Sábado, 25 de Julho de 2009
Tobias Heyemeyer
“As pessoas precisam parar de pensar como se fossem máquinas”
“As leis são feitas para que as pessoas possam conviver com as máquinas, como um elemento regulador”
Eric Ferreira
“A lei é boa, mas não é cumprida. Pobreza faz com que a população tenha desconhecimento da lei. Quem tem dinheiro usa bem a lei, e isto não é aqui, é em toda parte do mundo.
Lei não funciona porque não é cumprida.”
Reginaldo Paiva
“Todos somos pedestres em algum momento do dia, até o motorista que tem que caminhar até seu carro estacionado”.
a voz do povo:
“Há lei que pega e lei que não pega”
Eu:
Minha dificuldade aqui é segurar o “Orlando Furioso” que há dentro de mim quando falo sobre a questão das leis e seus resultados sobre nossa sociedade. Acredito que qualquer produto tenha que dar os resultados esperados e a lei brasileira e sua aplicação não oferecem o resultado esperado, muito longe disto. Dizem os conhecedores que é um bom produto, mas nossa realidade diária mostra o contrário. O fato é que há algo muito errado.
Converso e discuto muito sobre o assunto, que será tema de palestra que darei amanha no SESC Ipiranga. Ontem foi a tarde passei o dia conversando com Tobias; hoje Eric tem tido de uma grande paciência para tentar me acalmar e me colocar no eixo. A questão da lei, ou dos resultados sociais que temos, no Brasil me é assunto visceral. Infelizmente ai eu faça parte da grande torcida brasileira quando não canta vitória fica com raiva e torna-se irracional.
Eric me conhece bem e sabe que a questão não é o que penso, mas minha forma de comunicação, e que quase sempre quando uso a boca e falo exagero, tenho linguagem cruel ou imprópria para o que penso de fato.
Me sinto mal com tal comportamento.Meu porto seguro é a palavra escrita, que anoto, escrevo, digito, redigito, reviso muitas vezes até calibrar o tiro. Como aqui.
Sou brasileiríssimo, mas tive oportunidade de ter boa vivência com uma Argentina sempre tumultuada e propensa a resolver as coisas na exceção, na porrada. Aprendi então que o resultado de extremismo é geralmente ruim ou péssimo.
No fundo da alma tenho consciência que ter a lei como norte é a única solução para os males do planeta. E se a lei for ruim ou errada é necessário usar leis boas para derrubá-la e construir uma melhor e mais adequada. Exceção não dá, casuísmos e populismo barato também não.
A bicicleta e a lei
Como cidadão, ciclista e pedestre não gosto nem um pouco do que nos acontece. Como ciclista de metrópole não acho que o pessoal que está no meio do trânsito dirigindo seus carros, ônibus, caminhões, motos, seja maldito porque não se comporta ao pé da lei, no caso o Código Brasileiro de Trânsito. Será que seriam mais bonzinhos? Eles são o que são, jogam o jogo que está na lá. Talvez possa culpá-los por não procurar mudar a situação ruim que também os afeta, mas não por fazer algumas coisas que perante a lei são infrações. Um motorista europeu que freou num sinal de pare simplesmente perdeu a vida porque o caminhão que vinha atrás fazia como todos da cidade: diminuía, mas não parava por completo naquela esquina de boa visão. Esta história é real.
O que não me agrada mesmo é a forma como é tratada uma grande parte da população, aquela que optou por não usar o carro. E ai minha crítica recai sobre quem ordena, ou tenta ordenar, esta insanidade nossa de cada dia, que é o poder público. Mas também como culpá-los se só conseguem olhar o próprio umbigo? Eles sabem usar a lei e a usam a seu favor. Anos de pressão sobre os pescoços os fiz com um desvio de cervical típico de velho com osteoporose, a famosa cifose. Envelheceram, e não recebem o apoio da população para rejuvenescer e ter outros olhos para a aplicação da lei.
