domingo, 13 de outubro de 2019

"Poderia a bicicleta ter salvo o planeta?" Comentários sobre artigo do Washington PostP

Faço aqui comentários em cima de bom artigo publicado no Washington Post (WP) sobre o que foi a bicicleta nos Estados Unidos. 



WP: 
Infelizmente, a era da bicicleta (nos Estados Unidos, nas últimas duas décadas de 1800 e primeiros anos de 1900) durou pouco. Os primeiros fabricantes de automóveis logo adotaram as principais tecnologias da fabricação de bicicletas, e as estradas que haviam sido defendidas por ciclistas ficaram entupidas de carros no século XX. A classe média desenvolveu um apetite precoce por automóveis por causa de sua velocidade e paixão por cair na estrada, e tinha dinheiro para rejeitar bicicletas e bondes em favor desses meios de transporte (automóveis).

Comentário: 

Estados Unidos é um país com vasto território, distâncias enormes e com muita disponibilidade de terras, o que influenciou seu desenvolvimento. A bicicleta surge na segunda metade do século XIX e vai funcionar principalmente no perímetro urbano das cidades grandes, a maioria ainda não completamente calçadas. É possível pedalar na temporada de clima quente e seco, mas não em época de chuva, por causa do barro, ou de neve e frio intenso quando até com calçamento sair de bicicleta fica difícil. Por outro lado, a maioria da população ainda vivia no campo, distante das cidades, com acesso por estradas precárias de terra, ruins para as bicicletas de então. Uma das razões para o Ford T ter feito tanto sucesso é que independente das condições do terreno, barro ou neve profunda, pedras, córregos, valetas, ele simplesmente não para. No calor tem uma simples capota, no frio para-brisas, e rapidamente ganhou portas com janelas. É muito mais confortável que as bicicletas da época, duras, sem marchas e pesadas de pedalar, que freiam pouco, não levam cargas com facilidade, atolam... O sucesso das bicicletas se deve as vantagens que ela tinha em algumas situações para os cavalos: custo muito menor, nenhuma necessidade de cuidados constantes, ocupa muito menos espaço, é a única alternativa para milhares de famílias que moravam em pequenas casas urbanas. O golpe final não só na bicicleta, como no cavalo: Ford T acaba sendo acessível para boa parte da população, gasta pouca gasolina e sua manutenção é praticamente zero. Mais: Fort T não caga, não solta bosta de cavalo, o que tinha se tornado um problema gravíssimo para todas as cidades. 

Neste contexto faz todo sentido que o automóvel tenha caído no gosto de todos. Mais ainda, o automóvel foi em determinando momento um maravilhoso instrumento de enriquecimento e melhorias sociais para todas as populações, incluindo os mais pobres. Neste sentido se pode tirar um paralelo com a Internet: hoje quem não tem Internet está fora do jogo econômico e social. 


A maioria das cidades grandes americanas tiveram um eficiente sistema de bondes que por diversas razões foi desaparecendo até acabarem. É lógico que o automóvel e sua indústria têm muito a ver com o desaparecimento dos bondes, depois dos troleibus e a atual precariedade no sistema de ônibus, mas não se pode culpar só os automóveis, há inúmeros outros fatores envolvidos. Os norte-americanos têm como norte o trabalho e o resultado, e vivem numa sociedade tipicamente classe média onde status e pressão social são uma forte constante. Simplificando: efeito boiada. Sem falar no peso econômico, estratégico, interno e externo, até de geopolítica mundial, que o setor automobilístico teve para os americanos, não só pelo veículo em si, mas pela imensa cultura por trás dele.

WP:
Com o tempo, ficou claro que essa transição (da bicicleta para o automóvel) tinha muitos custos. Um resultado negativo foi a perda constante de cidades em escala humana, pois os carros assumiam todos os aspectos do crescimento urbano. Em vez de manter o desenvolvimento compacto e de uso misto (residencial, comercial e industrial juntos) que produziu nossas vibrantes cidades primitivas, a adoção em massa de automóveis levou à expansão suburbana e periférica. Planejadores do século XX, como Robert Moses, de Nova York, pouco se importavam com as comunidades que foram devastadas quando as estradas passaram a cruzar a paisagem urbana. Quando os ricos fugiram para bairros suburbanos exclusivos, o tecido econômico e social de regiões inteiras começou a se desgastar e desmoronar.

