade e a que os outros receberão de você em
consequência de seu encontro com sua verdadeira liberdade. Não há liberdade sem
disciplina, e não há disciplina sem autoconhecimento. Não há
autoconhecimento sem interação com a meio ambiente.
Sou um acumulador de memórias. Me dão a liberdade de voar sem escalas para meu passado, dos momentos divinos aos complicados. Tudo que tenho tem vida própria, coisa de Disney, como os móveis e utensílios do palácio da Bela e a Fera. Minha casa está lotada de memorabilias, desde dezenas de vidros de café cheios de pequenas lembranças, até um quarto cheio de brinquedos a vista, guardados ou escondidos, e até dois ursinhos, o meu e de meu irmão, tudo com seu significado e sua vida própria.
A liberdade do passado está relativamente bem resolvida. Algumas
liberdades que tive no passado não. Erros de escolha, falta de orientação, limites
não estabelecidos, besteiras típicas de um tempo passado numa sociedade perdida
em suas próprias transformações ininterruptas. São os meus demônios? São fruto
de uma busca incessante de liberdade dita coletiva, mas muito individual.
Liberdade eunuca.
Creio, repito – creio, que minha liberdade atual também está resolvida.
Penso, logo existo. Porque penso e não paro de pensar e porque não param de
falar sobre como será a liberdade pós pandemia, que ninguém sabe bem, é que me
meti nesta confusão. Trancado dentro de casa talvez não haja coisa melhor para
fazer do pensar em liberdade. Quem sou eu?
Sou livre e terei toda liberdade do mundo quando tudo voltar ao normal. Bom, e daí, o que faço com minha liberdade? Alguém tem uma sugestão?
Não tenho mais espaço para as bicicletas e não ganho na Mega Sena
Não tiro na Mega Sena e não me desfaço das bicicletas que lotam um dos quartos e mais as que estão na sala, uma conta que não dá certo porque um dia acabo dormindo na rua para as bicicletas ficarem bem abrigadas. Acho que tem alguma coisa errada: eu. O que me consola é que não sou o único, tenho um monte de amigos que tem o mesmo problema, não tiram na Mega Sena e tem que ficar numa briga eterna com a família por causa do monte de bicicletas espalhadas pela casa. Fora as peças e acessórios. Pior é quando você vicia o ou a companheira e acaba com duas coleções de bicicletas. Faz um bom tempo recebi um Whatsapp de um cara deitado na cama de casal abraçado com sua bicicleta. Mais ou menos por aí. A briga acaba sendo para ver quem dorme no chão abraçado com sua bicicleta. Como já dormi na calçada debaixo de chuva agarrado a duas bicicletas sei como é.
No meio desta pandemia, saindo de casa pouco, estou começando a ficar preocupado com o número absurdo de bicicletas paradas dentro de casa. Para que quero tantas? Pergunta idiota. Só me pergunto porque não posso pedala-las ao mesmo tempo, esta é a verdade. Para cada uma delas tenho um sonho, um desejo de pedal, de trilha, estrada ou viagem que no meio deste isolamento ficam mais vivos e reforçados pela presença de cada uma delas. Fiz a subida do Desafio da Serra do Rastro com minha amada Haro Flight Line 26 em homenagem aos anos, mais de década, de prazer que ela me deu - e continua dando. Parada ao lado dela minha KHS Vitamin A híbrida que me levou em algumas viagens longas. A velha KHS de cromo-molibdênio de estrada saiu faz pouco e é tratada com deferência. A Groove 29 já elogiada aqui que me levou pelo Caminho da Fé. A Trek híbrida 7100 preta pronta para dias de chuva, para-lamas e bagageiro, toda preta, jeito de Europa, chiquérrima. Nas minhas costas está minha Btwin de estrada pronta para fugir agora, neste exato instante. Faço a cama e sumo. Fui, sigo quando voltar.
Desço a escada com a Btwin no ombro. É leve, tão leve quanto qualquer estradeira de marca dita chique da mesma faixa de preço, só que mais barata e muito menos chamativa. No tubo de selim está um selo "designed and tested Flandes" que não dei importância até que um amigo ex ciclista profissional fazer um teste e elogiar muito esta Btwin Triban 500. O significado do selo: alta qualidade. Simplificando: segundo publicações europeias de longe o melhor custo benefício do mercado na época que a comprei.
Todas minhas meninas são assim, deliciosas, não por ser minhas meninas, mas porque são - deliciosas. Duvida? Quer testar?
Em pouco tempo entrei na Anhanguera um tanto assustado com o movimento de carros, muito maior que há alguns dias e nada bom para controlar a pandemia. Pedalei feito uma lesma, olhei de perto o Pico do Jaraguá, ícone de tantos bons sentimentos, e dei meia volta no viaduto SBT. "As perna num vai". Decisão sábia. Sair com a bicicleta de estrada e voltar depois de 10k é duro, mas muito mais inteligente que machucar um músculo. Ontem já estava com as pernas doloridas, cansadas, e tinha pensado em dar um ou mais dias de descanso para elas, mas quem segura a coceira? A ideia era ir até a balança de Jordanesia e voltar, 30 km ida, 30 km volta, mas seria irresponsável. Conhecer e respeitar os limites é uma benção da maturidade.
Na volta saí da Anhanguera pelo caminho sinalizado para Mutinga - Osasco, que desconhecia. Curiosidade mata! Passa por uma acanhada avenida de mão dupla, cheia de gente e negócios abertos, nada bom para quem quer manter o isolamento a sério. Pelo menos tinha carros estacionados dos dois lados. Consegui passar longe de todos pedalando forte no meio da rua. Isolamento, isolamento! Um pouco depois cheguei à avenida que ladeia um córrego (av. Onix, depois Av. Brasil) e a angústia deixou de ser as pessoas por perto e passou a ser o horror do córrego completamente poluído, drama muito pior que a pandemia. Cruzo o rio Tiete pela passarela vazia, pedalo mais um pouco e felizmente entro no tranquilo bairro residencial Presidente Altino. Daí para frente pedal isolado até voltar para casa.
Pelo sim, pelo não, foi um ótimo treino. Minhas pernas doem.
E se tirar a Mega Sena o que faço da vida? Pedalar com certeza, mas o que mais? Faz sentido ter todas estas bicicletas? Compro ou não compro uma casa maior? Que tal pensar em viver? Vale mais a pena. A pandemia e o isolamento me fazem olhar em volta e pensar de outra forma o que quero desta vida. Pedalar para liberdade é uma coisa, ter um monte de bicicletas cheias de sonhos é outra. O que fazer?