Só procuramos ver o que não nos incomoda ou o que não nos afeta.
Catástrofes naturais costumam expor o desastre criado pelo homem, pela negação de sua própria história, de sua cultura, sabedoria, pela prepotência, boçalidade que nos assola perene e sistematicamente. O conforto individual vale mais que qualquer indício inegável de que a individualidade só leva a um futuro errante. Conforto é o que nos trouxe aonde chegamos. Mas passamos do ponto sensato da noção do que é segurança e liberdade, o melhor dos confortos, que só é possível através do coletivo. Ou todos temos segurança e liberdade ou ninguém está totalmente seguro e liberto, esta é a mais pura verdade. O mesmo vale para o ponto de equilíbrio do conforto.
O que acontece hoje só pode ser justificado pelo baixíssimo nível de educação social. Ninguém escapa desta verdade. Entre a elite pensante, que tem boa cultura, é assustador o silêncio, a falta de crítica. Bem simbólico, e acho que já contei esta simbólica história, foi vivenciar um dos principais intelectuais do Brasil, muito respeitado aqui e alhures, norte de uma geração, deixar a bosta de seu cachorro no meio da praça vizinha a sua casa, onde brincam filhos e netos de amigos. Remete ao senhor feudal. Os servos que limpem.
A cidade é pública, e o que público é de ninguém...
(Parece que) Sai de cena o ícone deste desatino, Lula, o “crustáceo”, como o próprio diz, o paizão de tudo de bom que nunca havia acontecido antes nestas paragens. Intelectuais calam perante a força populista e curvam-se perante o milagre brasileiro acontecido única e exclusivamente nestes últimos anos. Antes não havia nada, só malditos. Francis Fukuyama está absolutamente certo: “A história acabou”. Durante estes magníficos anos não houve porque nem o que criticar. A cavalo dado não se olha os dentes. Quem havia ficado de fora agora é dono da festa e sequer está preocupado com o bem casado da saída. Roberto da Matta, que o diga: (http://gilvanmelo.blogspot.com/2010/11/como-fazer-oposicao-roberto-da-matta.html). Já aconteceu antes, mas não nesta escala vergonhosa. As músicas das rádios que o digam.
O Brasil de Lula repete a Argentina e seu milagre; repete o silêncio criminoso da sociedade americana durante e depois da era Bush; repete inúmeras histórias vividas. Quer deixar a família e os amigos felizes? Abra seu cartão de crédito assim simplesmente.
Mediocridade mata!
ENEM (ou neném como chamam os furiosos) está ai para provar. Dos que produzem as provas aos que as fazem todos estão reprovados. O exemplo máximo do país, o estadista, como quer muitos, é esperto, inteligente, e isto basta. Basta?
Lula é fenômeno que foi sendo criado. Não se faz sucesso sem maquiagem. Papagaio de pirata faz milagres. Mundo afora há muitos como ele, criaturas de um momento histórico, de uns poucos ou do delírio da população. Lula, Kirchner, Chaves, Bush, Berlusconi, só para citar uns pouquíssimos da longa lista que em pleno século XXI. Estes senhores, são humanos, têm defeitos e qualidades, são fruto de uma grande distorção social. Construir com bases sólidas nem sempre faz muito sucesso. Os 15 minutos de fama de cada um de nós atende muito melhor ao próprio ego. Construir o futuro virou a política dos 15 minutos de fama e para isto basta uma frase de efeito, um chame especial, saber gritar em público, ficar bem na fita.
Nossas cidades são o melhor reflexo de quem somos. O governo Lula teve suas qualidades, a melhor delas foi saber propagandeá-las com esperteza. Outra foi cooptar, se não no participar, mas no calar, muito dos possíveis críticos. Continuo em minha posição que o que houve não foi socialismo muito menos um processo socializante porque as bases estão quase que exclusivamente fincadas no dar e no ter. Nossas cidades têm um monte de coisas e deixo a você, leitor, enumerá-los. Mas o que é a cidade brasileira? Portanto quem somos nós? Quem tem um grande guardião ou paizão é porque não condições de se segurar por si próprio.
