terça-feira, 29 de agosto de 2023

Bom vendedor, site ruim

SP Reclama
O Estado de São Paulo

Fiz a compra de um colchão de casal na Copel da rua Pinheiros e fui muito bem atendido pelo vendedor Henrique, um jovem de 24 anos. Parece uma situação trivial, mas não costuma ser. Vendedores costumam subir no cangote dos possíveis clientes para vender a qualquer custo, o que não aconteceu. Henrique teve educação e sensibilidade para não forçar a barra depois quando entrei com muita pressa já avisando que naquele momento não iria comprar, mas só queria ver o que tinham e saber dos preços. Mesmo sendo atropelado por minha pressa Henrique entendeu a situação e a respeitou. Voltei e fechei a compra no dia seguinte sob um atendimento novamente muito respeitoso. Vendas, atendimento ao público e outras prestações de serviços que recebemos têm certa qualidade, não se pode negar, mas é muito comum ser atendido por funcionários que entendem o cliente como alguém que eles têm que aguentar para receber o salário no final do mês, e ponto final, ou têm que responder por uma empresa pouco recomendável. Esta relação tem dois lados, atendente e cliente, e que tem muito cliente com viés "você sabe com quem está falando?" ou com completa falta de noção da realidade. Reclamar e elogiar é a melhor forma de melhorar, disto não há dúvida, e aí entram os canais de comunicação que frequentemente vendem bem, mas são bem ruinzinhos na hora de receber comentários, reclamações e elogios. Via de regra o  'fale conosco' é o click mais disfuncional dos sites. O recado claro dado com isto é "se vender, se entrar dinheiro para empresa, está bom. O resto...". Prestação de serviços e vendas fazem quase um terço de nossa economia, a brasileira, seria muito bom implementar melhorias de qualidade no sistema, agregar valor ao oferecido, em outras palavras, educar o povo, afinal, não é sobre educação o futuro, não é? Para os que pensam que estou louco, lembro que Paris, outrora a capital mundial dos mal-humorados, provocou profundas mudanças no comportamento de sua população e não há lá quem se arrependa, muito pelo contrário.

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Os critérios, a cidade e os sistemas cicloviários

Qual foi o critério adotado? Alguém se pergunta?

No início do século XX foi construído uma via elevada em San Francisco, California, para os ciclistas pedalarem livres e sem causar problemas para os pedestres. Um viaduto leva e traz exatamente pelo mesmo caminho, entrando e saindo por onde quiseram os construtores, simples assim. Criticado e pouco usado, o viaduto foi colocado abaixo pouco tempo depois. 
Algumas décadas depois quiseram construir na mesma San Francisco e no mesmo local da via elevada para ciclistas, uma outra via elevada que cruzaria toda cidade para dar continuidade e fluidez ao trânsito das autoestradas. A gritaria foi geral e pesada e o projeto virou exemplo de absurdo urbano não realizado. 
Nas duas situações o critério de avaliação aplicado foi impróprio, para dizer o mínimo. Vias elevadas direcionam segregando o trânsito, portanto segregando as pessoas, e são uma interferência na paisagem desagradável, uma poluição ambiental ruim.

Em São Paulo, SP, Brasil, no início dos anos 70, com a confirmação da construção do famigerado Minhocão que faz a ligação do trânsito leste - oeste, houve uma pequena gritaria silenciosa, inglória e inócua contra alertando sobre os futuros problemas que seriam gerados no entorno e para o Centro de São Paulo. A maioria dos paulistanos aprovou e seguem aprovando a obra, recusando-se a reconhecer o desastre, e põe desastre nisto, e os custos que a obra impôs para a cidade. 
Na mesma São Paulo a implantação de monotrilho como transporte de massa sofreu pesadas críticas nos bastidores e entre paulistanos mais interessados e instruídos. Os questionamentos apresentados contavam com bons critérios contra, baseados em inúmeras outras experiências internacionais. A capacidade de convencimento dos que venderam os projetos e a pressão popular por mais transporte de massa a qualquer custo pesaram na aprovação dos projetos e no implementar monotrilhos. Agora, com todos problemas que não param de surgir, menos capacidade de transporte que a propaganda, falhas constantes no sistema, e obras que não terminam mais, ficou claro que a opção foi um grosseiro erro. O mais interessante é que o próprio Geraldo Alkmin, Governador de São Paulo que autorizou o projeto do monotrilho para Congonhas, reconheceu que a decisão foi o pior erro que fez em sua vida pública.

