quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Ir trabalhar de bicicleta

Caminhada

O primeiro passo foi num dia de chuva quando todos os semáforos enlouqueceram. Incomum para a época, lá por volta de 1974. O vidro do carro embaçou. A paciência se acabou. O motorista olhou para os lados, pensou, desceu do carro e pediu para o motorista da frente mover só um pouquinho para frente. Voltou ao carro, manobrou, fez uma meia volta, entrou numa transversal logo ali, parou e pegou um guarda-chuva; trancou o carro e seguiu a viagem para casa a pé. Chegou e ainda não havia ninguém em casa. Deviam estar todos entalados em algum semáforo. Tomou um tranqüilo banho e foi ver as notícias. Andar a pé sempre o agradara, mas era coisa do passado. Ser impedido de seguir em frente, por qualquer razão, sempre o irritara profundamente. A experiência daquela noite fora coisa boba, mas fez com que seus pensamentos deixassem passar sem entender sobre o que as notícias diziam. Vinte minutos a pé era muito mais eficiente e prazeroso que 10 minutos parado num carro, por pior que fosse a chuva e melhor que fosse o carro e seu som.

Na manha seguinte teve que acordar mais cedo para ir pegar o carro. Saiu à rua e esticou o braço para pegar um taxi. Entrou, deu bom dia, disse para onde ia e seguiram em frente. Pela janela via por onde havia caminhado na chuva e lembrou a sensação de sentir o prazer de estar vivo, de ver sem impedimentos e com calma a paisagem. Na rapidez do taxi olhou para trás onde havia descoberto uma casa sobre uma grande seringueira. Nunca a havia visto de dentro do carro. Um pouco mais à frente lembrou que as gotas do final da chuva reforçam mais ainda o cheiro da dama da noite. O vento de seu carro talvez tenha aberto um vácuo ali porque ele, motorista, nunca se dera conta daquela delícia exalada pelas pequenas e brancas flores. E assim chegou ao seu carro, distraído nas lembranças do molhado caminhar de ontem.

Saiu do taxi e olhou em volta. Dinheiro mal gasto. Poderia ter acordado um pouquinho mais cedo e chegado ali caminhando. A quanto tempo não caminhava pela manha? O ar nesta hora é agradável, leve, mais fresco. Entrou no seu carro e seguiu para o trabalho. Uma sensação estranha tomou seu corpo. Abriu todas as janelas, mas a sensação não passou.

No dia seguinte desceu logo pela manha para a garagem. O português dos pães estava lá, com sua bicicleta cargueira e sua imensa cesta de vime cheia de ótimos pães. Como sempre roubou um pão doce com creme, recém saído do forno e ainda meio quente. Deliciosa gula pura. Enquanto o português embalava os pedidos - dois sovados aqui, quatro para este, meia dúzia neste saco, o pãozinho de dona Neide - os dois conversaram. Aquela bicicleta era preta, praticamente fosca de uso e velha, aros e outros metais já escuros, mas magicamente maravilhosa.

“Não pedalo faz muito tempo”

O português sorriu. “Pois deverias. Não sabes o que estás perdendo”. Tirou os olhos de seus pães, percebeu o olhar fixo na bicicleta de seu velho amigo e cliente, deixou os embrulhos com os pães no capo de um carro, soltou as duas alças de borracha que prendiam a cesta de vime, colocou-a no chão, e apontou para a bicicleta. “Dá uma volta aqui na garagem. Experimenta. Creio que vais gostar”. Convite irrecusável. Meio constrangido foi, primeiras pedaladas um pouco inseguro, e logo sentindo-se novamente aquela criança ciclista que nunca lhe havia abandonado a alma. O português, rindo da situação, teve que fazê-lo parar. “Desce daí, menino, e vai trabalhar”. A situação se repetiu mais algumas vezes, até o dia que o português chegou e seu amigo estava com a própria bicicleta, pedalando entre carros, no corredor do elevador, subindo e descendo a rampa da garagem. O português encostou sua bicicleta, iniciou o trabalho dos pacotes, e percebendo o adiantado da hora falou um pouco mais alto.

