domingo, 22 de outubro de 2017

A alma que se transforma em lama

Domingo passado estava pedalando na av Brasil e dei de cara com um senhor nisei pedalando uma Caloi Aluminun hibrida 1991 cor vinho. Fora algumas poucas peças trocadas por desgaste a bicicleta está linda, praticamente original. Senti saudades da minha; igualzinha. Conversa vai, conversa vem, ele contou que comprou nova e na época pedalou pouco porque sentia medo de pedalar na rua. "Pedalar naquela época era uma delícia, bem mais seguro que é hoje", repliquei. E era, quem pedalou naquela época sabe bem, era o paraiso. E aí me bateu o badalar dos sinos e a lembrança da ladainha daquela época repetida aos quatro ventos por muitos ciclistas: "Sem ciclovia não tem (temos, os então ciclistas) segurança". Briguei o que pude e o que não pude contra esta besteira. Pensando bem sacanearam com uma geração  de possíveis ciclistas e retardaram muito o desenvolvimento sustentável da cidade. 
Fui guia de passeios de bicicleta pela cidade, sempre evitando levar o pessoal pelos mesmos caminhos preferenciais dos automóveis. A maioria só pedalava em avenidas, vias expressas, ruas movimentadas, exatamente os mesmos caminhos do trânsito, dos automóveis. Guiei muita gente com medo e pouca habilidade no pedal que voltava para casa com outra ideia sobre segurança e fascinados pela riqueza e beleza da cidade.
São Paulo era tranquila, muito tranquila. Pedalar era seguro. O número de carros circulando era muito menor que temos hoje, os motoristas pouco estressados, não havia esta praga de celular, assaltos, e outras coisas mais perigosas do nosso dia a dia. Bastava fazer caminhos alternativos por dentro de bairros, pulando de um para o outro como se fossem ilhas de tranquilidade cercadas por avenidas. Mas o discurso político revolucionário da época era o implacável "Sem ciclovia não tem segurança". E pedalando com o dono da híbrida 1991 me dei conta que foi uma tremenda sacanagem com os ciclistas e com a causa da bicicleta. Quantos perderam a oportunidade de vivenciar no pedal uma São Paulo mágica, única, cheia nuances surpreendentes? Conhecer aquela São Paulo tão heterogênea foi mágico, incrivelmente mágico; sinto profundamente por quem perdeu. 
Tenho a cabeça leve. Fui radicalmente contra esta besteira, diria burrice, de só ciclovia salva. Não adiantava falar em planejamento do espaço urbano levando em consideração toda e qualquer técnica que ajude a melhorar a segurança de ciclistas, pedestres e pessoas com deficiência. Não havia interesse. Por que? Porque uns eram muito radicais, muitos papagaios de pirata, vários achavam que sabiam pedalar, técnicos não sabiam projetar, pensar a cidade, pensar o trânsito, as mobilidades, aliás não sabiam sequer o que era um sistema cicloviário, como disco quebrado só balbuciavam “ciclovia”. 
O jornalismo brasileiro é muito responsável pela propagação da besteira porque é pouco investigativo e comprou as segas o "sem ciclovia não tem segurança". Aquilo deu nisto. "Nisto o que?" "Não deu certo? Não tem um monte de gente pedalando?" devem se perguntar. Deu? Deu mesmo? Será? Quantos pedalam? Onde pedalam? Como pedalam? Onde estão os números? Sem ciclovia não tem segurança? É mesmo? Então por onde pedalam os ciclistas até acessar as ciclovias? Então?
Não entendeu? Cidade ou ciclovia? 

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