A primeira ciclovia implantada em São Paulo foi na avenida Juscelino Kubistchek, específica para lazer, começava e terminava em lugar nenhum, enquanto existiu ficou às moscas, e os ciclistas até festejaram seu desaparecimento com as obras do futuro Boulevard JK. 
Pouco depois de iniciadas as obras, Luiza Erundina, Prefeita de São Paulo, mandou parar e enterrar o que já havia sido feito. Morria ali a transformação da avenida JK em dois níveis, com a via expressa correndo subterrânea e a local sobre esta fazendo o cruzamento das ruas, facilitando a vida de pedestres e integrando bairros. Muitos anos mais tarde, em entrevista Erundina afirmou que aquele foi um erro que nunca deveria ter cometido.  Hoje volta-se a falar no retorno do projeto boulevard JK.

Anos mais tarde volta-se a pensar na bicicleta e oficializa-se o primeiro sistema cicloviário paulistano. Aos poucos foi sendo implementado com trechos desconexos, ciclofaixas nas calçadas que tinham cabines telefônicas, postes, árvores e outros obstáculos mais no meio do caminho demarcado por tinta vermelha. Uma das ciclovias acabava literalmente na porta de entrada (pintada de vermelho) de uma residência particular próxima ao Parque Ibirapuera. Muitos ciclistas achavam o máximo, deram total apoio, viam um futuro ali, que estávamos no caminho certo.
Qual o critério adotado?

Automóvel: os critérios colocados dentro dos seus devidos contextos.
A produção em massa, o baixo custo e a funcionalidade do Ford T fez o planeta sair da época dos cavalos e carroças, impulsionando uma mudança social e econômica mais profundas até a que os trens trouxeram.
 
Por razões macro econômicas e estratégicas houve um fortalecimento da indústria de automóveis no pós Segunda Guerra Mundial. Devido a urgente necessidade de fomentar a movimentação de riquezas para reconstruir a economia mundial arrasada o automóvel foi naquele momento opção mais acertada. Quando a economia mundial voltou a ter certa estabilidade o automóvel já fazia parte de boa parte da vida da população que via nele bem mais que uma saída para a liberdade do futuro. É inegável a importância que o automóvel teve em todo processo de estabilização social e econômico nas décadas subsequentes.

Na décadas de 60 e 70 as cidades começaram a receber de forma agressiva e com critérios duvidosos melhorias que visavam única e exclusivamente facilitar a vida dos proprietários e usuários destes mesmos automóveis. Foi maldade? Sim. E não. De maneira simplista, foi uma espécie de miopia pandêmica causada pelo excesso de entusiasmo, que só quem viveu aquela época consegue entender. O planejamento das cidades, portanto da vida de toda população, acabou reduzido a facilidade da circulação de uma minoria de motoristas, aliás, diga-se de passagem, com o explícito Ok de praticamente toda a população, mesmo os que não tinham um automóvel, então o sonho de consumo de A a Z, talvez só menor que o da casa própria, repito, talvez. 

Se durante a guerra, WWII, faltava tudo, inclusive comida. Na paz sobrou o automóvel. Através dele tudo foi, era, deveria ou poderia ser possível. Se houveram populações inteiras que durante os quatro anos de guerra comeram praticamente só repolho, por exemplo, no pós guerra o automóvel pôs ao alcance praticamente tudo que a paz podia oferecer.  Com isto muitos abusaram das vantagens do automóvel criando os mais diversos problemas para as cidades, do simples estacionar onde bem entendesse ao desrespeito completo para com os pedestres, velhos, crianças e ciclistas, para não dizer muito desrespeito com todos os outros, inclusive motoristas.  
Em 1972 Amsterdam acontece uma revolta popular para frear os frequentes atropelamentos até de crianças. Ali começava, e ou pelo menos ficaria público, o movimento que daria força aos pedestres e usuários de bicicletas e que frearia o uso desenfreado e irracional do automóvel. Com ele a cidade começou a ser repensada, pelo menos nos países mais civilizados onde a prioridade era o cidadão. De uma certa forma foi neste momento que começou a ficar claro para a maioria que é sobre a cidade, portanto é sobre a população, portanto é sobre todos e sobre cada um.