Comentário: Duvido que durante a transição para o automóvel tenham tido a capacidade de enxergar o erro que estavam cometendo deixando para de lado a bicicleta (e depois bonde e troleibus). Erros, imperceptíveis no momento, são muito mais fáceis de serem apontados depois de passado um bom tempo. A perda da escala humana na cidade não só tem relação com o automóvel, mas com as novas possibilidades de criação e uso do espaço público e privado, projetos e princípios de desenvolvimento econômico, perspectiva de futuro individual, da família, comunidade e até mesmo do país inteiro.

Antes do automóvel o trem rasgou cidades, separou comunidades, devastou áreas bem urbanizadas, e no custo / benefício econômico e de desenvolvimento social até um certo momento, exatamente como na chegada do automóvel, valeu a pena. Repetiram a dose com o automóvel agregando valor aos serviços dos trens; e sob vários pontos de vista valeu a pena, pelo menos até certo momento. E depois do surgimento do automóvel aconteceram duas Guerras Mundiais, o que impulsionou mais ainda o setor por razões ligadas a reconstrução dos países envolvidos.

WP: Para incentivar a transição de carros para bicicletas, as cidades dos EUA devem adotar as melhores práticas de seus colegas europeus. Para ser claro, esse será um processo de décadas. Sabemos disso porque nas cidades ciclistas mais amigáveis do mundo, que também já eram loucas por automóveis, esse é o tempo que levou para mudar atitudes e desenvolver a infraestrutura necessária.


Comentário: Ponto de partida que é óbvio, mas costuma passar desapercebido: cidade européia é cidade européia, e cidade americana é cidade americana. A diferença entre elas é muito grande, em vários aspectos. O recorte urbano é outro, a dimensão, as distâncias...
É óbvio que se deve adotar as melhores práticas, não só em relação ao uso da bicicleta, mas em tudo. Códigos, leis e engenharia de trânsito é ciência, portanto resultado de coleta de dados, tentativa e erro, resultado, a busca de eficiência e "morte zero", o lema atual. Mas aí entram fatores históricos e culturais, que complica um pouco tudo. Com a reconstrução social (e cultural) que estamos tendo com as redes sociais, a questão é a população aceitar regras, não uma questão de tempo, pelo menos não tão longo como o artigo diz. Não serão décadas, mas anos, década talvez. bato uma aposta. Se a passagem da cidade do automóvel para a da bicicleta (e outras mobilidades ativas) for feita com um viés anárquico aí a coisa pode complicar e muito, coisa que já está acontecendo em alguns lugares.

Não se tem nada a aprender com tudo que aconteceu com o automóvel? O que nos restou é só dizer que automóvel nas cidades é uma praga; e jogar toda uma cultura que deu certo no passado? 

A melhor prática num momento histórico foi incentivar o automóvel, por "n" razões; ponto. Vou mais longe: bicicleta naquele contexto era tida coisa de louco que não fazia ideia da realidade, como foi para a maioria dos europeus nos anos 70, 80, a partir de quando a bicicleta começou a ser levada a sério em algumas cidades europeias, principalmente nas menores ou com menos espaço disponível. Hoje a questão não é simplesmente a transição do automóvel para a bicicleta, mas a urgência de recuperar a qualidade de vida nas cidades, ou seja, melhorar a vida de todos e todos, sem exceção, inclusive ciclistas, não só para ciclistas. Mas se deve falar em transição, não varrer o passado, o que tem grande chance de se tornar um tiro no pé.

A questão que se enfrenta em qualquer mudança é a dificuldade para as sociedades largarem seus vícios e aceitarem o que é uma boa prática. Algumas, melhor, muitas ditas boas práticas foram enfiadas goela abaixo, a bem dizer goela abaixo em todos sistemas políticos, dos mais diversos matizes, sem exceção. Chinês não gostava de bicicleta e continuou não gostando mesmo depois de Mao Tse Tung e o partido comunista enfiaram goela abaixo no povão. Não tinha outra alternativa e todo mundo usou; ponto. Quando puderam comprar carros entupiram as cidades. Hoje entendem a praticidade e estão voltando para a bicicleta.