Eric diz sempre que se o governante decidir fincar posição a questão da bicicleta e do pedestre muda rapidinho. Dá como exemplo Brasília e sua campanha muito bem sucedida para zerar os atropelamentos, dentre outros. Se for cumprida a lei a coisa sai, anda, funciona, dá resultados. Minha experiência diz o contrário, mas não posso negar que a experiência de Eric com a coisa pública é muito maior e mais rica que a minha. O fato é que há uma coisa que pouca gente sabe que é o poder de quem faz a “assinatura de responsabilidade técnica”. Não é pequeno. Se o resultado final der errado quem toma na tarraqueta é quem assina, mesmo que tenha sido em nome do governo ou poder público. O assinante fica sozinho e o governo sai da reta, vemos isto com freqüência.
Não se pode culpar as leis, que se diga a verdade, porque elas são fruto de cada um de nós, dos que as escreveram, dos que as apoiaram, e dos que ficaram em silêncio. De todos, sem exceção. Geralmente a maioria é silenciosa e macabramente ausente o que torna as coisas mais fáceis para um punhado e dificulta justamente para esta maioria.
A questão da bicicleta é talvez um pouco pior porque ciclistas no Brasil é uma fatia muito grande da população, pelo menos 45 milhões/dia, a maior fatia dos usuários de um veículo, mas um povo que não consegue sequer devolver a bicicleta quando esta apresenta defeito ou quebra e arrebenta seu condutor, o que é absurdamente comum nestas pastagens. Pelo outro lado os que fazem barulho são poucos e não raro desafinados, o que os torna presas fáceis para gente experiente. Praticamente não há massa de pressão e os responsáveis pelo trânsito deitam e rolam usando a lei para ganhar o jogo. Que me desculpe, mas eles estão corretos e nós, ciclistas, estamos errados. Precisamos aprender a jogar o jogo.
Quando se pensa na bicicleta, o veículo, é necessário pensar em todo o processo, que começa na fabricação da bicicleta, passa por sua venda, manutenção, segue caminho com o ciclista que vai para o trânsito e lá encontra o poder público como regulador fazendo cumprir leis, terminando de completar a volta no relógio quando gera empregos na indústria. Há leis para cada um dos passos desta vida da bicicleta e do ciclista. Há leis, regulamentações, impostos, obrigações trabalhistas para a fabricação e o setor de vendas e manutenção; há o Código de Trânsito para o condutor, que passa por vias que são construídas e mantidas segundo a lei, e tudo isto influencia e é influenciado pelo mercado, que é regulado pelo poder público, gera empregos, impostos e etc... E assim voltamos ao início do círculo. Ou seja, para tudo há lei. Não é diferente com o carro ou em qualquer setor de nosso Brasil.
Muita lei para pouco cacique
Com certeza o único momento que se pode dizer que a lei é ruim e quando se vê a quantidade absurda de leis e regulamentações que temos no Brasil. O Serra quando assumiu a Prefeitura de São Paulo foi a público e disse que o Município tinha algo em torno de 14.000 leis e que bastaria umas 2.000 para administrar bem a cidade. A Câmara dos Vereadores está tentando limpar o que não presta, mas o trabalho é muito lento. Na mesma época foi divulgado que Brasil tem algo em torno de 35.000 leis criminais e 40.000 civis. É uma confusão danada que faz que se saia bem quem pode. Praticamente todos os mortais morrem afogados neste mar de leis. A lei do jeito que está é boa?
A idéia básica de qualquer lei é chegar ao equilíbrio, mas como toda lei é escrita por alguém esta mesma lei traz consigo uma visão, histórica ou pessoal. Sempre vai tender para um lado. É muito difícil estabelecer um direito igual para todas as partes. Não creia que há má fé, mas há uma parcialidade inerente ao ser humano. Todos os atuais Códigos de Trânsito, brasileiro ou não, receberam uma forte influência de pessoas ligadas ao automóvel. É o momento histórico. Se você conduzir o veículo bicicleta no estrito da lei, construída e instituída para o automóvel e motorista, descobrirá que é ruim ou impossível usar a bicicleta. A racionalidade da bicicleta é outra, seus caminhos são diferentes, sua cidade é outra. O mesmo vale para o pedestre.