“Vai trabalhar, menino”

“De bicicleta?”
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Giro para casa

As duas estavam estacionadas lado a lado, a Honda 750 e uma Caloi 10 azul claro metálica. Era início de noite no Centro da cidade, já um pouco passada a hora de voltar para casa. Dois jovens homens descem do elevador e caminham juntos por entre os carros estacionados. Estão vestidos formalmente, o motociclista em um discreto terno; o ciclista um pouco mais a vontade, sem blaizer ou gravata, mas de calça e camisa social em tons claros, mocassim e cinto impecavelmente novos e lustrados. Pararam ao lado de seus veículos, cumprimentaram-se cordialmente, com o motociclista estranhando seu visinho. Destravaram as trancas. O ciclista prende a barra da calça e dá um “boa noite” e sai. Um pouco antes do final da rampa do estacionamento pode ouvir o ronco forte do motor da moto sendo ligado. Cruza a rua, entra no calçadão e some no que resta de multidão.

O ciclista está com pressa. Tem que chegar a casa, tomar um banho e sair. Vai pedalando mais rápido que o costume. Sobe para a Paulista e quanto mais sente o prazer do esforço, mais encharca o corpo de suor e maltrata sua roupa de trabalho. Da Paulista para casa, só descida, e ele aumenta mais ainda o ritmo, já competindo consigo com uma criança que brinca sozinha no pátio. Entra na reta final e relaxa um pouco, feliz, com a sensação de vitória, de liberdade. E na volta à realidade e no silêncio daquela rua ouve vindo rápido um forte ronco de moto, que cresce e passa. Passa e um pouco a frente freia, diminui a velocidade, emparelha, o motocilista levanta a viseira do capacete, e só então o ciclista se dá conta que é o mesmo do estacionamento. Motociclista incrédulo pergunta: “Você não saiu do estacionamento do Centro junto comigo? Como pode chegar aqui na minha frente?” E os dois seguem com o ciclista dando algumas explicações risíveis e com uma pitada de ironia. Isto foi em 1978 quando ainda não havia trânsito.

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Coisas da vida

Quando levanta os olhos do livro percebe que quase se esgotou o tempo para entregar os documentos que o pai e patrão lhe havia pedido. Coisa simples. Ir até lá, parar o carro na garagem da empresa, subir até a sala do presidente, pegar sua assinatura e pronto. Haveria uma vaga na garagem a disposição. Mas de carro não é mais possível, não dá para chegar. Veste o paletó, ajeita a gravata, pega os papeis, desce correndo pelas escadas, pega a bicicleta, prende a barra da calça, e sai rapidamente pelas ruas. É logo ali. Chega sem muito suor. Na porta da garagem está o manobrista e responsável.

“Boa tarde. Vim pegar a assinatura do presidente. Há uma vaga para mim. O senhor deve estar avisado”

“Boa tarde. Sim, eles me avisaram. Mas a vaga para é para um carro. De bicicleta não posso deixar o senhor entrar; só de carro”, respondeu do alto de sua autoridade. E nela permaneceu até que a portaria chamou o presidente da empresa, que desceu e assinou os papeis na rua. E mesmo com seu chefe máximo a frente o manobrista continuou afirmando: “Doutor, de carro a vaga é dele, como o senhor mandou. Mas de bicicleta... como é que fica doutor? Como posso permitir uma bicicleta na garagem” (1979)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

São Paulo sub-emergente

É 16h e 37m aqui em São Paulo; quarta-feira, 04 de fevereiro de 2010, e cai mais um dilúvio. Provavelmente a cidade ficará novamente debaixo d’água em muitas localidades. E com um pouco de sorte termino este texto sem que um raio torre o computador. É o verão mais chuvoso da história paulistana.

Água é vital, mas quando em excesso se espalha por onde quer. Ai não tem nível social ou cultural, tudo e todos que estão no caminho ficam molhados. Já tive minha casa invadida por água e sei bem como é. É nestes momentos que você entende o que é significa “impotência”. Nada pode frear as águas quando elas assim o querem. Esta é a verdade. Água deveria aparecer como sinônimo de verdade porque fisicamente têm propriedades iguais. Mesmo que tentemos enganá-las elas mostram suas implacáveis realidades. São o que são e ponto.

Choveu, encheu?

