Quando Paul MacCartney veio pela primeira vez a São
Paulo conversei com Renata, "Vamos levar o Paul para pedalar?" Não
conseguimos, mas ele pedalou por aqui. Que oportunidade perdida! E aí aparece
este vídeo do Carpool trazendo um monte de recordações...
Se tiver que fazer uma relação entre os Beatles e a bicicleta volto aos meus 14
anos passando férias no Guarujá na pequena e charmosa casa dos Falzoni com
Renata, Roberto e Ricardo, de vez em quando outros primos, Calico e Roberto em
especial. Naquele 1969 Abbey Road tocou na pequena vitrola mono as férias
todas, não sei como Yeda, santa mãe, aguentou. Parava quando íamos à praia ou
quando saíamos a pé ou em bicicleta. Tínhamos a disposição três bicicletas
Caloi Fiorentina, duas aro 26 e uma 24, se não me falha a memória.
Aquela foi uma semana feia, com dias de chuva
contínua, céu cinza, enfurnados em casa, lendo e ouvindo música, pela manhã
indo à praia para ficar desapontados com o mar furioso em ressaca. Choveu forte
toda a manhã e o sol voltou com tudo ardente num céu azul límpido que abriu
rápido no meio da tarde. Felizes desligamos a vitrola, guardamos o disco na
capa, pegamos as bicicletas no fundo do terreno, eu e Renata. O sol de tão
forte já fazia com que um leve vapor começasse a subir do asfalto molhado.
Dobramos a esquina, entramos na avenida e subimos na calçada da praia pedalando
forte rumo ao centro para tomar um sorvete na Caramba. A calçada levantada
pelas raízes das árvores, figueiras-de-jardim, foram rampas para pulos de
felicidade com as bicicletas. Pulei a primeira, pulei a segunda, meu pé
escorregou do pedal, cai no selim que cedeu e dei forte com o saco no tubo
superior. Tentei controlar a direção (e a dor) mas a roda passou sobre uma
folha podre e molhada, escorregou, e direcionou a bicicleta para o meio do
tronco da árvore seguinte. Pés escorregando no cimento molhado e cheio de
folhas podres e parei no meu saco contra tronco e guidão. Caí em dor,
retorcido, coloquei a mão nas bolas meio tonto e gemendo. Olho para cima, para
os céus, e aparece Renata chorando de rir, tanto que também desandei a
gargalhar entre os urros de dor. E foi assim que perdi a capacidade de ter
filhos, felicidade para minhas namoradas que nunca engravidaram.
Yeda, santa Yeda, e foi assim que no dia seguinte
Yeda devolveu o santinho para minha mãe na balsa Santos -
Guarujá. O short não conseguia esconder o saco preto do tamanho de uma bola de
futebol de salão, doloroso e vergonhosamente pendurado sob o fino tecido. O
andar lento com pernas abertas só piorava minha vergonha. Até os peixes do
canal olhavam. Confesso que até hoje não consigo entender como consegui entrar
nos carros. O fim daquelas férias me lembro bem; em Santos e com outros primos
indo ao quarto para rir. Nem a vitrola tinha.
Esta entrevista com Paul MacCartney para o Carpool
Karaoke toca na alma, não só pelas histórias dos Beatles, mas pelas recordações
que traz. Lembro de minha irmã ainda menina ouvindo o disco "A hard day's
ninght" no último volume junto com Celinha e Regina num final de tarde de
um céu azul mágico e uma temperatura agradabilíssima, provavelmente primavera.
A vitrola ficava perto da porta de entrada da casa, que estava escancarada, e
fiquei sentado nos degraus do pequeno terraço ouvindo as músicas com as três
cantando e esboçando dança.
Paul fala na entrevista sobre detalhes de várias
canções. Let it be, ligado a um sonho de MacCartney com a mãe, me remete
a minha adolescência e uma Buenos Aires que andei, andei, andei por todas as
partes simplesmente olhando a cidade e a vida dos porteños. Quando voltava para
o apartamento de meu avô Arturo Raul ouvia o então recém lançado álbum branco
dos Beatles de meu tio Zé Maria. Podia acompanhar as músicas com um livro
ilustrado com as letras, mágico livro que nunca mais vi igual. A sonoridade das
composições do álbum branco era nova, num tom especial, desafiadoras. Incrível,
mas não me dei conta de Helter Skelter, provavelmente a música mais forte do
álbum duplo. Talvez não esteja errado em dizer que foi um prenúncio do barulho
punk que surgiria anos depois. Minha bisavó Mamita Elena dizia que ouvir
aquelas músicas, mesmo a suave Black bird, durante as refeições fazia mal a
saúde e mandava desligar a vitrola. Era uma Argentina fortemente ligada à
Igreja e avessa a mudanças.
