quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A porta giratória no país dos bananas

O barulho é muito parecido com o de uma pedra que passa perto da orelha, mas a velocidade de aproximação e passagem foi surpreendente. Faz um “sszzZZUump!” e deixa um leve sopro. Demorei para entender que aquele homem que corria em minha direção tinha na mão uma arma automática das grandes e que havia disparado contra minha cabeça. Atrás dele vinha o segurança de uma agência Bamerindus com arma em punho. Matar para pegar uma bicicleta para fugir é ou não um pouco exagerado?
Parei a bicicleta na porta do Itaú da esquina da rua Augusta com Lorena, um dos pontos mais chiques e movimentados de São Paulo. Tranquei a bicicleta, fui para a porta giratória e os seguranças, que me olhavam de bicicleta desde o outro lado da rua, travaram a porta. “Por favor tire celular, chaves, moedas....” Votei para trás, tirei tudo o que tinha de metálico e tudo mais e voltei para a porta, girei a porta que de novo foi travada. Voltei novamente para trás e procurei o que faltava nos bolsos. Nada. Nova tentativa na porta e de novo a mesma coisa. Tirei a camisa, girei o corpo, levantei a bainha da calça e mostrei que não tinha nada no corpo. Porta travada. “O sistema de segurança diz que o senhor está carregando algo...” Tirei completamente a roupa, chacoalhei tudo e a porta se destravou. Talvez tenha sido a bicicleta porque na época não era coisa comum, mas vai saber...
Há uns dias transformaram a habitual agência Unibanco da av. Vital Brasil em Itaú e os seguranças de sempre deram as boas vindas travando a porta. Infelizmente não tenho dados sobre assaltos em bancos, mas duvido que uma porta giratória faça diferença sensata. O que estas portas dizem para todo cliente é que o banco Itaú considera que todo e qualquer cidadão que queira entrar em suas dependências é uma ameaça potencial. Pode-se fazer a leitura desta situação por outro ângulo: o maior banco do país age assim porque seus clientes aprovam. Cada um de nós aceita ser tratado como possível criminoso em nome da própria segurança. Não é genial?
Não precisa ser nem um pouco esperto para sacar que a forma que trabalhamos a questão da segurança literalmente não funciona. Até um imbecil percebe que a coisa está cada dia mais quente, mas são poucos os cidadãos que querem discutir a coisas com seriedade e conhecimento de causa. Acreditar em besteira é o maior perigo e parece que estamos na besteira há algumas décadas e centenas de milhares de mortos, incapacitados, violentados e outros adjetivos mais. Ou serão substantivos?
Bala perdida? O que está perdida é toda a sociedade brasileira. Toda bala tem remetente e endereço certo. Há alguns anos os mais histéricos achavam ofensivo usar a expressão “república de banana” para criticar a situação de então. Imagine só, bons tempos aqueles a coisa tinha outros tons. Era uma baderna colorida, muito menos ofensiva e perigosa que esta de hoje. Pelo menos não tínhamos uma guerra civil correndo solta. Oficialmente é algo em torno de 45 mil mortes violentas / ano, número que poucos países ou regiões do mundo conseguem superar, incluindo ai a guerra do Iraque. Iraque aqui é de araque. Este número é oficial, portanto tem uma distorção porque só conta os que morrem no local e não conta quem morre depois no hospital, além de não incluir mortes no trânsito, que são mais 35 oficiais.
Pequeno delito plantado hoje será a erva daninha de amanha. Estamos colhendo as omissões e mentiras do passado, crenças medíocres, bobagens, asneiras, burrices.
Especialistas sobre segurança pública afirmam que ou há segurança para todos ou não há para ninguém. Aquela porta de segurança e outras coisinhas mágicas só servem para melhorar o bolso de uma minoria que ludibria quem quer ser ludibriado. Com todos estes sistemas juntos a coisa só piora para todos. Acreditar na carochinha é tão bom, não é? O sonho de uma mãe (real) de classe média é ganhar na mega sena para poder ter três carros importados: um para ela e o filho passearem e dois para os seguranças. Ela reflete o que uma imensa parcela da população pensa: “eu quero a minha segurança, o resto que se dane”.