A mudança na qualidade de vida nas cidades vem vindo aos poucos, bem aos poucos, num processo bem mais lento que o necessário, melhor, que o urgente. Nem mesmo os "felizes" proprietários de automóveis aguentam mais os malditos congestionamentos, a falta de estacionamento, o perder horas de convívio com a família e amigos, o perder dinheiro parado. Este "basta" abriu espaço na sociedade para conversar, discutir e buscar saídas, repensar os critérios do que deve ser a vida de cada um e a função da cidade. 

Transportes coletivos, transporte de massa, metrô, palavras mágicas para mudar a cidade, mas o problema é que tudo isto é para médio e longo prazo. Muitos vêm optando por sair do automóvel e dos eternos congestionamentos "já", e tantos descobriram que caminhar quarteirões, em alguns casos muitos, era mais rápido, gostoso e sadio que ficar estancado na lata de sardinhas. Bicicleta? "É muito perigoso", diziam, como muitos ainda continuam dizendo. Aos poucos pedalar para o trabalho começou a se tornar realidade para uns gatos pingados, depois para mais gente, e assim entre o muito perigoso e a vida maldita do congestionamento a decisão foi ficando cada dia mais fácil e comum, porque não dizer sensata.

Os que queriam pedalar ou já pedalavam gritavam "Sem ciclovia não dá!". Deu. Melhor, dava, sempre deu. Se tinha gente que se movimentava pedalando por dentro dos bairros para chegar na ciclovia é porque dava, sempre deu. Qual foi o critério de avaliação para querer ciclovias? "Sem ciclovia não dá!" Não dá?

A bicicleta é importante para a melhoria do sistema de transporte da maioria das cidades? Sem dúvida sim, mas definitivamente a bicicleta não consegue ser a solução final e definitiva, nem mesmo em cidades onde a voz do povo diz que só tem bicicleta, como as da Holanda, Amsterdam em particular, o desejado "paraíso das bicicletas" segundo a voz deste mesmo povo. A verdade inegável é que nestas cidades da bicicleta o transporte também é realizado por veículos motorizados e maioria da população é pedestre, dentre outros. Ou seja, são cidades de todos, inclusive do automóvel; assim foi, assim é e assim será. "O automóvel veio para ficar, goste ou não goste", disse alguém com conhecimento.

Definitivamente não existe uma cidade da bicicleta, mas cidades com uso intenso da bicicleta, que é o desejável. Parece uma sutileza, um erro inconsequente de expressão, mas não é. Mudar a cidade demanda critérios realistas. 

O melhor planejamento para a cidade sempre tem que partir do planejamento para o coletivo, para a cidade com um todo e em todos seus detalhes, respeitando o indivíduo, o cidadão. Quanto mais detalhado for, quanto mais amplo for, melhor para todos e para o objeto do planejamento.

O sistema cicloviario não pode e não deve cometer os mesmos erros cometidos pelos entusiastas do automóvel. Diferente de épocas passadas, quando o automóvel se transformou em rei, em alguns casos em imperador, hoje não há mais espaço físico, urbano, social e monetário para errar. Mais, há o novo, crucial e porque não dizer vital, fator ambiental que precisa ser corrigido, o que muda completamente o jogo. Fazer mal feito, a partir de critérios emocionais, é praticamente inaceitável.

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Sempre as mesmas fontes de informação