Boas práticas podem ter curto, médio ou longo prazo de benefícios, mas tudo tem custo / benefício. Como dizem os americanos, "não existe almoço grátis".
Vamos para as novas metrópoles, como a NY que eu tanto elogio. Era uma cidade com problemas graves em todos setores, mais ou menos como o Rio de Janeiro de hoje. NY passou por profundas mudanças através do Tolerância Zero até voltar a ser uma cidade com vida normal, ou seja, com pessoas voltando a viver tranquilas e sem medo nas ruas, avenidas, praças e parques. A bicicleta entra para valer no cenário de NY a partir da estabilização social da cidade. Antes, quando a cidade ainda era tensa, perigosa, ciclista era tido como meio marginal, não um bandido, mas mais problema que solução. Em 1987, o Prefeito de NY Ed Koch quase quase proibiu a circulação das bicicletas pela cidade.

Um pequeno detalhe: todas as grandes cidades que eliminaram seus principais problemas ficaram mais ricas, geraram mais impostos, resolveram vários problemas sociais, mas não todos. Exatamente por todos os benefícios estão se tornando caras e por isto meio que expulsando populações mais pobres, as que não tinham automóveis, usavam transporte público ou a tão então mal falada bicicleta. A bicicleta é ponto importante para a transformação. E aí, como fica o velho ditado "ao socialismo se vai em bicicleta"? 

WP: Em Copenhague, onde mais de 60% das viagens diárias são feitas de bicicleta, os líderes começaram a se afastar dos carros há quase meio século. Eles começaram aumentando lenta mas constantemente os custos de dirigir - principalmente aumentando os impostos sobre automóveis e gasolina, mas também reduzindo a disponibilidade de estacionamento - e usando a receita para criar uma infraestrutura de bicicleta, que inclui quilômetros de ciclovias separadas e ininterruptas. como túneis de bicicleta, pontes e semáforos. Essas “ruas completas” e as “rodovias de bicicleta” (complete streets” and “cycling superhighways”) evoluíram ao longo do tempo para reduzir o espaço disponível para carros e as velocidades nas quais eles podiam viajar. À medida que a direção se tornou mais frustrante e o ciclismo se tornou mais eficiente, o número de viagens diárias feitas de bicicleta aumentou significativamente.


Comentário: Faz alguns anos uma pesquisa oficial do governo apontou que 27% da população de Copenhague se pudesse não usaria a bicicleta.

Automóveis geravam uma cordilheira de empregos diretos e indiretos, e ainda geram, portanto ainda tem grande peso na estabilidade social. Empregos estão desaparecendo em todos setores, o número de desempregados é enorme, não só no Brasil. Como frear um setor tão grande e importante como o dos automóveis? Como reestruturar toda a logística de transportes das cidades, humana e de cargas? O que fazer com seus empregos? A perda de empregos tradicionais é irreversível, mas como fazer esta transição sem o colapso social? O que custa mais; o automóvel na cidade ou colocar a estabilidade social e da cidade em jogo?
A riqueza gerada pelo automóvel ainda é imediata e gigantesca. A verdadeira riqueza gerada pela bicicleta é de outra natureza, o que demanda uma mudança de posicionamentos macro econômicos profundos numa sociedade estável e viciada. O ideal é que não seja simplesmente tirar o carro e colocar ciclovia. A questão central é a cidade. Apontar o dedo para quem pode ser o culpado mais provável geralmente não funciona.
Não resta dúvida que a transição vai o ocorrer e muito mais rápida que no passado, mas não será tão simplista quanto "do automóvel para a bicicleta". A internet levou a uma diminuição sensível de movimentações e transportes nas cidades, e vai diminuir mais ainda, não há dúvida. O automóvel já está sendo cada vez menos necessário, o que não quer dizer que isto tenha uma relação direta com a necessidade da bicicleta, tão pouco com extinguir o automóvel.
Precisamos parar com os problemas que o automóvel e seu uso irracional vem causando, mas não precisamos de populismo, de soluções mágicas, de encantos ou modismos.

Em 1974 Argentina tinha 4% de sua população na pobreza e era um dos países mais ricos. Hoje, 2019, dados oficiais dão que 34,5% da população se encontra na pobreza. Porque aconteceu isto? Populismo puro, falta de coragem para realmente lidar com os problemas, aliás, nem saber bem quais eram os problemas, falta de planejamento, e mais soluções populistas. Acreditar e realizar mudanças necessárias sim, equidade sim, mas é necessário faze-las com bom senso, passo a passo. E sempre lembrar que não existe almoço grátis. Nem milagres. Bicicleta é um veículo, não um milagre.



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