Os córregos, em sua maioria, não têm grandes áreas alagadiças, ao contrário dos grandes rios. Todas as áreas que pertencem às águas estão tomadas pela cidade, ou melhor, por seus cidadãos. E ai o detalhe importante: as várzeas e áreas alagadiças pertencem à cidade, mas isto não dá direito de uso indevido pelos seus cidadãos. A cidade tem que funcionar ou a vida de quem mora nela não será boa. E o primeiro ponto para ela funcionar está numa hierarquia: respeito às características geomorfológicas, em cima disto fazer o sensato uso de solo, águas e ar (ventos), e por último dar limites ao cidadão. Inverter esta hierarquia mais cedo ou mais tarde acaba não dando certo. O Brasil esperto se fez mais sábio que a natureza e transformou suas cidades nesta loucura de desastres e baixa qualidade de vida.

São Paulo, o município, está assentado sobre três grandes rios: Tiete, Tamanduatei e Pinheiros, e mais algumas centenas de córregos. Resolver as coisas por aqui, pela quantidade de especificidades desta imensa região metropolitana, serve como imenso laboratório urbano e, portanto, exemplo para milhões, talvez até bilhões de habitantes. Pelo quanto estão sendo usadas técnicas de engenharia, de preferência de superfície, bem visíveis, como canalização, piscinões e outras. A situação melhorou muito, mas todo este sistema é projetado para uma determinada variável. Continua sendo em parte uma mentira porque parte do princípio que a força da água tem limites. Como sempre responsabilizo todos nós cidadãos por esta situação. Adoramos comprar jeitinhos por soluções. Bem brasileiro.

Somos mais de 11 milhões de habitantes no Município de São Paulo. Com estas enchentes toda a população da cidade sofre, se não diretamente, mas também porque a cidade se torna inviável durante a enchente e depois continuará sofrendo conseqüências de toneladas de lixo e entulho, ruas destruídas, famílias desamparadas, e todos custos resultantes. Todos pagam impostos de uma forma ou outra, mesmo os que vivem na informalidade, portanto a bomba estoura no bolso de absolutamente todos. Dá até para afirmar que custo, ou seja, imposto, também deveria ser sinônimo de água e verdade. Fez besteira hoje, brincou com o dinheiro, vai ter que pagar amanha. Como dizem os americanos “There’s no free lunch” (Não há almoço grátis); uma seca e brilhante frase do economista Milton Friedman.

Para começar, chamar um fato da natureza de desastre é coisa de humano. Humanizar a natureza, querer controlá-la com truques, só fará que, mais cedo ou mais tarde, ela faça a verdade mascarada aparecer e tomar seu devido lugar. Enchente é isto. São as águas maltratadas enchendo o verão.

custo / benefício

Os afetados para valer pelas enchentes fazem mais de 20 mil cidadãos (segundo dado divulgado agora na Band). Muitos vivem em áreas que dão a certeza que com uma chuva mais forte ficarão debaixo d’água e perderão tudo, ou coisa pior. De alguma forma irão reconstruir suas vidas, seja com suas próprias forças, seja com a parca ajuda do poder público ou com a caridade da população civil. Vivem em áreas alagáveis e este é seu destino. São eles persistentes, obstinados, cegos, burros, coitados ou o que? E a pergunta correta não é esta. A pergunta que nos devemos fazer é somos nós burros ou cegos? O que acontece com eles nos afeta, nós os sequinhos, porque desequilibra todo o funcionamento da cidade. Se sua rua está em ordem sempre porque está no alto e é rica, os investimentos do futuro que darão qualidade a vida de seus filhos está comprometido. Quantas horas trabalho foram perdidas nas enchentes? Qual é esta perda para uma cidade que gera aproximadamente R$ 28 bi mensais (dado base 2007)? Quanto custa manter 20 mil cidadãos em áreas alagáveis desta cidade?

O país está há muito sendo construído em duas bases: a indústria da construção civil e a automobilística. Córregos, riachos e rios tiveram sua verdade ludibriada sendo transformados em vias principalmente para os automóveis, e o uso do solo foi realizado para atender interesses mobiliários legais e ilegais. Permitiu-se bandido de todo tipo e as invasões estão ai. Brincamos com as águas, brincamos com a verdade, calamos os que tinham o conhecimento, o saber sobre as águas porque já sabiam que aquilo daria nisto que estamos e seguiremos vivendo.