Ver Paul dobrar a esquina no Carpool Karaoke e
falar sobre a Penny Lane me jogou direto aos domingos chuvosos que ficávamos
todos, eu e os Falzoni, na sala de TV de Yeda ouvindo Sargent Pepers e Magic
Mistery Tour, então desconhecido no Brasil. I'm the Walrus foi o trampolim
musical para minha adolescência. Ainda hoje a ouço com raro prazer e emoção.
Foi naquelas tardes frias e chuvosas que descobri a obra alucinadamente
maravilhosa de Dali, o que dava mais força ao Walrus e Strawberry Fields
Forever. Sempre aparecia a portuguesinha com uma grande tigela de pipoca quente
e cheirosa. Tardes inesquecíveis.
Tive a felicidade de poder ouvir não só Beatles,
mas a maioria dos discos em aparelhos de som de ótima qualidade. Som de
qualidade é outra história, outro universo, outra emoção, outra educação para o
espírito. Eu próprio tive um Heico, um amplificador valvulado americano de
baixa potência, mas grande precisão, que me foi dado por meu pai junto com
caixas acústicas em madeira compensada que respondiam com perfeição aos graves,
médios e agudos. E os discos eram LP, bolachas, tocados em uma ótima agulha.
Cada detalhe saía das caixas e era apreciado com respeito. Quase enlouqueci meu
irmão, vizinho de quarto; e todo edifício (a quem peço desculpas cada vez que
passo na porta).
Acredito que tenha sido o primeiro brasileiro a
ouvir Taxman, do Revolver. O disco acabara de sair em Londres e Rodrigo, primo
de meu pai, trouxe os primeiros imediatamente depois do lançamento para serem
tocados numa rede de rádios espalhada pelo Brasil. Meu pai foi pega-lo no
aeroporto e passou a mão num deles para minha irmã Dinorah, Beatle
maniaca. Chegou bem cedo em casa naquela manhã de névoa cerrada, abriu o móvel,
colocou o disco num volume bem alto e me disse "Quero ver em quanto tempo
sua irmã acorda". No meio da música estava ela e Celinha descem correndo
escada e aos berros "O que é isto?" pulavam no meio da sala.
Quando Paul MacCartney veio pela primeira vez a São
Paulo conversei com Renata, "Vamos levar o Paul para pedalar?" Não
conseguimos, mas ele pedalou por aqui. Que oportunidade perdida! E aí aparece
este vídeo do Carpool trazendo um monte de recordações...
Se tiver que fazer uma relação entre os Beatles e a bicicleta volto aos meus 14
anos passando férias no Guarujá na pequena e charmosa casa dos Falzoni com
Renata, Roberto e Ricardo, de vez em quando outros primos, Calico e Roberto em
especial. Naquele 1969 Abbey Road tocou na pequena vitrola mono as férias
todas, não sei como Yeda, santa mãe, aguentou. Parava quando íamos à praia ou
quando saíamos a pé ou em bicicleta. Tínhamos a disposição três bicicletas
Caloi Fiorentina, duas aro 26 e uma 24, se não me falha a memória.
Aquela foi uma semana feia, com dias de chuva
contínua, céu cinza, enfurnados em casa, lendo e ouvindo música, pela manhã
indo à praia para ficar desapontados com o mar furioso em ressaca. Choveu forte
toda a manhã e o sol voltou com tudo ardente num céu azul límpido que abriu
rápido no meio da tarde. Felizes desligamos a vitrola, guardamos o disco na
capa, pegamos as bicicletas no fundo do terreno, eu e Renata. O sol de tão
forte já fazia com que um leve vapor começasse a subir do asfalto molhado.
Dobramos a esquina, entramos na avenida e subimos na calçada da praia pedalando
forte rumo ao centro para tomar um sorvete na Caramba. A calçada levantada
pelas raízes das árvores, figueiras-de-jardim, foram rampas para pulos de
felicidade com as bicicletas. Pulei a primeira, pulei a segunda, meu pé
escorregou do pedal, cai no selim que cedeu e dei forte com o saco no tubo
superior. Tentei controlar a direção (e a dor) mas a roda passou sobre uma
folha podre e molhada, escorregou, e direcionou a bicicleta para o meio do
tronco da árvore seguinte. Pés escorregando no cimento molhado e cheio de
folhas podres e parei no meu saco contra tronco e guidão. Caí em dor,
retorcido, coloquei a mão nas bolas meio tonto e gemendo. Olho para cima, para
os céus, e aparece Renata chorando de rir, tanto que também desandei a
gargalhar entre os urros de dor. E foi assim que perdi a capacidade de ter
filhos, felicidade para minhas namoradas que nunca engravidaram.