Fórum do Leito
O Estado de São Paulo

Poucos duvidam da importância que a imprensa tem em nossas vidas. Foi o jornalismo que colocou em dúvida inúmeros fatos que afetaram, os que sempre afetam e os que afetarão nossas vidas e nos faz abrir os olhos para outras realidades. Ser jornalista é algo que está na veia ou não se é jornalista, alguém que busca notícias, melhor dizendo, faro para cumprir sua missão de trabalhador. Nem sempre o que é levantado pelo jornalismo verdadeiro, o investigativo, vai ser publicado e ou lido pelo grande público; assim como nem sempre a investigação consegue ou tem tempo de chegar às boas fontes. Com menos dinheiro em caixa o bom jornalismo tem caído cada vez mais em investigações rasas, corridas, o que já acontecia com temas que eram considerados de menor importância pelos próprios jornalistas, pauteiros ou direção de jornalismo, porque não dizer pela sociedade. Hoje mulheres e bicicletas, ou ciclistas, viraram pauta, mas num passado não muito distante pedir cobertura jornalística num destes assuntos era automaticamente ver narizes torcidos em praticamente toda redação. Mulheres estão em todos lugares, sempre estiveram, e só hoje está mais fácil chegar ao olho do furacão delas, ou investigar, fazer jornalismo. Bicicletas, ciclismo e transporte alternativo são temas relativamente novos e ainda um tanto exóticos para os ouvidos da maioria, mas estão na moda, o que leva a um jornalismo um tanto passional, ou direcionado, melhor dizendo. Exatamente da mesma forma que aconteceu quando as cidades começaram a receber "melhorias" para o trânsito de automóveis, ou seja, avenidas alargadas sobre a destruição de residências e parques, mais viadutos e túneis por todos lados. Resolveu? Foram ouvidas as vozes dissonantes de então? Que me lembre não. Um ou outro gato pingado com tempo limitado e matéria pronta. O resultados estão aí.  A falta de bom senso no pensar e usar o automóvel nos levou a esta solução (de novo) mágica, os transportes alternativos e sua rainha, a bicicleta. Da mesma forma que num passado não muito distante quando o rei automóvel tinha todos poderes e não se pensava na cidade como um todo, hoje se busca soluções isoladas que resolvam problemas altamente complexos. A bicicleta traz benefícios muito além da eterna baboseira sempre repetida, mas não é "a" solução como querem fazer crer, sssim como não são os elétricos. O jornalismo (verdadeiro) deveria levantar dúvidas, questionar as magias, o que é desinteressante, sem dúvida o imediatismo. Deveria ir muito mais fundo nas pautas, muito mais fundo. Um jornalista não pode achar, gostar, não gostar. Jornalismo é e deve ser investigativo. Será? Só isto? E o que mais? O que eu ainda não vi? Infelizmente a boa revolução, melhor, a boa mudança que pode ser oferecida pelas bicicletas está se esvaindo. Sobre as mulheres nem dizer.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

"Todo mundo está errado, eu estou certo"

Morreu uma das papisas, ou guruas, como queira, da vida alternativa, o que quer que "guru" signifique. Pregava uma alimentação radical, destas que não comem nada que não seja natureza,  que agrida a vida animal, ... ou alguma coisa por aí. No caso, parece que só comia legumes crus. A causa da morte não foi divulgada pelos familiares, mas alguns médicos, nutricionistas e cientistas acreditam que sua morte foi causada pelo completo desbalanço alimentar, o que faz sentido. Uma coisa é tomar cuidado com a saúde, com o que come e bebe, outra, completamente diferente, é radicalizar ou cair na completa negação que nós, humanos, fomos, somos e seremos uma espécie de animal. 

Vou encontrar com um amigo que pratica uma destas alimentações radicais, coisa que tirou das lições de algum destes gurus que ele achou pela internet. Ele jura que a radicalidade está fazendo bem e que nunca esteve melhor. Não dá para discutir. Interessante é que a estrutura de pensamento dele é muito voltada às metodologias científicas, ou seja, não é um idiota que vê propaganda de receita de milagre que pisca na telinha e vai atrás dizendo "achei!, achei!, achei!..." Ele estuda o que faz ou o que diz e mesmo o que pode parecer uma loucura lá no fundo tem alguma pesquisa sólida por trás. A questão é que sua formação não é médica, nem nutricionista. 
Antes da alimentação radical que agora ele pratica já não dava para discutir, agora menos ainda, mesmo quando ele recentemente deixou escapar que está com as pernas fracas.

A bem da verdade até dá para conversar, mas tem que ter o tempo e forma exatas para entrar no assunto e precisa tomar um cuidado muito grande para a conversa não espanar de vez. É assim com todo e qualquer radical, inclusive os que se recusam a comer proteína animal para proteger o meio ambiente, mas seus outros hábitos são reconhecidamente problemáticos aos meios ambientes. 