Que país é este onde um homem chamado Tim Lopes, essencial jornalista para todos e cada um de nós, é colocado num “micro ondas” e torrado vivo? Ler a notícia hoje - http://www.timlopes.com.br/casotimlopesmobilizatodoopais.htm - e saber que absolutamente nada aconteceu provavelmente não faz nenhuma diferença. E João Hélio - http://oglobo.globo.com/rio/mat/2008/01/25/morte_do_menino_joao_helio_chocou_pais-328201790.asp, que diferença fez? Devo eu continuar? Quantos? Que diferença faz? A passeata pela paz promovida depois de João Hélio ter sido arrastado por 6 km por ruas de bairros levou ás ruas um punhado de pessoas e morreu ali. Como alguém tem coragem de resmungar perante as câmeras das TVs que a violência está descontrolada e que não pode viver mais assim? Aliás, para que derramar lágrimas momentâneas de pavor? Guarde suas lágrimas para algo mais interessante porque estas ironicamente parecem de crocodilo. Ou aja! Deixe ser banana.
Em Amsterdã são roubadas 150 mil bicicletas a cada ano. Sim, é isto mesmo. Mas não se assuste, eu escrevi “são roubadas” e não assaltadas, houve latrocínio ou outra expressão jurídica criminal sangrenta qualquer tão trivial por estas nossas paragens. Amsterdã é perigosa? Definitivamente não! O que não se pode é dar bobeira com a bicicleta. Igual em Nova Iorque, Paris, Londres, Barcelona e tantas outras maravilhosas capitais. A diferença aqui é que vêm quatro garotos e não se satisfazem em assaltar duas ciclistas e seu acompanhante. Fazem questão de espancá-los com brutalidade até deixá-los quase desacordados. Orgulham-se de sair do local com calma, conversando tranquilamente, certos de que o dever foi cumprido.
No Brasil não é permitido denunciar, cagüetar ou dedurar, como faz questão de dizer esta gente de boa fé que se diz muito preocupada com o social. Telhado de vidro é triste. Nossa desorientação é tamanha que não sabemos mais buscar o caminho da lei, do legal, do honesto, e principalmente do funcional para todos e para si próprio. Só dá resultado se é para todos e isto é social. Quem tem medo de denunciar o outro é porque tem rabo preso ou é covarde. Vale aqui fazer uma referência ao artigo de Dora Kramer no Estadão de sábado, 24 de Outubro. Leiam.
Se um motorista de ônibus erra, todos motoristas de ônibus sempre erram, todos serão sempre culpados, todos são criminosos, e as latarias de seus veículos, também veículos de trabalho, terão de ser chutadas. Mas que nos importa se um de nossos iguais age assim? Ele é um dos nossos iguais, portanto merece mercê. O fio da meada começa no trânsito e termina na nossa vergonha nacional de cada dia ou ao contrário. Começa ou termina na nossa pele. Depende se você ajuda a comprar a bala ou se tomou um tiro.
O cidadão que fica travado na porta de vidro do grande banco não pode ficar furioso com os funcionários, nem com os diretores. Ele tem que é que chegar em casa e olhar-se no espelho.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

De mão trocada


Por causa de um corte profundo em minha mão direita tive que ficar com ela imobilizada por uns 10 dias. A única solução foi começar a realizar com a canhota operações banais do dia a dia destro, como passar manteiga no pão, escovar os dentes, fazer a barba sem arrancar pedaços, acertar a chave na fechadura e girá-la, escrever, todas estas coisas bestas que simplesmente realizamos. Sem outra saída me coloquei a treinar para ser temporariamente canhoto. “É mole”. Definitivamente não. Trocou a mão dançou!
Só por brincadeira tente escrever seu próprio nome com mão trocada. Para a imensa maioria não sai nada além de garranchos ininteligíveis. Num grande almoço de família o pessoal começou com esta brincadeira competindo para ver quem escrevia um texto simples. Rimos muito de nossa própria incapacidade. Os que conseguiram deixar seu recado relativamente legível e alinhado se fizeram de reis. Fineza na coordenação motora é historicamente mérito social.