Hoje, enquanto tomava café numa doceira com cadeiras na calçada com direito a vista de uma bela praça ajardinada, aproximou-se e entrou um miserável senhor, morador de rua, com o cheiro acre típico destes. Lembrei-me das descrições das cidades medievais e pós-medievais. Oswaldo Cruz foi violentamente combatido por suas campanhas de sanidade pública, isto numa Rio de Janeiro, então Capital do Brasil, em pleno nascedouro do século XX. Jogava-se então merda pela janela – literalmente. Não muito diferente do que ainda vejo em algumas áreas não tão periféricas como muitos podem crer. O índice de coleta e tratamento de esgoto de algumas cidades é mais que constrangedor, é vergonhoso, se é que algum cidadão brasileiro tem ou sabe o que significa de fato “vergonha”. O agradável café e paisagem, com o senhor tomando seu café calmamente na mesa, ao lado tinham provavelmente o cheiro tão comum às cidades de algumas décadas passadas. Quem entrou num ônibus apertado na Europa que o diga. Ou pelos nossos becos mijados. Ou pelas ruas do carnaval... A noção atual de cidade diz que não há outra forma. O mesmo com as pequenas embalagens de papel de bala que são jogadas no chão coletivo. Tudo isto que convive-se diariamente.
Consciente de sua situação, o senhor havia perguntado se poderia sentar-se ali. E por que não? Ao sair esqueceu seu saco de latinhas, já todo rasgado e furado. Eu e o manobrista ajeitamos as latinhas num novo saco e fui levar até o velho senhor quieto, ciente de si e bem educado. Ele agradeceu. Voltei ao café e fui lavar as mãos. Necessidade ou neurose? Por que ter consciência pesada por lavar as mãos?
Como controlar a baderna?
Passou mais de um ano e Porto Príncipe, capital do Haiti, continua um caos. Pelo que se lê ainda há corpos por todas as partes, agora vítimas da cólera. A reconstrução da área destruída pelo terremoto pouco avançou. O que fazer com o entulho? Para que investir dinheiro naquela baderna destruída que antes do terremoto já era uma baderna? Qual o valor daquilo? Pergunte aos aproveitadores e bandidos.
Parece que estão tentando fazer as escolas funcionar. Parece que a “coisa”, seja ela o que quer que seja, está muito devagar começando a voltar à normalidade. O que é normalidade? Qual é o parâmetro para normalidade daquelas pessoas? Na Rádio Canadá Internacional, emissão em francês, foi entrevistado dia 5 de janeiro de 2011 um haitiano que escreveu um livro sobre a cidade, Porto Príncipe, que desapareceu em minutos e sobre o povo que luta para sobreviver com sorrisos. A normalidade é o caos de antes. Quantos terão idéia do que deve ser uma cidade? Quantos fazem idéia do que é conforto?
Caudilhos e populistas permitiram a destruição da cidade durante décadas, um século. Desmoronar tudo num terremoto só foi a cereja do bolo. Tão parecido com nossas enchentes e desbarrancamentos, com a nossa violência instituída. De quem é a culpa? Por que ter consciência pesada por lavar as mãos? Quanto vale o silêncio? Quinze minutos de sabedoria ou o futuro da família?
Problema dele! Ele que se vire!
O absurdo do complexo do alemão é o tempo que a sociedade legalizada demorou para tomar uma atitude. E não foi ela quem o fez, mas um pequeno grupo de pessoas, ou policiais. Milhares de pessoas foram abandonadas. Elas se acostumaram à situação. Todos nos acostumamos à situação. Não há o habito de trabalhar um problema até sua solução final e definitiva. A libertação daquela população poderia ter sido um ato de toda sociedade? Poderia, mas isto demanda educação de fato, não esta coisa que recebemos. Não se consegue sequer explicar aos letrados o que hoje é chamado de “doença social”, no caso “câncer social”. Há muita gente que não consegue entender a sociedade como um tecido vivo que pode ficar doente, fora do equilíbrio, e que precisa de tratamento. Os letrados se trancam em seus carros de vidro preto e a cidade passa ser algo distante, tão irreal como uma imagem virtual. Há uma incapacidade geral de perceber que a solução pode ser mais fácil que imaginamos, que o problema é deixar crescer a bola de neve ladeira abaixo.
Nova Iorque tratou de seu câncer e está novamente em pé. Hoje eles têm todos os custos, da violência e do tratamento desta, planilhados. Sabem quanto custa um pichação, um mendigo, um assalto, o traficante; custo que recai sobre toda a sociedade, até mesmo nos que se crêem mais protegidos e seguros.
Na destruição entram os que acreditam que são estadistas, os que acreditam ser justos, os que acreditam estar fazendo o bem para si e suas famílias. O ponto em comum é a falta de noção do que é o processo construtivo que só a vivência recheada de cultura nos traz. Não existe cidade sem educação ampla geral e irrestrita. Não há solução mágica. Parece que ninguém faz idéia do que é uma cidade. A cidade é um caldo de cultura sem tamanho que só a educação pode dar rumo seguro. Dá para construir uma nova cidade, uma nova sociedade, uma nova civilização? Dá.
Recomendo a leitura deste artigo do Washington Novaes -
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101231/not_imp660153,0.php