Somos todos humanos, simples assim, e este é definitivamente a questão e o gerador de problemas. Pensamos, portanto dancemos. Tememos a deus ou nos tomamos como deuses, desta ninguém escapa. Nos dois casos o centro da verdade está dentro de nós, até mesmo dentre os ateus. "Eu estou certo", ponto final, vai muito além do puro e simples instinto animal. "Eu penso, portanto existo". Eu, eu, eu, eu.
 
Não ouse dar uma dica sobre como ela tem que pedalar. Ela até ouve, mas entra por um ouvido e sai pelo outro. É uma atleta de alto nível, destes fora da curva que só não foram profissionais por acidente da vida. Quer ajuda? Quer ajuda? Quero! Mas nunca diz "vamos embora". Foi pedir ajuda sobre como pedalar para quem estava por perto, um eventual, se tanto, ciclista de fim de semana sem prática, sem treino, sem rodagem, sem uma leitura sobre o assunto. 
Um dia, numa conversa boba, soltou que num triathlon no Rio de Janeiro, sofreu demais no pedal. Perguntado como era o circuito respondeu que era praticamente plano, mas as "subidinhas" foram muito difíceis. As subidinhas em questão não são subidas, todo mundo conhece, mas suaves mudanças de inclinação que são descritas pelo ciclismo como terreno plano. Uma ou no máximo duas marchas a mais ou a menos e problema resolvido. "Marchas? Cadência? Como assim não olhar no trocador que marcha está?"  
E alguém caiu na besteira de dizer que se quisesse iria pedalar junto para mostrar como se troca as marchas. Fechou a cara. Para tentar contornar o mal estar outro aconselhou uma ciclista youtuber, Cris, que tem explicações claras. Ouviu em resposta que já tinha visto e continuou com cara fechada. A situação piorou quando lhe disseram que com aquelas pernas, muito fortes e trabalhadas, era impossível ter problemas no pedal.

Empacados somos todos em algum ponto de nossas vidas. "Todo mundo está errado, (só) eu estou estou certo" sempre fez parte da vida da humanidade, ninguém pode negar. É certo que as redes sociais elevaram estas posições radicais ao extremo. Elevaram ou expuseram o que sempre esteve ali? 

O perigo está nas verdades, certezas, que colam fácil. Algumas são profundamente destrutivas para o indivíduo e o coletivo. Não existe magica, existe aprendizado, trabalho, progresso, melhora, e sobre tudo o "só sei que nada sei". "Todo mundo está errado" pode até ser verdade, como a história provou em alguns casos. Na maioria dos casos é verdade trágica. Populações inteiras caem numa esparrela e afundam nela. Unidos perderemos, ou, "Todo mundo está errado e só nós estamos certos". Como reverter uma soberba verdade?

PS.: Este que vos escreve nunca achou que todos estão errados? Mas é claro... que sim. Vocês pedem exemplos, histórias, fatos? (rindo) Não me lembro. Melhor, não quero lembrar. A única coisa que posso dizer é que não raro olho no espelho e sinto vergonha das minhas cabeças duras. 
A maturidade me está fazendo questionar tudo. É uma apavorante delícia. 

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Adolescente preparado?

Filhos, porque tê-los? Já que os teve, como educá-los? 
Quem vai ser o futuro cidadão preparado para a realidade do Brasil? E para a realidade do mundo? 