Para mim a experiência acabou se transformando em bem mais que uma brincadeira ou necessidade passageira. Começou como um simples ato de superação; tornou-se uma redescoberta, de revisão de quem fui e sou, uma viajem mágica na memória de minha própria infância que não imaginava mais poder fazer. Sou destro, mas sempre me entendi bem com os canhotos. Gosto de gente diferenciada, dos especiais. Canhoto é deferente não só pelo fato do fazer canhoto, mas porque cedo percebem que nasceram diferente, o que os induz a pensar e agir um pouco diferente, a buscar resultado no diferencial. o que os torna não mediano. A maioria dos que conheci tornou-se, de alguma forma, eficiente perante a vida.
Escrever ao contrário! Não deixa de ser isto porque o que você vai escrevendo acaba sendo escondido pela própria mão. Difícil! Que Até que minha letra saísse legível foi um bom tempo, esforço, paciência, dor na musculatura da mão, braço e principalmente ombro. Descobre-se muito sobre o próprio corpo. Parece ridículo, mas qualquer mudança na posição no funcionamento normal do corpo a coisa pode ficar bem complicada, até impossível. Pelo menos enquanto não se reaprende. É preciso muito treinamento para que haja fluidez do lápis ou caneta. É preciso acamar para não tratar a coisa na porrada, na força bruta. Não é como com a direita que em praticamente qualquer local, situação, ângulo ou superfície a coordenação motora é a mesma. Só um lado do corpo sabe trabalhar. O outro serve meio que de apoio, quando tanto.
Depois de uns dias de puros garranchos comecei a conseguir ter uma mão mais leve, e assim caprichar nas curvas, nas voltinhas, nos espaços, alinhamento. Acabei me sentindo como se houvesse voltado ao jardim da infância. Fui remetido para minha primeira chegada no jardim de infância, a sala de aula, o alfabeto com letras e figurinhas correspondentes às letras que ficava pendurada na parede, o giz branco na lousa verde escura com o “b - a, ba”, as primeiras aulas de caligrafia, a mão da professora segurando levemente a minha para ajudar nas formas, a minha inveja que sentia dos meninos e meninas que já tinham letra caprichadinha, que mereciam da professora “Muito bem! nota 100.” Um ano depois foi com grande emoção quando ganhei minha primeira caneta tinteiro, logicamente acompanhado de um tinteiro e uma aula sobre como carregar a caneta com a tinta sem borrar tudo em volta. E, não poderia faltar, um lindo mata borrão, coisa que vocês mais novos não fazem idéia do que seja e vou deixá-los na curiosidade. Posso dizer que funcionava maravilhosamente. Lembrei até de Madame Germain, a professora de francês que, anos mais trade, já no primeiro primário, ainda ensinava usando palmatória com uma régua de madeira. Quem errasse a pronúncia tinha que esticar a mão aberta para frente e tomava uma reguada dada com força, seguida da famosa bronca “Atencion!!”. A velhinha era apavorante - para a época. Mesmo depois de muitas notas baixas para caligrafia infelizmente minha letra continuou feia e seguiu até eu cortar fundo a mão. Santo corte!
É muito difícil controlar a mão, os movimentos, aprimorar as pernas do “p”, “q”, “b”. “g” é muito mais fácil porque é aberto. Fazer um “i” bem feito é complicado. Puxar a vogal depois de um “v” como em “polvo”, “válvula” e outros é um trabalho delicado, daqueles que, quando criança, colocamos a língua para fora e fazemos careta. O pior talvez seja “m” e “n” com as corcovas arredondadas e suas perninhas, não muito diferente de um “u” é coisa que só vem com o tempo. O “w” nem te conto. Gostaria muito de ter contado com uma professorinha, um caderno de caligrafia daqueles de três linhas, de ter recebido nota pela lição. Já venho a tempo querendo voltar a estudar e esta história só me deu mais coceira.