O espaço público
A construção da sociedade brasileira está há muito voltada para o automóvel. A indústria automobilística foi competente, virou poderosa, transformou a seu gosto e com aprovação do povo, que gosta deste status quo. Os espaços urbanos foram deformados sob autorização de todos. A cidade brasileira, que normalmente tem desenho europeu, implantou um sistema de trânsito americano. Não pode dar certo. E no meio desta confusão esquecemos que somos antes de mais nada pedestres e agora não temos mais vez. Como diz Tobias “As pessoas precisam parar de pensar como se fossem máquinas”.
É comum ter residências onde muitos dormem num único, desconfortável e apertado cômodo, enquanto o carro tem sua exclusiva garagem com pelo menos 10 metros quadrados de área útil. E isto se repete nos espaços públicos, nas áreas comuns, na funcionalidade das coisas, no dia a dia. O uso dos espaços humanos sofre grande influência das necessidades do automóvel. Isto influência na lei de uso de solo e no próprio Código de Trânsito. Nós criamos a lei e sofremos suas consequências.
Quando o carro não cabe na garagem rouba-se espaço do pedestre na calçada fazendo-se aquela “bundinha” na grade do portão. O pedestre que vá para a rua. O sistema viário, por sua vez, é pensado de forma que o cruzar a rua a pé não atrapalhe o fluxo do trânsito de motorizados, isto quando há local correto para o pedestre caminhar. O carro passa por um asfalto que costumar ter boa qualidade e o mesmo não acontece nas calçadas. E assim vai. A prioridade não é a vida.
Transição
Qual o exemplo que o setor de bicicletas dá? Qual é sua competência? O que ele construiu nestas últimas décadas? Como ganhar espaço no que há de leis vigentes? Muitas foram criadas e mudadas para dar espaço à vida, mas a adaptação da sociedade a elas demora.
O Brasil está passando por uma fase de transição no que diz respeito a cumprimento da lei. Por um lado há pequenas mostras que nossa situação deve melhorar, pelo outro há um caos e uma total falta de respeito em relação à ordem social e institucional. Qual lado deve ganhar este jogo vital ainda não se sabe bem, mas creio que com o tempo e a exaustão geral pendam para o bem. Todas pesquisas científicas mostram que a maioria quer ordem e paz.
A lei e a condução da bicicleta
Nem sempre, ou melhor, praticamente nunca os condutores seguem o estrito da lei. O trânsito acaba se transformando numa espécie de jogo, com pequenas nuances próprias, que pode ou não ter a lei como base e no qual ou o condutor entra no jogo ou pode se dar mal. A intenção final de todo mundo é chegar em casa inteiro, então procuram jogar o jogo o melhor que podem e que estão treinados. Com o ciclista não pode ser diferente. Ciclista não pode ficar sonhando com condições perfeitas de trânsito só para ele. Este sonho é ficar fora do jogo. Isto não existe nem na Holanda onde há uma forma de pedalar típica para não colidir com outros ciclistas, com pedestres, carros ou até tomar um chão na linha do bonde, coisa comum. Até na Disneylândia há regras de jogo. Quem quiser sonhar que vá para cama. Quem quiser jogar o jogo entenda as regras.
Como jogar o jogo? O que está escrito na lei: usar refletores para ser visto, trafegar no sentido do trânsito, não pedalar na contra-mão, pedalar à direita da via, parar quando pedido pela sinalização, obedecer os sinais, e respeitar o pedestre. Porém se você pedalar bem a direita da via, encostado no bordo, como diz a lei, provavelmente se dará mal porque os carros vão espremê-lo contra a guia, o que provoca uma quantidade grande de acidentes. O ideal é definir seu espaço na via pedalando a pelo menos um metro de qualquer obstáculo que esteja a sua direita, e próximo das esquinas sinalizar sua intenção posicionando-se um pouco mais ao centro da via para mostrar que vai seguir em frente. Isto não é previsto em lei, mas é seguro. Ficar lambendo o meio fio é pedir para tomar fechada.
