Caminhada
O primeiro passo foi num dia de chuva quando todos os semáforos enlouqueceram. Incomum para a época, lá por volta de 1974. O vidro do carro embaçou. A paciência se acabou. O motorista olhou para os lados, pensou, desceu do carro e pediu para o motorista da frente mover só um pouquinho para frente. Voltou ao carro, manobrou, fez uma meia volta, entrou numa transversal logo ali, parou e pegou um guarda-chuva; trancou o carro e seguiu a viagem para casa a pé. Chegou e ainda não havia ninguém em casa. Deviam estar todos entalados em algum semáforo. Tomou um tranqüilo banho e foi ver as notícias. Andar a pé sempre o agradara, mas era coisa do passado. Ser impedido de seguir em frente, por qualquer razão, sempre o irritara profundamente. A experiência daquela noite fora coisa boba, mas fez com que seus pensamentos deixassem passar sem entender sobre o que as notícias diziam. Vinte minutos a pé era muito mais eficiente e prazeroso que 10 minutos parado num carro, por pior que fosse a chuva e melhor que fosse o carro e seu som.
Na manha seguinte teve que acordar mais cedo para ir pegar o carro. Saiu à rua e esticou o braço para pegar um taxi. Entrou, deu bom dia, disse para onde ia e seguiram em frente. Pela janela via por onde havia caminhado na chuva e lembrou a sensação de sentir o prazer de estar vivo, de ver sem impedimentos e com calma a paisagem. Na rapidez do taxi olhou para trás onde havia descoberto uma casa sobre uma grande seringueira. Nunca a havia visto de dentro do carro. Um pouco mais à frente lembrou que as gotas do final da chuva reforçam mais ainda o cheiro da dama da noite. O vento de seu carro talvez tenha aberto um vácuo ali porque ele, motorista, nunca se dera conta daquela delícia exalada pelas pequenas e brancas flores. E assim chegou ao seu carro, distraído nas lembranças do molhado caminhar de ontem.
Saiu do taxi e olhou em volta. Dinheiro mal gasto. Poderia ter acordado um pouquinho mais cedo e chegado ali caminhando. A quanto tempo não caminhava pela manha? O ar nesta hora é agradável, leve, mais fresco. Entrou no seu carro e seguiu para o trabalho. Uma sensação estranha tomou seu corpo. Abriu todas as janelas, mas a sensação não passou.
No dia seguinte desceu logo pela manha para a garagem. O português dos pães estava lá, com sua bicicleta cargueira e sua imensa cesta de vime cheia de ótimos pães. Como sempre roubou um pão doce com creme, recém saído do forno e ainda meio quente. Deliciosa gula pura. Enquanto o português embalava os pedidos - dois sovados aqui, quatro para este, meia dúzia neste saco, o pãozinho de dona Neide - os dois conversaram. Aquela bicicleta era preta, praticamente fosca de uso e velha, aros e outros metais já escuros, mas magicamente maravilhosa.
“Não pedalo faz muito tempo”
O português sorriu. “Pois deverias. Não sabes o que estás perdendo”. Tirou os olhos de seus pães, percebeu o olhar fixo na bicicleta de seu velho amigo e cliente, deixou os embrulhos com os pães no capo de um carro, soltou as duas alças de borracha que prendiam a cesta de vime, colocou-a no chão, e apontou para a bicicleta. “Dá uma volta aqui na garagem. Experimenta. Creio que vais gostar”. Convite irrecusável. Meio constrangido foi, primeiras pedaladas um pouco inseguro, e logo sentindo-se novamente aquela criança ciclista que nunca lhe havia abandonado a alma. O português, rindo da situação, teve que fazê-lo parar. “Desce daí, menino, e vai trabalhar”. A situação se repetiu mais algumas vezes, até o dia que o português chegou e seu amigo estava com a própria bicicleta, pedalando entre carros, no corredor do elevador, subindo e descendo a rampa da garagem. O português encostou sua bicicleta, iniciou o trabalho dos pacotes, e percebendo o adiantado da hora falou um pouco mais alto.