Depois de muito treino minha letra, mesmo sem perfeição, leveza e fluidez de movimentos, já tinha um forma relativamente bem definida, agradável, já exibia um compasso alinhado e uma lenta fluidez. Mais importante que isto: minha canhota se tornara mais legível que aquela letra que estragou tantos cadernos e papeis. Tenho ainda um longo caminho a percorrer e talvez nunca chegue a ter “letra de colégio de freira”, como dizíamos “no tempo da onça” sobre quem tem uma letra que se lê como se houve uma boa e suave música clássica. Escrever letras, palavras, frases, textos indubitável e maravilhosamente legíveis e agradáveis. Maravilha! Minha inveja da letra de colégio de freira não irá morrer e ser enterrada, mas sem sobra de dúvida agora ficará calminha num canto que não mais me incomodará.
Talvez uma das coisas que mais me tenham envergonhado na vida foi minha própria letra. Sempre foi indisciplinada, disforme, e não raro pouco legível. Eu até que me esforcei, de maneira errada e por praticamente toda a vida, para fazer daqueles garranchos algo artístico, alegre, simpático, agradável aos olhos, mas não houve jeito. O que nasceu para disforme sem boa forma e desagradável viverá. “Aquilo” jamais se tornaria algo agradável, legível, e jamais teria valor como desenho propriamente dito. Coisa ruim, proposta errada, de uma pretensão estúpida, grosseira. Ninguém se comunica com pretensão e sem respeitar boas regras. Comunicar-se bem depende de ter qualidade em seus gestos e ações. Uma boa letra, escrita de forma cuidadosa é meio caminho andado. O que será escrito é outro problema, depende somente da inteligência.
O bacana deste processo é que minha mão direita assimilou o aprendizado canhoto. Minha letra destra hoje me é agradável, o que me dá um imenso prazer. Gosto de pegar uma caneta e desenhar cuidadosamente cada letra, cada espaço, cada pingo nos “is”. O caderno no qual este texto foi escrito originalmente data de 1960 e até hoje nunca se acabou. É uma ótima medida da vergonha que sentia. Tem umas poucas páginas escritas com a velha e horrível letra. Agora voltou a me acompanhar e quando me dou conta estou desenhando textos.
Perdi a conta de quantas vezes quebrei ou lesei um músculo ou articulação. Agradeço a santa paciência de minha mãe e tias. E agradeço também a estas imobilizações a descoberta do lado esquerdo do meu próprio corpo. A primeira tentativa, relativamente bem sucedida, foi no futebol. Comecei a conseguir fazer alguns passes corretos, muito desengonçados, tristes de se ver, ótimo para os amigos rirem, mas bem funcionais. Quando me separei minha mãe me recomendou que fosse fazer dança. Até hoje sinto pena de Monica, santa professora. Foi ai que descobri o quanto minha coordenação motora era mal trabalhada. Dança-se na frente do espelho e ai não há como escapar de ver o quão travados somos, quão pouco nos conhecemos, nos usamos, nos aproveitamos. Trabalhar o corpo é encontrar a liberdade. Primeiro com a leitura, mais tarde com o mountain bike e com o contato com técnicos e ciclistas pró, confirmei que o caminho para uma pilotagem ou mesmo condução de uma bicicleta no trânsito passam pelo caminho estreito de disciplinar a coordenação motora. Desde a escolinha de pilotagem de kart do Waltinho Travaglini, que fiz aos 18 anos, a questão da disciplina me foi regra. Relaxar o corpo, diminuir a ansiedade, perceber e aprimorar cada um de seus movimentos, concentrar-se, e obter resultados. Procurar orientação, ouvir, avaliar, praticar, automatizar. Neste fim de semana, antes do GP Brasil, o Rubinho respondeu a um jornalista sobre “sorte”: “Algum piloto, ou o Jim Clark ou Jack Stuart, não sei bem, respondeu “que quando mais eu trabalho, mais sorte eu tenho”. Pedalar com segurança não é sorte, é trabalho. Reescreva seu pedal.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Zumbi e o cometa


Zumbi está sendo acariciado e dormindo como um anjo. É um pequeno poodle anão preto de uma beleza rara para a raça. Esguio, pernas compridas, tórax grande e pouca cintura, pescoço harmonioso; um corpo equilibrado. Inteligente, dócil e carinhoso, mas senhor de seu pedaço, e por isto tido como genioso. Seu pelo encaracolado é muito macio e dá um grande prazer ao passar suavemente meus dedos. Acariciado dorme mole como um filhote, como para cativar quem o aconchega. Mesmo com a TV ligada sempre olho para aquele lindo animal de corpo quente espichado junto a minha perna direita. Olho com o olhar de um pai e realmente me sinto como tal.
