A
mulher loira e bem vestida está com a cara encostada no interfone do edifício.
Conforme vou me aproximando percebo que a voz está um pouco alterada. “Você
quer que eu tire uma foto?”, diz ela para o porteiro que a olha enfadonho de
dentro de sua guarita de vidro. Quando estou passando por trás ela se volta
para mim e pergunta “Você acha que não posso estacionar aqui? Acha que estou
atrapalhando a entrada do edifício? Vou tirar uma foto para mostrar a ele”,
termina apontando para o porteiro. É uma mulher já feita, lá pelos 40 anos,
loira, corpo cheio e bem definido, bonita, vestida com calça e blusa beges de
um tecido leve, delicado, algumas joias ou bijuterias, que combina com os
cabelos soltos. Transparece ter tido berço, boa educação. Quer porque quer
deixar seu carro ali, uma SUV preta, vidros escuros, grande, alta, espaçosa. Na
rua não outra vaga. Ela se dirige para a traseira da SUV olhando nos meus olhos
com raiva e apontando para o chão. A raiva dela não a deixa ver, mas boa parte
da traseira da SUV está dentro da linha amarela que define o espaço de entrada e
saída da garagem. “Você acha que está atrapalhando? Você acha que não dá para
entrar e sair? Vou tirar uma foto”, repete irritada para mim. “Se fosse você,
iria conseguir passar por ai? Iria conseguir manobrar o carro?”, respondo seguindo
em frente para não dar trela. Percebo que ela para e olha para baixo em
silêncio. Cruzo a rua e vejo a SUV saindo da vaga.
De
imediato vi passar na minha testa um texto politicamente incorreto sobre o
ocorrido. Voltei para casa, sentei na beira da cama, e como já estava com o
computador fechado, anotei algumas coisas numa folha de papel. Lembrei de minha
fase de sessões de terapia no ‘Café Belina’ do Shopping Iguatemi. Não havia
nada melhor para mudar o humor. Começava pelo apelido do lugar, Café Belina, em
homenagem àquela perua velha fabricada pela Ford, derivada do Corcel, aquele
garanhão sobre rodas. Para ter terapia bastava pedir um café, sentar na mesa
que dava de frente para quem subia pela escada rolante e se deliciar com os
tipos, ou zoológico, como queira, que iam um a um subindo, surgindo e se
mostrando ao mundo. Uma amiga muito divertida foi a criadora da terapia –
grátis, diga-se de passagem. Fazia parte controlar riso ou gargalhada para não
dar na cara e ofender. A diversão agora tem um gosto de ranço, principalmente no
Shopping Iguatemi, que hoje, nestes dias de Brasil rico e desvairado, tem um perfil
de casa de saúde mental suiça, com certeza a graça acabou. Antes acontecia de
tudo, o zoológico era completo, todos tipos, gêneros, formas. Hoje é coisa fabricada,
esnobação sem sentido, muito forçada, tipo BBB das ricas transmitida pela TV
Bandeirantes. Não dá vontade sequer de ser politicamente incorreto porque é
muito triste, sem graça, deprimente, verdadeiramente pobre, vulgar, medíocre.
Mais que déjà vu.
Aquela
mulher, que ao perceber seu erro enfiou o rabo entre as pernas e saiu de
mansinho sem mais dizer. No final das contas faz parte das vítimas de todo azar
de violências, das criminais às morais, que vivemos no nosso dia a dia. Neste
contexto a SUV passa ser a salvação. Chora menos quem pode mais, esta é a regra,
SUVs são imponentes no trânsito..., que delícia..., ver todos por cima...
Quando vieram as primeiras vans para o Brasil Sarah se apressou para tirar
carta profissional para pedir ao marido uma Besta, que ela considera até hoje “o
melhor ‘carro’ que já tive”. “Você faz o que quiser no trânsito e todo mundo te
respeita.”
Com
a bicicleta não tem esta história, muito pelo contrário. O número de mulheres que
usam a bicicleta no Brasil é baixo por uma série de razões, que vão desde a mesma
questão cultural que faz da SUV o tanque de guerra para algumas, até o fato de
até agora praticamente não haver dentro do mercado bicicleta própria para a
altura média da mulher brasileira. O correto seria que os modelos básicos
fossem tamanho 16 e não 19 fabricado, padrão para mulheres europeias.
Em
1982 pedalei muito com Cristina, uma menina alta, magra, muito bonita, e
determinada, muito determinada. O tamanho padrão de bicicleta lhe serve perfeitamente.
Na época o trânsito era infinitamente mais tranquilo, havia poucas mulheres
dirigindo, mas também não era difícil ouvir alguém mandando uma motorista “voltar
para casa e vai lavar roupa”. Cristina então sequer tinha idade para ter carta
e só pedalava. Foi dela que ouvi as primeiras histórias sobre carros diminuindo
a velocidade e passando a mão na bunda da ciclista. Acabei descobrindo que,
tristemente, o fato era muito mais comum que se podia imaginar e que várias
ciclistas acabavam no chão, machucadas. Isto em bairros de classe média. Mulher
bonita, com bela bunda, pedalando completamente sossegada só acompanhada de seu
homem.
A
posição da mulher na sociedade mudou muito. O manual da boa mulher que existiu,
com preceitos tão limitados e controladores, vai aos poucos ficando para trás.
Conforme a mulher foi ganhando espaço e poderes, foi também deixando de lavar
roupa para procurar sua identidade própria. O novo manual cria novas categorias:
patricinha, perua, melissa, e outros
adjetivos, alguns pouco elogiosos, mesmo assim muitas vezes incorporados pelas
próprias. Felizmente um personagem de novela resgatou a mulher trabalhadora,
sobrevivente, chefe de família, que faz jus a grande e brava maioria das
brasileiras.
Não
é um fenômeno particular da mulher experimentar e se encaixar em posições
sociais novas. Homens e toda população do Brasil passa pelo mesmo processo. É
outro Brasil, é outro mundo, outro planeta. Mas, mesmo sendo um país rico, a 6ª
economia do mundo, o número de mulheres pedalando continua baixo, mas crescendo
rapidamente - felizmente. Infelizmente a maioria destes processos se deu apoiado
numa precariedade trágica de cultura e educação, na de falta de exemplos, de
uma elite paupérrima em princípios. Continuamos sem uma bicicleta básica e popular
com perfil próprio para o perfil da mulher média brasileira. Quem sabe um dia a
dona da SUV possa encontrar com facilidade uma bicicleta que lhe permita pedalar
sem sujar sua chique roupa.