Pense no trânsito como um jogo de futebol. O time que jogar pensando só em não infringir as regras estabelecidas vai perder todas as partidas. Faz parte do jogo uma certa malandragem, jogar com malícia, buscar a vitória. Isto não significa jogar sujo, não saber quando fazer uma falta, quebrar a perna do outro sem querer revide, achar que qualquer contato físico é falta do outro. Jogar o jogo para ganhar não tem nada a ver com ter ataque histérico no meio do campo. Chilique é muito chato e ineficiente. Trânsito é igual, estão todos condutores no mesmo jogo e o outro não é seu inimigo. Aquela situação é só coisa da partida, do jogo, nada mais. Não faça drama e siga em frente sorrindo que você ganha.
A lei e os caminhos da bicicleta e do pedestre
Um dos símbolos mais absurdos do desrespeito da aplicação da lei está nas principais pontes de São Paulo, as que cruzam os rios Tiete e Pinheiros. Em várias só passa tranqüilo quem estiver motorizado, os outros que se danem. E em todas pontes de uma geração, a partir décadas de 70, são inacessíveis para ciclistas e pedestres. Muitas outras vias, só servem para motorizados seja porque só há espaço físico ou seja porque há placas que proíbem o trânsito de pedestres e ciclistas. A lei aplicada diz “você não!”.
As regras são claras. Da Constituição Brasileira, no TÍTULO II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, CAPÍTULO I, DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS; Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; etc... Ou seja, em virtude da lei máxima, pedestres e ciclistas estão excluídos de opções de vários caminhos lógicos e práticos.
Usar o bom senso
Volto um passo atrás e lembro que construímos uma vida cheia de vícios relacionados ao uso do automóvel. Da mesma forma que a garagem do carro é importantíssima nas construções, a cidade foi programada por usuários de carro para o uso do carro. A maioria destes, “mesmo sendo pedestres em algum momento do dia”, como diz Reginaldo Paiva, “pensa a vida como automóvel”, como diz Tobias.
De novo, é importante jogar o jogo, sem agredir a lei do bom senso. Os caminhos do automóvel podem ser ótimos para a bicicleta, mas muito perigosos, como no caso de avenidas expressas e estradas. Portanto não vale a pena pedalar ai. Como podem ser melhor para quem tem motor ir por um caminho mais longo ou supera subidas íngremes, que acabará sendo mais rápido. Para o ciclista em vez de dar a volta completa no quarteirão é muito mais prático pedalar uns poucos metros pela calçada – respeitando o pedestre. É contra a lei, mas é bom para o ciclista.
É lógico que há problemas com algumas leis. Toda regra de conduta social vai mudando com o tempo e se torna importante realizar ajustes, alterações ou mudanças para que o que está escrito no papel seja reconectado com a realidade.
A única forma que temos de sair deste impasse histórico que temos no Brasil e no mundo é através do caminho seguro que nos dão as leis. É um norte, que se estiver errado pode ser corrigido, mas pelo menos sempre será um norte, uma referência.
Para ciclistas, pedestres e todos outros que não sejam ou estejam usuários do automóvel é importante jogar o jogo, saber quebrar as regras sem se machucar e principalmente sem invadir o espaço do outro também. A solução da busca da vitória pela porrada, pelo “o outro que se dane”, pelo “eu tenho direito”, ou o pior deles “sabe com quem está falando?” definitivamente não funciona. A história tem provado isto por séculos.
Só vamos construir um futuro bom se for para todos e isto só é possível quando há um ponto de mediação, ou seja, leis boas que sejam cumpridas.