O tio aguardava do lado de fora ansioso. Os dois adolescentes saíram junto com o pai da estação de metrô. Estão grandes, quase irreconhecíveis para quem não os via há tempo. Por mais que se tenha notícias sempre resta uma curiosidade sobre como estão, como vai a aborrescência, algo a mais que fotos e discursos de pai não responde. Abraços, e todos saem caminhando pelas ruas. Como primeira impressão, o mais novo é expansivo, o mais velho quieto e muito observador. Como todo encontro depois de muito tempo, as primeiras conversas são o que de mais básico pode haver, respostas desprendidas do mais jovem e curtas, inteligentes e assertivas do mais velho. Não demora muito para o tio que os recebe sentir-se mais firme, sem medo de ir além e até poder deixá-los emburrados ou acabrunhados, e o encontro torna-se mais rico. Fica claro que estes dois meninos vindos de dois extremos da grande cidade são bem articulados e estão muito mais preparados e amadurecidos para a vida que os sobrinhos e netos que vivem em bairros ricos e que ele vê com frequência. Também fica claro que não se sentem muito a vontade no meio desta gente de classe média alta, conscientes que são da periferia, que se vestem como periferia, que pertencem a periferia; têm consciência plena desta verdade intrínseca. O tio sabe bem que os que passam caminhando por aquela rua pretenciosa, que por ser considerada chique país afora não passa de um me engana que eu gosto, que a maioria daqueles são pretenciosos e nada mais. Os dois meninos são consistentes, altivos, cada uma a seu jeito natural, zero de soberba suburbana, simplesmente são, nada mais, não sabem que mais fortes e consistentes que a maioria que os cerca.
Os quatro, pai, tio e os dois meninos, param na frente de um supermercado gastronômico onde a variedade de geleias é grande e o preço é bom. O tio pede para eles entrarem com ele. Ali sim é a elite da elite, em vários sentidos. Os corredores estão lotados de compradores e de uma impressionante variedade de mercadorias, deliciosas, como não se vê em outro canto da cidade, do estado e do país; coisa do outro mundo. Dois passos dentro e aí cai sobre os dois meninos o peso da diferença social, um cruza os braços e para de sorrir, o outro olha perdido para baixo, sinal de constrangimento que até então não lhes transparecia. O tio contorna a situação e fica mais admirado ainda com a capacidade de percepção que os jovens têm da situação. Mesmo sem convívio com as realidades da cidade que não lhes pertence, os dois foram plenamente capazes de captar a diferença entre os que gostariam de ser caminhando na rua pretensamente chique e os que são ricos, financeiro e cultural, que estão displicentemente ali comprando. A verdade não é tão sutil, mesmo assim engana os desavisados e os incapazes, a bem da verdade a imensa maioria. Me engana que eu gosto e compro faz parte do jogo social. A eles não. Pelo sim ou pelo não, fica claro que estão preparados para a vida; crus ainda, inexperientes, pouco vivenciados, mas alertas, preparados.   


A pequena e pacata cidade do interior paulista vive de sua produção agrícola, hortifruti granjeiros. Tem um comércio simples para atender uma população de pensamentos cotidianos, sem grandes delongas. Quer ir mais além vai para a cidade grande próxima, que não é grande, mas média e rica. 
"Eu gosto daqui, isto aqui é o melhor lugar do mundo, não quero sair daqui", foi a resposta certeira quando perguntaram a ela o que queria fazer quando chegasse aos 18, para onde queria ir e estudar. Ficou claro que a pergunta foi recebida como um ataque frontal e mortal à segurança da barra da saia da mãe, do povo e a cidade que a cerca, que a sua imaturidade e desconhecimento do mundo a levou a acreditar que a condenaria a ser jogada naquele mundo hostil que ela só via da janela fechada do carro em movimento dirigido pelos pais, que seguem pelos mesmos eternos caminhos passando veloz. Quando entram na cidade grande seguem avisos para ela e a irmã para não abrir a janela por causa dos assaltos. Mundo hostil, malvado lá fora, perigo! A cidade de interior onde vivem é tranquila, mas, como boa classe média assustada, moram num condomínio murado e com segurança 24 horas. Brincaram lá, têm suas amigas lá, algumas da escola também murada e com segurança. Os que vivem na casa ao lado? Quem serão? Quando saem para o mundo passeiam em shopping ou vão ao clube, todos com segurança. "O que você pretende fazer no futuro" é uma pergunta sem sentido para ela porque tudo que ela conhece está lá e ponto final, o que precisa mais. Seus pais têm respostas para tudo, mesmo que todas as respostas estejam baseadas naquela realidade limitada, a bem dizer limitadíssima, tacanha. O resto se vê pela TV ou internet.