Yeda, santa Yeda, e foi assim que no dia seguinte
Yeda devolveu o santinho para minha mãe na balsa Santos -
Guarujá. O short não conseguia esconder o saco preto do tamanho de uma bola de
futebol de salão, doloroso e vergonhosamente pendurado sob o fino tecido. O
andar lento com pernas abertas só piorava minha vergonha. Até os peixes do
canal olhavam. Confesso que até hoje não consigo entender como consegui entrar
nos carros. O fim daquelas férias me lembro bem; em Santos e com outros primos
indo ao quarto para rir. Nem a vitrola tinha.
Esta entrevista com Paul MacCartney para o Carpool
Karaoke toca na alma, não só pelas histórias dos Beatles, mas pelas recordações
que traz. Lembro de minha irmã ainda menina ouvindo o disco "A hard day's
ninght" no último volume junto com Celinha e Regina num final de tarde de
um céu azul mágico e uma temperatura agradabilíssima, provavelmente primavera.
A vitrola ficava perto da porta de entrada da casa, que estava escancarada, e
fiquei sentado nos degraus do pequeno terraço ouvindo as músicas com as três
cantando e esboçando dança.
Paul fala na entrevista sobre detalhes de várias
canções. Let it be, ligado a um sonho de MacCartney com a mãe, me remete
a minha adolescência e uma Buenos Aires que andei, andei, andei por todas as
partes simplesmente olhando a cidade e a vida dos porteños. Quando voltava para
o apartamento de meu avô Arturo Raul ouvia o então recém lançado álbum branco
dos Beatles de meu tio Zé Maria. Podia acompanhar as músicas com um livro
ilustrado com as letras, mágico livro que nunca mais vi igual. A sonoridade das
composições do álbum branco era nova, num tom especial, desafiadoras. Incrível,
mas não me dei conta de Helter Skelter, provavelmente a música mais forte do
álbum duplo. Talvez não esteja errado em dizer que foi um prenúncio do barulho
punk que surgiria anos depois. Minha bisavó Mamita Elena dizia que ouvir
aquelas músicas, mesmo a suave Black bird, durante as refeições fazia mal a
saúde e mandava desligar a vitrola. Era uma Argentina fortemente ligada à
Igreja e avessa a mudanças.
Ver Paul dobrar a esquina no Carpool Karaoke e
falar sobre a Penny Lane me jogou direto aos domingos chuvosos que ficávamos
todos, eu e os Falzoni, na sala de TV de Yeda ouvindo Sargent Pepers e Magic
Mistery Tour, então desconhecido no Brasil. I'm the Walrus foi o trampolim
musical para minha adolescência. Ainda hoje a ouço com raro prazer e emoção.
Foi naquelas tardes frias e chuvosas que descobri a obra alucinadamente
maravilhosa de Dali, o que dava mais força ao Walrus e Strawberry Fields
Forever. Sempre aparecia a portuguesinha com uma grande tigela de pipoca quente
e cheirosa. Tardes inesquecíveis.
Tive a felicidade de poder ouvir não só Beatles,
mas a maioria dos discos em aparelhos de som de ótima qualidade. Som de
qualidade é outra história, outro universo, outra emoção, outra educação para o
espírito. Eu próprio tive um Heico, um amplificador valvulado americano de
baixa potência, mas grande precisão, que me foi dado por meu pai junto com
caixas acústicas em madeira compensada que respondiam com perfeição aos graves,
médios e agudos. E os discos eram LP, bolachas, tocados em uma ótima agulha.
Cada detalhe saía das caixas e era apreciado com respeito. Quase enlouqueci meu
irmão, vizinho de quarto; e todo edifício (a quem peço desculpas cada vez que
passo na porta).
Acredito que tenha sido o primeiro brasileiro a
ouvir Taxman, do Revolver. O disco acabara de sair em Londres e Rodrigo, primo
de meu pai, trouxe os primeiros imediatamente depois do lançamento para serem
tocados numa rede de rádios espalhada pelo Brasil. Meu pai foi pega-lo no
aeroporto e passou a mão num deles para minha irmã Dinorah, Beatle
maniaca. Chegou bem cedo em casa naquela manhã de névoa cerrada, abriu o móvel,
colocou o disco num volume bem alto e me disse "Quero ver em quanto tempo
sua irmã acorda". No meio da música estava ela e Celinha descem correndo
escada e aos berros "O que é isto?" pulavam no meio da sala.