Na TV passa um documentário que aventa sobre qual seria hoje os efeitos de um possível impacto de um corpo celeste na Terra. Me fez lembrar de trechos do “Day after”, no qual a população é forçada a sair correndo de Nova Iorque para sobreviver ao impacto. A população desesperada engasgada no congestionamento da estrada vê pasma o cometa cruzando sobre suas cabeças em direção a cidade que nunca havia parado. Lembro claramente da cena, mas não consigo lembrar de alguém tentando salvar seu animal de estimação. Minha cabeça viaja sem barreiras sobre quem somos. Ambientalmente irresponsáveis. Sequer temos integridade moral, ponto de equilíbrio tão humano, com estes indefesos bichos que vivem em nossas casas e que tanto nos retornam em nossas necessidades humanas. Enquanto nos prestam serviços caseiros, como os escravos de outrora, valem. Uma grande quantidade deles é jogada nas estradas por seus donos quando estes vão para suas férias porque o preço para ter um animal de estimação num hotel é caro ou pode atrapalhar o merecido descanso, tão humanamente necessário.
Numa das vezes que fui levar alguém no aeroporto cruzou rápido na frente do carro um pincher desesperado. Cruzou todas 5 as faixas da marginal e chegou por milagre na barreira de concreto. Olhei pelo espelho e ele seguia correndo colado ao muro; desesperado com aquela loucura de carros em alta velocidade. Quase bati o carro. Quanto terá durado? Será meus Zumbi e seu parceiro Billy, deitado um pouco a frente dos meus pés, conseguiriam num golpe de sorte simplesmente cruzar uma tranqüila rua sem virar um monte de carne esmagada no asfalto? Conseguiriam achar um bom local para se abrigar? Como se arranjariam na luta pela comida? São pequenos, completamente dependentes e por isto frágeis, absolutamente frágeis.
Há um nível de saturação emocional que não conseguimos transpassar. Levamos a vida no que nos é suportável e nossas mentiras já não são mais biológicas. Não são blefes de sobrevivência, mas masturbações de vaidade e status. O humano é cancerígeno para a vida. Não é necessária a colisão de um corpo celeste para uma extinção em massa. Nós damos conta do recado. Provavelmente deixaríamos para trás tudo em nome da auto-preservação. A incrível capacidade de adaptação humana seria seu carrasco porque já o é. Se um dia nos dermos conta do nosso nível de barbárie atual provavelmente xingaremos os desafetos chamando-os de “humanos!”. “Humano! Que nojo!”
Aquela doce delicadeza adormecida ao meu lado que acaricio gera grande responsabilidade. Meus dedos passam lenta e levemente pela ternura dos pelos e sinto uma completa impotência sobre a minha responsabilidade com aquela frágil inocência. Zumbi é o reflexo do lhe ensinei, dos meus vícios que fiz com que ele também vivesse e dos quais ele é completamente dependente. Sou frágil, ele é frágil. Sou humano, ele é um animal doméstico, escravo de minha humanidade.