O mundo se abre para aquela garota classe média de família tradicional. Conhece e se enamora de um americano, filho de fazendeiros no centro norte dos Estados Unidos, cidade pequena, 5 mil habitantes perdidos no meio do nada. "Devem ser ricos, são americanos", doce ilusão. Durante os breves dias que ele está de férias por aqui não param de se ver. Ele é a abertura do mundo para ela, de uma certa forma uma resposta a todos os questionamentos que esta nossa vida confusa dos adolescentes traz no dia a dia. O imaginário é lindo, inquestionável, seguro; a realidade cruel, eles têm a resposta certa e definição para todos males. 
Quando ele volta ao seu mundo caipira americano, verdadeiro redneck (pescoço vermelho), as trocas de mensagens não param e ele diz carinhosamente que vai voltar para vê-la e aprofundar o namoro. Os adultos sentem forte cheiro de cucaracha no ar, afinal, não passamos disto para eles, americanos.
Com cuidado a família pergunta como vai ser a vinda dele. A primeira e direta resposta é que "ele vai ficar em casa e no meu quarto", e não há discussão. A família ri da tragédia que se avizinha, e não pode ter outra reação, mas deixa rolar para não piorar a situação e para ver até onda vai a conversa. Então vai aparecendo como tudo acontecerá.  
- Estou pagando coisas aqui. Quando ele chegar ele me paga.
- Como você sabe que ele vai pagar? 
- Eu conheço, ele é um cara legal, vai pagar.
- Como e quando ele vem?
- Quando mamãe for viajar ele chega.
Silêncio. 
(E você vai ficar só com ele no seu quarto sem ninguém em casa? Ou seja, o bonitinho redneck vai comer a cucaracha e voltar feliz da vida deixando um cucarachinha no Brasil?)
- Quem vai pagar a passagem?
- A família diz que não paga e ele fez uns trabalhos pagar a passagem.
- Ele só tem dinheiro para a passagem? E os custos dele aqui no Brasil, quem paga?
- Eu pago, depois ele me devolve. Tenho meu dinheiro (da mesada, é claro).   
O clima meio que azedou e a conversa naquele instante não foi mais para a frente. Todos precisam de um tempo para pensar como ajeitar tudo para que não vire um desastre. Nem precisam. 
Dias depois ela está desolada, ele não vem mais, o avô morreu, diz a família, e ele tem que ficar lá para as cerimônias. Ela manda mensagens amorosas. 
Passam uns dias e com a insistência dela ele começa a mostrar quem realmente é. Chegam mensagens irritadas, nada carinhosas. Pelo menos não chamou de cucaracha. O triste, mas triste mesmo, é que se chamasse ela não entenderia. 
Rio de Janeiro de novo. Praia. E aparece novo gringo no pedaço, agora um dito austríaco. Lá vai ela de novo, cai de novo na conversa, desta vez uma história mais complicada. Eles adoram cucarachas. A tia, advogada esperta, fuça na internet e não acha qualquer rastro do austríaco. Tudo leva a crer que não é boa coisa, aliás, tudo leva a crer que é coisa ruim para valer. 
A família se reúne para dar um basta. Está claro que a menina, que já é uma mulher, não tem nenhum preparo para a vida, para perceber o básico do básico e evitar ser tapeada, para dizer o mínimo. Vão todos para nova conversa, ela ouve cabeça baixa, olhar perdido, até que...
- Esquece estudar fora do Brasil. Você provou que não tem o menor preparo para ficar sozinha longe da família... e sem que se terminasse a conversa ela se levanta com cara de fera e sai a passos largos. Na porta para, olha para trás e diz a todos. 
- Vocês não sabem nada! São uns idiotas.   

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

A memória mente, e como mente

Fórum do Leito
O Estado de São Paulo

Não sei onde foi parar uma bolsa plástica com meu corta-vento. Minha memória criou uma narrativa infundada que eu fui roubado dentro de um supermercado, o que se provou pelas imagens de segurança que não aconteceu. Ser traído pela própria memória é fato corriqueiro a todo ser humano. A imagem estabelecida sobre certos fatos pode acabar sendo uma criação, tal qual o famoso dito "quem conta um conto aumenta um ponto"; ou "esquece um ponto". A única forma de se chegar a verdade é através de uma análise fria dos fatos, sem vítimas ou culpados pré-estabelecidos. Este é um ensinamento que se provou ser o único caminho para alcançar a redução de erros, o melhor e mais positivo resultado possível. Infelizmente nós brasileiros não somos educados para a busca dos fatos inquestionáveis. Trabalhei com trânsito e venho há muito pedindo (talvez da maneira errada) que o Brasil melhore as condições de trabalho de peritos e legistas, em todas áreas e de todas as espécies. Não dá para continuar cometendo os erros primários que cometemos neste país. Só se chega a verdade buscando a verdade, não aceitando uma verdade. A negação da pesquisa IBGE está aí para provar. Temos absolutamente tudo para um futuro brilhante, que nunca chega porque insistimos em acreditar piamente nas traições de nossos pensamentos.