“As pessoas precisam parar de pensar como se fossem máquinas”
“As leis são feitas para que as pessoas possam conviver com as máquinas, como um elemento regulador”
Eric Ferreira
“A lei é boa, mas não é cumprida. Pobreza faz com que a população tenha desconhecimento da lei. Quem tem dinheiro usa bem a lei, e isto não é aqui, é em toda parte do mundo.
Lei não funciona porque não é cumprida.”
Reginaldo Paiva
“Todos somos pedestres em algum momento do dia, até o motorista que tem que caminhar até seu carro estacionado”.
a voz do povo:
“Há lei que pega e lei que não pega”
Eu:
Minha dificuldade aqui é segurar o “Orlando Furioso” que há dentro de mim quando falo sobre a questão das leis e seus resultados sobre nossa sociedade. Acredito que qualquer produto tenha que dar os resultados esperados e a lei brasileira e sua aplicação não oferecem o resultado esperado, muito longe disto. Dizem os conhecedores que é um bom produto, mas nossa realidade diária mostra o contrário. O fato é que há algo muito errado.
Converso e discuto muito sobre o assunto, que será tema de palestra que darei amanha no SESC Ipiranga. Ontem foi a tarde passei o dia conversando com Tobias; hoje Eric tem tido de uma grande paciência para tentar me acalmar e me colocar no eixo. A questão da lei, ou dos resultados sociais que temos, no Brasil me é assunto visceral. Infelizmente ai eu faça parte da grande torcida brasileira quando não canta vitória fica com raiva e torna-se irracional.
Eric me conhece bem e sabe que a questão não é o que penso, mas minha forma de comunicação, e que quase sempre quando uso a boca e falo exagero, tenho linguagem cruel ou imprópria para o que penso de fato.
Me sinto mal com tal comportamento.Meu porto seguro é a palavra escrita, que anoto, escrevo, digito, redigito, reviso muitas vezes até calibrar o tiro. Como aqui.
Sou brasileiríssimo, mas tive oportunidade de ter boa vivência com uma Argentina sempre tumultuada e propensa a resolver as coisas na exceção, na porrada. Aprendi então que o resultado de extremismo é geralmente ruim ou péssimo.
No fundo da alma tenho consciência que ter a lei como norte é a única solução para os males do planeta. E se a lei for ruim ou errada é necessário usar leis boas para derrubá-la e construir uma melhor e mais adequada. Exceção não dá, casuísmos e populismo barato também não.
A bicicleta e a lei
Como cidadão, ciclista e pedestre não gosto nem um pouco do que nos acontece. Como ciclista de metrópole não acho que o pessoal que está no meio do trânsito dirigindo seus carros, ônibus, caminhões, motos, seja maldito porque não se comporta ao pé da lei, no caso o Código Brasileiro de Trânsito. Será que seriam mais bonzinhos? Eles são o que são, jogam o jogo que está na lá. Talvez possa culpá-los por não procurar mudar a situação ruim que também os afeta, mas não por fazer algumas coisas que perante a lei são infrações. Um motorista europeu que freou num sinal de pare simplesmente perdeu a vida porque o caminhão que vinha atrás fazia como todos da cidade: diminuía, mas não parava por completo naquela esquina de boa visão. Esta história é real.
O que não me agrada mesmo é a forma como é tratada uma grande parte da população, aquela que optou por não usar o carro. E ai minha crítica recai sobre quem ordena, ou tenta ordenar, esta insanidade nossa de cada dia, que é o poder público. Mas também como culpá-los se só conseguem olhar o próprio umbigo? Eles sabem usar a lei e a usam a seu favor. Anos de pressão sobre os pescoços os fiz com um desvio de cervical típico de velho com osteoporose, a famosa cifose. Envelheceram, e não recebem o apoio da população para rejuvenescer e ter outros olhos para a aplicação da lei.