Sigo acariciando Zumbi. Meu olhar está focado, marejado, praticamente não vê nada perdido dentro de minha consciência. Sinto desprezo pelo que sou. Como seria uma fuga em massa? O que eu deveria fazer com estes dois pequenos cachorros? Como fazê-los sobreviver? Provavelmente os meus netos teriam ajuda de alguém, mas e eles, e todos os outros, cães, gatos, pássaros, hamsters...? Sinto uma dor tremenda de vergonha, desespero, impotência, inoperância. O que estamos fazendo com tudo em volta? Seguro Zumbi com cuidado e o trago até minha fase. Ele está mole e não reclama. Sinto seu cheiro. Há um leve toque do fedor dos canos de escapamento. Os pequenos são os que mais sofrem com o veneno que veículos motorizados soltam no ar. Meu neto chega em casa com o mesmo fedor. Procurar sair nos momentos de pouco movimento ou ir para onde o número de carros é menor já não faz mais efeito. Eles não precisem de um meteorito, basta passear na rua. Eles tem que fazer pipi e coco, cheirar outros cachorros, esticar as perninhas nervosas. Com coleira e no passo do dono.
Não tenho estomago para ouvir, pensar ou falar sobre nossa humanidade e seus efeitos contra a vida animal. O dia que mostraram um filme sobre a forma como matam gado para corte meu emocional entrou em colapso. Nunca mais consegui trabalhar com protecionismo. A luta pela proibição de pesca às baleias foi meu último e glorioso ato em nome da proteção da vida animal. Pensei lá com meus botões: “O que dá para fazer para trabalhar de outra forma, com um outro foco que não cause um estrago emocional tão brutal”. Surgiu a bicicleta.
Da ecologia para o meio ambiente.
Na Ponte Cidade Jardim o ciclista estava estendido no asfalto. Acabara de acontecer, só havia um homem em pé protegendo-o. Deitei a bicicleta no asfalto e me aproximei daquele rosto que olhava imóvel para o céu. Havia pouco sangue, mas o corpo estava completamente retorcido. Lentamente coloquei a mão em seu pescoço para ver a pulsação e não havia mais coração, nem respiração, mas ainda pude sentir a última vibração da energia da vida daquele homem. Uma espécie de pequena eletricidade entrou pela ponta de meus dedos, correu meu corpo e se foi. É uma sensação brutal. A vida ali acabou, ele partiu. Seu olho ficou opaco. Fiquei olhando sereno para ele e por muito tempo não me lembro de ter ouvido ou percebido a passagem de qualquer carro, ônibus ou moto por perto. Foi um silêncio completo, quieto, vácuo, sem mais. Olhei para frente e vi a ponte, o morro do outro lado do rio, o céu de final de tarde plenamente azul. Havia alguém atrás de mim, talvez o mesmo que guardava o corpo, não me lembro quem, mas sei que me levantei e disse calmamente “morreu”. Estranha a vida, mas bela por eu estar vivo. Subi na minha bicicleta e segui pedalando. Conversei com calma com meu médico e sei que senti a morte na ponta dos dedos. À noite deitei na cama e dormi. Humanos são humanos, vida é vida.

domingo, 11 de outubro de 2009

São Paulo, cidade ruim

Tenho grande dificuldade para compreender por que o paulistano não consegue transferir os ótimos exemplos aplicados para sua cidade. As classes mais altas viajam para fora e parece que não aprendem nada. O poder público tem o exemplo de Curitiba, referência internacional de qualidade urbana, que parece não existir ou ser de outro planeta. Há uma boa parcela da população que freqüenta o SESC, que é primoroso, o melhor exemplo possível, e que não é replicado. Eu gostaria muito de saber por que temos que conviver com uma cidade tão mal acabada, tão mal tratada, tão mal conservada, tão pouco respeitada, se a população tem excelentes referências? A frase “o que é comum não é de ninguém” vale mais que nunca. É desonesto culpar só um dos setores da sociedade. A cidade é de todos e o que se faz por ela é patético, se não deprimente.

