segunda-feira, 17 de julho de 2023

O debate da Kombi politicamente correta

Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo

Eugênio Bucci é um dos melhores articulistas do país, merece leitura. Como sempre seu texto "A profanação da Kombi; comercial da marca alemã é um descalabro ofensivo a arte, à música brasileira, à memória de quem partiu desta para a desconhecida" dá o que pensar, o que é ótimo. E discordo. Começar por onde? Descalabro é palavra que desde Marcel Duchamp, lá por 1915, deixou de existir ou, minimamente, se pode colocar em dúvida. Olhe em volta e pense em descalabro, o que será? De onde vem? Qual nossa responsabilidade? Não sei o que Duchamp pensaria sobre "ético" que traduzo subvertendo para o nosso "politicamente correto" tão atual, que é o que se põe em questão com todo este debate sobre esta propaganda da Kombi. "Ofensiva", que está no texto, é a qualidade musical do que se diz ser música popular brasileira dos dias de hoje, que desrespeita nosso passado e da qual só tiram vantagem os que ganham rios de dinheiro com ela. Os outros se calam. Sobre memória de quem partiu os direitos autorais são da família de Elis Regina e ponto final. Em nome da proteção dos direitos autorais, que não reconhece o interesse público de uma obra, a mesma USP não consegue reeditar os livros de meu avô, Fernando de Azevedo, sociólogo, educador, aliás um dos responsáveis pela criação da mesmíssima USP da qual Bucci dá aulas, e disto não se fala uma palavra nunca. Poderia citar "n" obras de "n" autores de importância crucial para a cultura do Brasil que foram ou estão esquecidas ou perdidas em razão de interesses individuais ou coorporativos de ética duvidosa em relação aos interesses coletivos, mas isto é outra história dirão. Belchior, caríssimo Belchior e sua maravilhosa "Como nossos pais"; de novo, pelas mesmas razões de ter Elis cantando no comercial, os direitos autorais são da família ou de alguém que segundo a lei faz o que quer com eles, e ponto final. Mudar a lei, ajustá-la? Primeiro, não sabemos o que Belchior pensava ou o que pensou quando escreveu a obra prima, mas sabemos como levou e principalmente terminou sua vida, alias sem ajuda de alguns que agora reclamam. O resto é suposição de quem não dormia na mesma cama. Fato é que nestas últimas décadas barbarizaram, esquartejaram, aniquilaram nossa riquíssima cultura num taciturno silêncio, incluindo sem perdão das elites e intelectuais. Pobre Museu Nacional! Politicamente correto? Ético? Por fim a Kombi, a mágica Kombi. "Nossas memórias mais preciosas, mais inocentes" que escreve Bucci sobre a Kombi, que as tenho, incluem a de Lula, ainda jovem sindicalista, descendo de uma (Kombi) para negociar o fim de uma greve na mesma VW que a produzia, a mesmíssima VW que "entregava funcionários para a ditadura" (palavras não de Bucci), aliás, VW (traduzindo - carro do povo) que foi criada numa Alemanha que quis ser reino de mil anos (do politicamente correto deles). Acredito que que terá quem me excomungue por citar o brilhante sindicalista, mas o que vale aqui é a incongruência positiva da própria história da Kombi. Neste samba da vida louca (o título original não se pode falar mais em nome do politicamente correto) a Kombi, um projeto genial que vai fundo na forma e função, talvez tenha virado um dos mais importantes elementos de travessia do abismo social que abate a maioria do povo brasileiro. Ter uma Kombi para trabalhar significa ter uma passagem para sair da miséria. Kombi dos mil usos, das mil culturas, Kombi que encheu os bolsos de empresas, Kombi que foi usada pela ditadura, Kombi de inúmeras e infinitas histórias. Marcel Duchamp teria um prato cheio com a Kombi e este debate sobre a propaganda. Aqui, no planeta satélite Brasil, uma coisa é absolutamente certa: o povão não faz ideia do que significa esta "profanação da Kombi", e aliás provavelmente nem se interessa. Tenho certeza que eles ficariam muito mais felizes se os tirassem da pobreza, mesmo que tratando com irreverência e desrespeitando a santidade de suas misérias. Já que é para brincar com contextos, vamos lá: "Quem gosta de pobreza é intelectual", Joãozinho Trinta. 
O Brasil profana constantemente não só seu passado, mas seu futuro, o que é muito pior. E não é só na propaganda. Nosso problema não é a profanação, mas a total falta de objetividade para as prioridades. Finalmente: a VW e a nova Kombi agradecem toda esta discussão. No final das contas a propaganda acertou no olho da mosca.

Nenhum comentário:

Postar um comentário