Eric diz sempre que se o governante decidir fincar posição a questão da bicicleta e do pedestre muda rapidinho. Dá como exemplo Brasília e sua campanha muito bem sucedida para zerar os atropelamentos, dentre outros. Se for cumprida a lei a coisa sai, anda, funciona, dá resultados. Minha experiência diz o contrário, mas não posso negar que a experiência de Eric com a coisa pública é muito maior e mais rica que a minha. O fato é que há uma coisa que pouca gente sabe que é o poder de quem faz a “assinatura de responsabilidade técnica”. Não é pequeno. Se o resultado final der errado quem toma na tarraqueta é quem assina, mesmo que tenha sido em nome do governo ou poder público. O assinante fica sozinho e o governo sai da reta, vemos isto com freqüência.
Não se pode culpar as leis, que se diga a verdade, porque elas são fruto de cada um de nós, dos que as escreveram, dos que as apoiaram, e dos que ficaram em silêncio. De todos, sem exceção. Geralmente a maioria é silenciosa e macabramente ausente o que torna as coisas mais fáceis para um punhado e dificulta justamente para esta maioria.
A questão da bicicleta é talvez um pouco pior porque ciclistas no Brasil é uma fatia muito grande da população, pelo menos 45 milhões/dia, a maior fatia dos usuários de um veículo, mas um povo que não consegue sequer devolver a bicicleta quando esta apresenta defeito ou quebra e arrebenta seu condutor, o que é absurdamente comum nestas pastagens. Pelo outro lado os que fazem barulho são poucos e não raro desafinados, o que os torna presas fáceis para gente experiente. Praticamente não há massa de pressão e os responsáveis pelo trânsito deitam e rolam usando a lei para ganhar o jogo. Que me desculpe, mas eles estão corretos e nós, ciclistas, estamos errados. Precisamos aprender a jogar o jogo.
Quando se pensa na bicicleta, o veículo, é necessário pensar em todo o processo, que começa na fabricação da bicicleta, passa por sua venda, manutenção, segue caminho com o ciclista que vai para o trânsito e lá encontra o poder público como regulador fazendo cumprir leis, terminando de completar a volta no relógio quando gera empregos na indústria. Há leis para cada um dos passos desta vida da bicicleta e do ciclista. Há leis, regulamentações, impostos, obrigações trabalhistas para a fabricação e o setor de vendas e manutenção; há o Código de Trânsito para o condutor, que passa por vias que são construídas e mantidas segundo a lei, e tudo isto influencia e é influenciado pelo mercado, que é regulado pelo poder público, gera empregos, impostos e etc... E assim voltamos ao início do círculo. Ou seja, para tudo há lei. Não é diferente com o carro ou em qualquer setor de nosso Brasil.
Muita lei para pouco cacique
Com certeza o único momento que se pode dizer que a lei é ruim e quando se vê a quantidade absurda de leis e regulamentações que temos no Brasil. O Serra quando assumiu a Prefeitura de São Paulo foi a público e disse que o Município tinha algo em torno de 14.000 leis e que bastaria umas 2.000 para administrar bem a cidade. A Câmara dos Vereadores está tentando limpar o que não presta, mas o trabalho é muito lento. Na mesma época foi divulgado que Brasil tem algo em torno de 35.000 leis criminais e 40.000 civis. É uma confusão danada que faz que se saia bem quem pode. Praticamente todos os mortais morrem afogados neste mar de leis. A lei do jeito que está é boa?
A idéia básica de qualquer lei é chegar ao equilíbrio, mas como toda lei é escrita por alguém esta mesma lei traz consigo uma visão, histórica ou pessoal. Sempre vai tender para um lado. É muito difícil estabelecer um direito igual para todas as partes. Não creia que há má fé, mas há uma parcialidade inerente ao ser humano. Todos os atuais Códigos de Trânsito, brasileiro ou não, receberam uma forte influência de pessoas ligadas ao automóvel. É o momento histórico. Se você conduzir o veículo bicicleta no estrito da lei, construída e instituída para o automóvel e motorista, descobrirá que é ruim ou impossível usar a bicicleta. A racionalidade da bicicleta é outra, seus caminhos são diferentes, sua cidade é outra. O mesmo vale para o pedestre.