Texto enviado para São Paulo Reclama

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Tara



Andava há tempos atrás de uma delas, uma necessidade, espécie de obsessão, se assim quiser entender. Fizera inúmeras cantadas, todas sem resultado. Numa delas quase perdi as estribeiras, mas parece que a dona morrerá agarrada a sua menina. Não lhe interessou eu afirmar que há duas décadas ela lá estava, empoeirada, encostada, e porque não dizer - desprezada. “Vai acabar virando tia” ainda brinquei e mais sério afirmei “Não sou tão mau assim, tão desprezível. Deixa comigo, vou tratar bem!”. Foi-se minha paciência e já não mais me interessa. Que bom uso faça a poeira e a ferrugem que do tempo há de vir, e também há de tomar a alma de sua dona. Vaidade, “recuerdos”, o que? Vai lá saber. Somos todos assim. Paciência. Caso encerrado. De volta para casa, só, desamparado.
Algumas beldades giram por ai e vez ou outra passam por perto, como para provocar e não se entregar. Estão com outros e seguem seus caminhos. Mal sabem elas como eu as trato delicadamente. Cheguei a ficar com raiva de um amigo quando depois de uma bobeira ela foi cair nos braços e pernas de outro e eu, de livre e espontânea vontade, fui devolver sua beldade em casa, limpa, cheirosa, deliciosa. Confesso antes também que dei umas voltinhas com ela, mas como a vida sempre faz com quem é muito sedento ela não é minha e ponto final.
Quando menos imaginamos acontece. Entro no parque correndo a pé e lá está uma gostosa, no meio de uns garotos. Linda, magricela, formas equilibradas, delicada, clássica, sóbria, pronta para ser socada por quem sabe como se deve fazer as coisas. Encostadas junto a ela no bebedouro estão duas vulgares, destas pagou levou que se encontra em qualquer ponto da cidade, basta ter um cartão de crédito ou dinheiro vivo. Passo correndo por ela deixando sem constrangimentos ou preocupação meu olhar indecente. Os garotos olham desconfiados. “É melhor continuar correndo”. Um pouco adiante entro no banheiro antes de seguir meus passos de tartaruga na corrida. Para ser bom é preciso estar em forma. E lá está um garoto, também vestido com roupas de ciclismo e aparentemente parte do grupo que guarda as meninas lá fora. “Provavelmente deve estar com uma das vulgares” penso, e puxo conversa.
- Que linda aquela menina que está encostada no bebedouro? Quem está com ela? O grandão?
- Não, ela é minha; diz ele sem o menor problema ou estranheza sobre a pergunta. Eu acho estranho porque a menina é muito alta para o moleque. Ele deve ficar pendurado nela. E comecei a pensar com meus botões que aquela situação tinha muitas variáveis estranhas e até não positivas para simplesmente dar certo. Mas como controlar esta ansiedade que me come, corrompe a alma e o bolso. Pervertido?
- Está a venda, continuou o garoto e a frase me deu um frio na espinha.
Meu Deus, eu que não costumo Citá-lo em vão e por coisas menores, peço ajuda. E ai, que faço? Do outro lado da linha, o Dele, silêncio completo. Porque Ele responderia a pequenas e idiotas questões de uma vida tão vulgar e apaixonada. Tirando minhas culpas e pensando bem, Ele provavelmente também deve gostar de lá suas voltinhas. Afinal, que bom homem não gosta delas? Com certeza deve estar dando bons olhos para esta história. Fiquei mais calmo e segui em frente. Afinal a vida é feita de prazeres. E o paraíso como fica? Em frente!
- Quanto? E a resposta dele com o preço veio rápida e certeira, assim como meu sim, que já estava preparado na garganta há muito. Não negociei, não tentei racionalizar, mais uma vez na vida fui movido pela pura paixão. Como diz o filósofo que sei lá quem era, provavelmente Vinícius de Moraes: “Sem tensão não há solução”. E então veio pela Internet a voz do Senhor e escreveu sem contornos “Vinícius foi uma boa tentativa, meu filho, mas na próxima vez seja um pouco mais letrado. Foi Roberto Freire, meu filho, Roberto Freire!”
