O Estado de São Paulo
São Paulo Reclama
Todo o jornalismo brasileiro, incluindo o do Estado de São Paulo, tem vícios sobre como investigar, ver e descrever a questão do trânsito de nossas cidades. É normal que assim seja porque no fundo somos todos iguais e jornalistas tem os mesmos vícios de qualquer outro cidadão que viva numa sociedade construída pelo e para o automóvel, principalmente o particular. Mas jornalistas estão ai para prestar um serviço à sociedade e ir mais fundo nos fatos na busca da verdade. Mas vício enraizado é muito difícil de ser percebido e vencido.
Mesmo depois de mais de uma década de intenso crescimento do uso da bicicleta como veículo de transporte, ou melhor, da bicicleta se tornar visível aos olhos de uma classe média encastelada em suas manias, o entendimento do fato em geral é simplista e não raro distorcido; o que se reflete nos textos dos jornalistas, que também fazem parte desta mesma “média”.
Renato Machado fez um bom trabalho como jornalista na matéria “Ciclofaixas e ciclovias ajudam a diminuir mortes de ciclistas”, mas acredito que ficou satisfeito com o ponto onde a história pareceu fazer sentido, um mal da imprensa brasileira cada dia mais pressionada por resultados e sobrevivência. A queda do números de ciclistas mortos nestes últimos anos decorre de uma serie de fatores, os quais estão em parte relacionados na matéria: aumento de ciclistas nas ruas, costume do motorista com esta novidade, ciclistas mais preparados, reflexos positivos tanto da experiência da classe média na Ciclofaixa de Domingo como nas ciclovias recentemente entregues, como aponta o batalhador da causa André Pasqualini.
A CET SP talvez seja no Brasil um dos pouquíssimos órgãos que tenha números sobre acidentes de trânsito, mas seus mais abnegados funcionários devem ter consciência que coleta de dados e pesquisa para valer em terra tupiniquim é desinteressante para pajés e caciques. A verdade dói. O que se tem nos melhores dados é uma visão parcial da situação. No caso das bicicletas não existe perícia técnica sobre o veículo. Indo um pouco mais longe: há perícia de qualidade para automóveis, motocicletas e outros veículos motorizados? Voltando às bicicletas: quem vive no meio sabe que boa parte dos ciclistas sofre acidentes por falha mecânica da própria bicicleta. Técnicos de concessionárias de rodovias falam a boca pequena que pelo menos 35% dos acidentes tem por causa a bicicleta. Há quem, também a boca pequena, diga que estes números devem ser muito maiores.
Números antigos da própria CET SP mostram que a maioria dos acidentes acontece em vias de trânsito pesado, ou seja, quando o ciclista está em contato com veículos grandes: ônibus, caminhões, vans. Ou seja, o pequeno porte do conjunto bicicleta - ciclista o torna quase invisível no trânsito. Dependendo da área, principalmente em periferia ou bairros mais pobres, e da necessidade de viagem realizada pelo ciclista, não há alternativa a não ser usar vias saturadas, muitas delas estreitas, algumas de trânsito rápido (e criminoso). Há ainda a estrada conurbada. Ciclistas pedalando nestes locais é muito mais comum que se possa imaginar. O ciclista trabalhador se vê perante a opção de ir e voltar do trabalho correndo certo risco ou pagar caro e ficar horas encalacrado em ônibus de baixa qualidade. Os riscos do pedal são mais interessantes. Por outro lado ciclista operário sempre foi invisível. De certa forma continua assim. É mais fácil enxergar os iguais.
Os mesmos números da CET SP mostram que a maioria dos acidentes acontece no lusco-fusco. Por lei, CTB, toda bicicleta deveria portar refletores na frente, atrás, nas rodas e pedais, o que raramente acontece porque a qualidade do produto brasileiro é ruim e muito frágil, logo cai e desaparece, portanto inútil. O ciclista é invisível porque está invisível de fato. A importância do refletor pode ser comprovada no resultado do simples e brilhante trabalho realizado por algumas concessionárias que adesivaram as bicicletas com restos de refletivos das placas de sinalização. O trabalho é bem conhecido entre técnicos. Mas quem acorda às 4h00m para bater ponto? Às 9h00 o ciclista operário está trabalhando.
O título da matéria pode se entender, mas é de entendimento perigoso, distorcido ou, para quem vive o assunto, cômodo. Provavelmente sem má fé. Deveria o autor da matéria ter procurado saber “o que mais?”. Num bom linguajar deixa sensação de ter se limitado ao que todos acham: ciclovia e ciclofaixa é sinônimo de segurança, a esperança de qualquer ciclista. Será mesmo?
O que corre nos bastidores, mesmo entre os defensores e usuários de ciclovias e ciclofaixas, é que tem havido acidentes com bem mais freqüência que o se poderia esperar. Diz que diz? Poucos sabem e menos ainda são os que querem aceitar que ciclovias não são completamente seguras e que nelas há acidentes, graves inclusive. Tivesse o jornalista ido atrás descobriria o que realmente acontece na ciclovia do Parque Ibirapuera, ou de qualquer outro parque. No PA do HC teria outras notícias. Não é difícil ter relatos sobre a aderência da Ciclovia do Rio Pinheiros. Ou no custo e da inutilidade da Ciclovia Radial Leste. Ou ciclovias existentes abandonadas. O número de ciclistas que por causa da Ciclo Faixa de Domingo acredita que o correto é pedalar a esquerda de avenidas. Ou saberia sobre as histórias dos bandeirinhas e marronzinhos. Houvesse ido fundo provavelmente não teria colocado o título “Ciclofaixas e ciclovias ajudam a diminuir mortes de ciclistas”, uma frase a beira do leviano para a realidade paulistana.
São Paulo é uma das cidades mais ricas do planeta, mesmo assim vem vivenciando há muito números de guerra no trânsito. A postura de toda imprensa sobre o assunto, nesta e outras paragens brasilianas, é minimamente simplista. Vide o que está publicado sobre o drama de motoboys ou sobre o genocídio de pedestres. Na maioria dos textos recai nos próprios a culpa pelo acidente. Não se coloca nunca a responsabilidade legal das autoridades estabelecida pelo CTB, não se faz uma avaliação mais profunda das reais causas, sobre falha técnica, má fé urbanística e outros fatores. Sempre o mesmo discurso da mesma panela. A matéria se repete e os mortos com ela.
No Brasil caótico que vivemos só nos resta a imprensa como luz. Se mesmo ela se curva ao trivial.....
Excelente análise, e como jornalista/ciclista e acidentada, concordo plenamente com seu ponto de vista ao dar os esclarecimentos todos que se fazem necessários à imprensa e aos próprios ciclistas inclusive!
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