O espaço público
A construção da sociedade brasileira está há muito voltada para o automóvel. A indústria automobilística foi competente, virou poderosa, transformou a seu gosto e com aprovação do povo, que gosta deste status quo. Os espaços urbanos foram deformados sob autorização de todos. A cidade brasileira, que normalmente tem desenho europeu, implantou um sistema de trânsito americano. Não pode dar certo. E no meio desta confusão esquecemos que somos antes de mais nada pedestres e agora não temos mais vez. Como diz Tobias “As pessoas precisam parar de pensar como se fossem máquinas”.
É comum ter residências onde muitos dormem num único, desconfortável e apertado cômodo, enquanto o carro tem sua exclusiva garagem com pelo menos 10 metros quadrados de área útil. E isto se repete nos espaços públicos, nas áreas comuns, na funcionalidade das coisas, no dia a dia. O uso dos espaços humanos sofre grande influência das necessidades do automóvel. Isto influência na lei de uso de solo e no próprio Código de Trânsito. Nós criamos a lei e sofremos suas consequências.
Quando o carro não cabe na garagem rouba-se espaço do pedestre na calçada fazendo-se aquela “bundinha” na grade do portão. O pedestre que vá para a rua. O sistema viário, por sua vez, é pensado de forma que o cruzar a rua a pé não atrapalhe o fluxo do trânsito de motorizados, isto quando há local correto para o pedestre caminhar. O carro passa por um asfalto que costumar ter boa qualidade e o mesmo não acontece nas calçadas. E assim vai. A prioridade não é a vida.
Transição
Qual o exemplo que o setor de bicicletas dá? Qual é sua competência? O que ele construiu nestas últimas décadas? Como ganhar espaço no que há de leis vigentes? Muitas foram criadas e mudadas para dar espaço à vida, mas a adaptação da sociedade a elas demora.
O Brasil está passando por uma fase de transição no que diz respeito a cumprimento da lei. Por um lado há pequenas mostras que nossa situação deve melhorar, pelo outro há um caos e uma total falta de respeito em relação à ordem social e institucional. Qual lado deve ganhar este jogo vital ainda não se sabe bem, mas creio que com o tempo e a exaustão geral pendam para o bem. Todas pesquisas científicas mostram que a maioria quer ordem e paz.
A lei e a condução da bicicleta
Nem sempre, ou melhor, praticamente nunca os condutores seguem o estrito da lei. O trânsito acaba se transformando numa espécie de jogo, com pequenas nuances próprias, que pode ou não ter a lei como base e no qual ou o condutor entra no jogo ou pode se dar mal. A intenção final de todo mundo é chegar em casa inteiro, então procuram jogar o jogo o melhor que podem e que estão treinados. Com o ciclista não pode ser diferente. Ciclista não pode ficar sonhando com condições perfeitas de trânsito só para ele. Este sonho é ficar fora do jogo. Isto não existe nem na Holanda onde há uma forma de pedalar típica para não colidir com outros ciclistas, com pedestres, carros ou até tomar um chão na linha do bonde, coisa comum. Até na Disneylândia há regras de jogo. Quem quiser sonhar que vá para cama. Quem quiser jogar o jogo entenda as regras.
Como jogar o jogo? O que está escrito na lei: usar refletores para ser visto, trafegar no sentido do trânsito, não pedalar na contra-mão, pedalar à direita da via, parar quando pedido pela sinalização, obedecer os sinais, e respeitar o pedestre. Porém se você pedalar bem a direita da via, encostado no bordo, como diz a lei, provavelmente se dará mal porque os carros vão espremê-lo contra a guia, o que provoca uma quantidade grande de acidentes. O ideal é definir seu espaço na via pedalando a pelo menos um metro de qualquer obstáculo que esteja a sua direita, e próximo das esquinas sinalizar sua intenção posicionando-se um pouco mais ao centro da via para mostrar que vai seguir em frente. Isto não é previsto em lei, mas é seguro. Ficar lambendo o meio fio é pedir para tomar fechada.
