Preciso parar, preciso parar, preciso parar! O pensamento não me sai da cabeça faz dias, meses.
Tomo café da manhã no meio de um monte de coisas largadas sobre a mesa, algumas estão abandonadas faz tanto tempo que não sei mais o que são, sobre o que tratam, para que serve, nem quando quem as abandonou ali, no caso e sem dúvida eu próprio. Toda manha tenho que as empurrar para preparar as bandejas, prato, talheres, manteiga, geleia, mel. Forninho aquecendo até tostar o pão, café no fogo. Todo dia igual. Terminado o café da manhã, lavados pratos e talheres, seco a pia, passo pela mesa e olho a bagunça e sigo em frente, banheiro, quarto, cama arrumada, subo a escada, computador, trabalho, desço a escada passa pela sala que perdi o controle, sinto a mesma angústia, levanto a cabeça e sigo em frente. Preciso parar, preciso pôr ordem nesta baderna.
Dia seguinte.
Procuro focar meu olhar no pão, manteiga, geleia e mel para evitar o sufoco de minha falta de iniciativa para colocar ordem em minha própria vida. Como habitual termino o café da manhã, lavo os pratos, enxugo as mãos e inicio imediatamente meu trabalho no computador, longe daquela mesa, daquela sala. Bem mais tarde me dou conta que sequer escovei os dentes ou fiz a barba. Preciso parar! Indo para o banheiro passo pela desorganizadíssima sala e me sinto mal. Terminada a barba, seco o rosto, viro o corpo e novamente olho a bagunça da sala. Ai! Pequeno corte no queixo não para de sangrar. Espero parar de sangrar na frente do espelho impaciente. Preciso parar! Parou; tenho um momento de reflexão, olho no olho. "Está louco? Onde vai chegar com isto?" No quarto, fora vários livros no chão e o pó que nunca é vencido, a situação está sob controle, em ordem. Estico lençol, cobertores, travesseiros, tudo em ordem para outra noite agitada. Deito um segundo para alongar. Respiro, fecho os olhos, acalmo. Um mosquito passa zunindo, abro os olhos, sento na cama, olho em volta e penso no que tenho que fazer. Tudo me passa pela cabeça, menos colocar a sala em ordem. Me levanto num tranco, passo rápido e sem olhar pela sala, subo as escadas e volto ao computador. Tenho que trabalhar.
Minha prima está com Alzheimer e precisa de ajuda. Ajudo. Meu amigo precisa de uma ajuda. Ajudo. filhos e netos precisam de ajuda. Ajudo. Ajudar me faz bem, mas sito que este meu lado bonzinho em parte encobre o fato que quem precisa de ajuda sou eu próprio. Será que ajudo para fugir de minha própria bagunça? Possível. Provável, bem provável.
Segunda-feira: amanheço um lixo. Tomo café da manha sem muita vontade. Sinto gosto e cheiros, mas o nariz não para de escorrer. Termino, café da manha, barba, escovar dentes, e fica claro que tenho que ficar em casa, que vou forçosamente ficar parado. Não vou conseguir sair daqui com este nariz que não para de escorrer. Pesado, lento, penso; tudo pode esperar.
"Vai até a farmácia e faz um exame rápido"
"Tem certeza que não está com Covid? Tá sentindo cheiro, gosto? Tá com febre?"
Não quero mais atender o telefone nem o celular.
A rádio solta uma entrevista sobre a umidade do ar e a poluição típica de desta época do ano e suas consequências. Me incluí nos casos de renite, sinusite, e nariz escorrendo que estão estourando pela cidade. Nariz escorrendo sem parar, o resto acho que não tenho. A meleca gelatinosa derrete meu sentimento de culpa por não estar cumprindo meus deveres - com os outros. Uma lata de lixo cheia de papel molhado, exatos três rolos de papel higiênico em dois dias, e a pele do nariz que pedia a Deus para parar esta corredeira. Mesmo assim não consegui parar quieto. "A obrigação primeiro" foi sábio ensinamento que se transformou em neurose. A meleca me curará?
A corredeira parou e então entrou uma garganta irritada e leve tosse. Choveu muito, meus barris de captação de água de chuva amanheceram com uma água escura e muita fuligem assentada no fundo. A entrevistada estava certa; o ar está bem ruim, justifica minha reação nasal. Tem muita gente indo para hospital pensando que foi infectado. Nem imaginei que pudesse ser Covid, mas gripe. Nem uma coisa, nem outra. Já tenho a primeira dose e a de gripe. O que quer que seja, mesmo com nariz escorrendo, tossindo, me sentindo pesado, nesta semana que forçadamente fiquei tipo acamado aproveitei e coloquei em ordem a mesa, a sala e minha oficina. Ficar parado não consigo.
Ainda fico cansado no final da tarde, mas não sei se é gripe ou consciência que não posso voltar a loucura. Psicossomático, bato aposta nele.
Acordo, espreguiço, levanto, abro a porta do quarto, olho a mesa organizada e limpa. Paro, e sei que tenho na cara sonolenta um leve e profundo sorriso de felicidade. Meleca abençoada! Parei. Esta semana vai ser minha! Mereço.