Os coitados que estão em área de risco não são tão coitados assim porque sabem ao que estão sujeitos, sabem sobre o perigo. A frase “se eu sair daqui para onde vou?” é ao mesmo tempo verdade e fuga. Esperneiam por um tempo e acabam silenciando até o próximo desastre. Acomodam-se. De lá não se movem, como os que convivem com a seca. É motivo de orgulho ser sofredor. Ai são bem brasileiros. Estou sendo provocador cruel com dor no coração, mas não tenho mais paciência com estas coisas.

A todos nós não interessa os coitados, porque qualquer coitado custa uma barbaridade para a toda a sociedade, mesmo para aqueles que estão dentro de suas ricas muralhas medievais, que não deixam de ser um gueto ao contrário. Enchentes é tão maligna quanto o segar do medo burro da avareza. É patético que nestas situações os empreendedores não vejam ai um grande negócio, não o negócio da mentira, do enganar as águas e a população, mas um negócio de construção de bom senso e inteligência de um uso de solo urbano sensato, seguro, próspero e perene para todos. Se não há inteligência nos empreendedores de plantão, pelo menos deveria haver bom senso em toda a população. Do poder público nos resta pouca esperança porque perdeu a capacidade de ser mediador e de tomar providências. O que há séculos se prova é que São Paulo segue enchendo, numa gripe que nunca tem cura.

Um bom projeto

A menina dos meus olhos é o Projeto Córrego Limpo, mesmo com seus limites. Só para entender o nível de limitação: para a SABESP ligar o esgoto de uma casa é necessário autorização do proprietário. Perante a lei não interessa o coletivo, mas o direito individual. Se o sujeito disser “não ligo” o estado e seu bolso que arquem com os custos da saúde pública local. Córrego Limpo talvez seja minha última esperança que o paulistano, os metropolitanos, e um dia o Brasil, venham a entender que se pode transformar a cidade para o bem com medidas relativamente simples. Gostaria que projeto fosse radical, não só cuidando da água do córrego, mas fazendo a recuperação do leito dos córregos e de suas várzeas, retirando tudo o que está em áreas alagáveis, incluindo todo tipo de construções e população. Locais como o Jardim Romano e Jardim Helena prova o absurdo de se permitir que um rio, no caso o Tiete, não tenha direito ao que é dele. Não é possível que invasões em várzeas, legais ou não, sejam acariciadas pela população e perenizadas pelo poder público, como prova o CEU Jardim Romano - Centro de Educação Unificado - uma verdadeira construção anfíbia.

A política do coitadinho e da esmola é mais que um desastre, é canalhice, fascismo, populismo já visto; é contra a vontade da população que cada dia mais se expressa no sentido de diminuir o abismo social que temos. Nossas cidades são um desastre urbano e só com a real reforma destas, o fim de todos guetos, pobres ou ricos, alagados ou não, é que vamos chegar a bem estar comum.

Para quem nunca viajou para uma cidade que merece o nome de cidade eu afirmo que não há preço que pague andar tranqüilo pelas ruas, sem medo de quaisquer opressões, vendo crianças felizes livres circulando ou brincando. Para nós brasileiros, do tipo que quer construir um futuro melhor e quando viaja não fica aprisionado em lojas e compras, entender o que é uma cidade é chocante.

Mapas de São Paulo
http://atlasambiental.prefeitura.sp.gov.br/mapas/119.jpg - declividade
http://atlasambiental.prefeitura.sp.gov.br/mapas/117.pdf - geologia
http://atlasambiental.prefeitura.sp.gov.br/pagina.php?id=28 - favelas

Projeto Córrego Limpo
http://www.corregolimpo.com.br/corregolimpo/por_que_despoluir/sobre_projeto.asp

sábado, 6 de fevereiro de 2010

insegurança

Se eu sou momentaneamente conduzido pelos enganos da criação de meus próprios textos, porque nós acreditamos na nossa soberania individual e social no caminho das pedras da história. A soberba da modernidade é o marmore de nosso alter ego.