Pense no trânsito como um jogo de futebol. O time que jogar pensando só em não infringir as regras estabelecidas vai perder todas as partidas. Faz parte do jogo uma certa malandragem, jogar com malícia, buscar a vitória. Isto não significa jogar sujo, não saber quando fazer uma falta, quebrar a perna do outro sem querer revide, achar que qualquer contato físico é falta do outro. Jogar o jogo para ganhar não tem nada a ver com ter ataque histérico no meio do campo. Chilique é muito chato e ineficiente. Trânsito é igual, estão todos condutores no mesmo jogo e o outro não é seu inimigo. Aquela situação é só coisa da partida, do jogo, nada mais. Não faça drama e siga em frente sorrindo que você ganha.
A lei e os caminhos da bicicleta e do pedestre
Um dos símbolos mais absurdos do desrespeito da aplicação da lei está nas principais pontes de São Paulo, as que cruzam os rios Tiete e Pinheiros. Em várias só passa tranqüilo quem estiver motorizado, os outros que se danem. E em todas pontes de uma geração, a partir décadas de 70, são inacessíveis para ciclistas e pedestres. Muitas outras vias, só servem para motorizados seja porque só há espaço físico ou seja porque há placas que proíbem o trânsito de pedestres e ciclistas. A lei aplicada diz “você não!”.
As regras são claras. Da Constituição Brasileira, no TÍTULO II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, CAPÍTULO I, DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS; Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; etc... Ou seja, em virtude da lei máxima, pedestres e ciclistas estão excluídos de opções de vários caminhos lógicos e práticos.
Usar o bom senso
Volto um passo atrás e lembro que construímos uma vida cheia de vícios relacionados ao uso do automóvel. Da mesma forma que a garagem do carro é importantíssima nas construções, a cidade foi programada por usuários de carro para o uso do carro. A maioria destes, “mesmo sendo pedestres em algum momento do dia”, como diz Reginaldo Paiva, “pensa a vida como automóvel”, como diz Tobias.
De novo, é importante jogar o jogo, sem agredir a lei do bom senso. Os caminhos do automóvel podem ser ótimos para a bicicleta, mas muito perigosos, como no caso de avenidas expressas e estradas. Portanto não vale a pena pedalar ai. Como podem ser melhor para quem tem motor ir por um caminho mais longo ou supera subidas íngremes, que acabará sendo mais rápido. Para o ciclista em vez de dar a volta completa no quarteirão é muito mais prático pedalar uns poucos metros pela calçada – respeitando o pedestre. É contra a lei, mas é bom para o ciclista.
É lógico que há problemas com algumas leis. Toda regra de conduta social vai mudando com o tempo e se torna importante realizar ajustes, alterações ou mudanças para que o que está escrito no papel seja reconectado com a realidade.
A única forma que temos de sair deste impasse histórico que temos no Brasil e no mundo é através do caminho seguro que nos dão as leis. É um norte, que se estiver errado pode ser corrigido, mas pelo menos sempre será um norte, uma referência.
Para ciclistas, pedestres e todos outros que não sejam ou estejam usuários do automóvel é importante jogar o jogo, saber quebrar as regras sem se machucar e principalmente sem invadir o espaço do outro também. A solução da busca da vitória pela porrada, pelo “o outro que se dane”, pelo “eu tenho direito”, ou o pior deles “sabe com quem está falando?” definitivamente não funciona. A história tem provado isto por séculos.
Só vamos construir um futuro bom se for para todos e isto só é possível quando há um ponto de mediação, ou seja, leis boas que sejam cumpridas.