Acertamos que eu pagaria imediatamente, uma boa e irresponsável quantidade de dinheiro por uma beleza que sequer eu havia olhado com mais calma, em quem não havia tocado, escorregado os dedos carinhosamente sobre sua superfície fina e lisa, com quem não havia saído para uma voltinha, não tinha ficado um segundo sequer. Nada. Puro impulso. Paixão a primeira vista, ímpeto doentio da emoção. “Idiota, descontrolado” culpei-me olhando os Céus.
Só depois de menos de uma hora, quando ela passou definitivamente para minhas mãos é que pude avaliar o tamanho da encrenca que havia me metido. Ela não andava em linha reta, estava um pouco capenga, puxava a esquerda como querendo cruzar a rua e entrar no primeiro bar para tomar um mé. Olhei bem para baixo, fechei um olho, e ficou claro que as pernas estavam tortas. A curva do guidão chacoalhava, solta; a corrente pulava. Os pneus e alinhamento das rodas nem dizer. Mesmo assim uns metros mais a frente minha experiência de navio escola fez minha felicidade florescer. Que romântico! “Meu bom Homem, tirei a sorte grande”; estava pedalando uma Fuji Del Rey, rodas 27, meio esportiva com guidão em curva, e mesmo com o olhar descuidado de todo a minha impulsividade ela estava original.
Cheguei em casa a noite e só no dia seguinte pude ver bem o que havia feito. O Homem lá em cima definitivamente gosta de bicicletas. “Ele” não tem tanta piedade assim com meu bolso, mas como Ele próprio diz “ajuda-te que ajudar-te-ei”. Definitivamente não podia ter gasto tanto com um prazer, mas o que fazer? Manter aquela beleza nas mãos de uma garotada que não faz idéia de como se deve tratar uma menina destas? Os dias seguintes foram de muito trabalho e novos prazeres. A Fuji estava praticamente toda inteira original. O nível de refinamento e detalhes da tradicional marca nipônica é impressionante. Todas as peças, mesmo as menores, têm o logo e nome Fuji estampado em baixo relevo. Todas as partes, mesmo as que estavam soltas ou desajustadas, depois de limpas voltaram a se ajustar praticamente com a mesma justeza de quando saíram de fábrica. O garfo desalinhado foi zerado cuidadosamente e a bicicleta quando voltou a rodar perfeitamente em linha reta. Aliás, que maravilha era esta geração de bicicletas. Tubos Ishivata tem uma resiliência fantástica. Não consegui descobrir o ano correto de fabricação, mas pelas peças foi possível avaliar que deve ter sido lá por 1982. Maravilhosa.
Como posso eu controlar meus ímpetos de paixão? A brincadeira custou o que os meus ganhos não podem arcar tão facilmente. Mas deito a cabeça no travesseiro e sei que hoje ela está guardada no Museu das Bicicletas como história, o que realmente ela é.

terça-feira, 6 de outubro de 2009



São Paulo, 06 de Outubro de 2009
Excelentíssimo Senhor Governador do Estado de São Paulo, José Serra
O senhor tomou a frente e foi o primeiro candidato à Presidência da República Federativa do Brasil a falar em rede nacional de comunicação, TV e rádio, sobre a questão da bicicleta e a necessidade de tratar a questão com seriedade. E agradecemos. Mas pedimos mais.
Tendo em vista as várias melhorias que estão sendo implementadas no sistema de transporte de São Paulo que devem ter reflexos, a médio e longo prazo, na necessidade de uso de espaço das marginais Tiete e Pinheiros, a constante busca na melhoria da qualidade das águas destes rios, e ainda aproveitando o esforço para a criação da Ciclovia Pinheiros e da ciclovia relacionada ao Parque Ecológico do Tiete:
Venho por meio desta pedir a Vossa Excelência, José Serra, Governador do Estado de São Paulo, que faça anuncio oficial definindo data para devolução da faixa esquerda de rodagem de ambas marginais, as lindeiras às águas, aos seus sofridos proprietários, rios Pinheiros e Tiete, à população de São Paulo, e à vida.
Pinheiros e Tiete merecem de volta o que é deles.
São Paulo agradece.

Arturo Alcorta
Escola de Bicicleta
http://www.escoladebicicleta.com.br/