“Vai trabalhar, menino”
“De bicicleta?”
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Giro para casa
As duas estavam estacionadas lado a lado, a Honda 750 e uma Caloi 10 azul claro metálica. Era início de noite no Centro da cidade, já um pouco passada a hora de voltar para casa. Dois jovens homens descem do elevador e caminham juntos por entre os carros estacionados. Estão vestidos formalmente, o motociclista em um discreto terno; o ciclista um pouco mais a vontade, sem blaizer ou gravata, mas de calça e camisa social em tons claros, mocassim e cinto impecavelmente novos e lustrados. Pararam ao lado de seus veículos, cumprimentaram-se cordialmente, com o motociclista estranhando seu visinho. Destravaram as trancas. O ciclista prende a barra da calça e dá um “boa noite” e sai. Um pouco antes do final da rampa do estacionamento pode ouvir o ronco forte do motor da moto sendo ligado. Cruza a rua, entra no calçadão e some no que resta de multidão.
O ciclista está com pressa. Tem que chegar a casa, tomar um banho e sair. Vai pedalando mais rápido que o costume. Sobe para a Paulista e quanto mais sente o prazer do esforço, mais encharca o corpo de suor e maltrata sua roupa de trabalho. Da Paulista para casa, só descida, e ele aumenta mais ainda o ritmo, já competindo consigo com uma criança que brinca sozinha no pátio. Entra na reta final e relaxa um pouco, feliz, com a sensação de vitória, de liberdade. E na volta à realidade e no silêncio daquela rua ouve vindo rápido um forte ronco de moto, que cresce e passa. Passa e um pouco a frente freia, diminui a velocidade, emparelha, o motocilista levanta a viseira do capacete, e só então o ciclista se dá conta que é o mesmo do estacionamento. Motociclista incrédulo pergunta: “Você não saiu do estacionamento do Centro junto comigo? Como pode chegar aqui na minha frente?” E os dois seguem com o ciclista dando algumas explicações risíveis e com uma pitada de ironia. Isto foi em 1978 quando ainda não havia trânsito.
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Coisas da vida
Quando levanta os olhos do livro percebe que quase se esgotou o tempo para entregar os documentos que o pai e patrão lhe havia pedido. Coisa simples. Ir até lá, parar o carro na garagem da empresa, subir até a sala do presidente, pegar sua assinatura e pronto. Haveria uma vaga na garagem a disposição. Mas de carro não é mais possível, não dá para chegar. Veste o paletó, ajeita a gravata, pega os papeis, desce correndo pelas escadas, pega a bicicleta, prende a barra da calça, e sai rapidamente pelas ruas. É logo ali. Chega sem muito suor. Na porta da garagem está o manobrista e responsável.
“Boa tarde. Vim pegar a assinatura do presidente. Há uma vaga para mim. O senhor deve estar avisado”
“Boa tarde. Sim, eles me avisaram. Mas a vaga para é para um carro. De bicicleta não posso deixar o senhor entrar; só de carro”, respondeu do alto de sua autoridade. E nela permaneceu até que a portaria chamou o presidente da empresa, que desceu e assinou os papeis na rua. E mesmo com seu chefe máximo a frente o manobrista continuou afirmando: “Doutor, de carro a vaga é dele, como o senhor mandou. Mas de bicicleta... como é que fica doutor? Como posso permitir uma bicicleta na garagem” (1979)
Prezado Arturo,
ResponderExcluirQue textos bacanas... Este "Giro para casa" e o "Caminhada/Ir ao trabalho de bicicleta" são fantásticos. Gostei muito do Blog.
Meu nome é Airton, tenho 47 anos, sou de Horizontina/RS e estou, há um ano em Indaiatuba/SP, porém trabalhando no Distrito industrial de Campinas.
Estou à 1.200 km da minha cidade de origem. Tenho pedalado muito pela região. Está fácil. A região é bastante plana, o contrário da região de onde vim. Parabéns pelo blog.