E a bolsa plástica sumiu.
Quando fui colocar as compras na mochila percebi que minha bolsa plástica laranja não estava lá. Olhei para o chão e nada. Saí pelo supermercado atrás dela e não a encontrei. Avisei a gerente sobre a perda e fui para casa com a certeza que tinha entrado no supermercado com ela dentro da mochila, que tinha passado a mão pelo lado dela para pegar uma outra sacola plástica para colocar as compras. Certeza que só tinha aberto o zíper da mochila dentro do supermercado, que ela estava lá dentro, que eu a tinha visto e tocado. Óbvio que achei que alguém deveria ter aberto o zíper e tirado a bolsa sem que eu percebesse. Mas como? Como não percebi? Sei por onde andei no supermercado, não me lembro de ninguém chegando perto. Não fiquei parado para dar tempo da mochila ser aberta, o saco puxado sem fazer barulho, e a mochila ser fechada sem que eu percebesse, mas só pode ter sido lá.
 
Em casa revi tudo que havia feito antes de entrar no supermercado. A última vez que mexi na bolsa foi no consultório de minha dermatologista, onde coloquei a receita dentro da bolsa laranja junto com meu corta-vento também laranja, e ali fechei o zíper, eu me lembro. Mandei mensagem perguntando se estava lá. Resposta: não. Repassei cada movimento depois que paguei a consulta, relembrei cada vez que toquei na mochila, o momento que cheguei no estacionamento, soltei a tranca da bicicleta, lembro de colocá-la na bolsinha lateral da mochila sem abrir o zíper, de sair da garagem, pedalar um pouco, parar para ligar o backlight preso na mochila e o zíper estava fechado, lembro de quando ainda na ciclovia, quase chegando no supermercado, pegar na mochila para desligar o backlight e não ver o zíper aberto, e já no supermercado pegar na bolsa lateral da mochila a trava, trancar a bicicleta, e entrar no supermercado. Revi cada minuto sempre lembrando do zíper da mochila fechado. Por tudo que me vinha a mente a bolsa laranja não poderia ter caído no meio do caminho, o zíper estava fechado. Fazendo as compras no supermercado peguei a manteiga na geladeira, fiquei com ela na mão e percebi que precisaria de uma sacola para pegar todas as compras restantes, foi aí que eu abri o zíper da mochila, passei a mão pela lateral da bolsa laranja e puxei para fora a sacola, e fechei novamente o zíper com a bolsa laranja dentro. Se perdi a bolsa laranja com meu corta-vento só pode ter sido dentro do supermercado, não pode ter outra hipótese.

Dia seguinte voltei ao supermercado e conversei com a gerente e o chefe da segurança. Contei o ocorrido, avisei que já tinha checado as outras possibilidades, consultório, achados e perdidos da ciclovia (sim, há um) e pedi para checar as câmeras de segurança. Para ajudar, com o segurança refiz meus passos enquanto fazia as compras. Dei meu contato e ele disse que daria um retorno. Dois dias depois fui até lá e o segurança disse que viram com cuidado todas as câmeras, dando zoom em alguns momentos, e não viram nada, ninguém chegando perto, nem a bolsa caindo no chão. A bolsa laranja não foi roubada nem perdida dentro do supermercado como eu tinha certeza absoluta.

Não faço ideia do que aconteceu. O que me assusta, e muito, é minha memória me enganar assim. Não tenho uma boa memória, mas ela, a memória, não costuma criar uma narrativa tão detalhada e precisa. Ou cria e eu nunca aceitei a verdade, o que é pior ainda. 

Pensando bem, com calma, tentando ser racional, indo para o que a ciência afirma, sermos enganados pela memória é fato corriqueiro, há dados fartos e consistentes que provam isto. Funciona como um sistema de autoproteção, um ajuste para evitar maiores danos onde o cérebro cria versões sobre os acontecimentos para proteger as verdades estabelecidas pelo próprio cérebro ao longo da vida. Ele simplesmente apaga ou distorce certas informações e dados, criando uma verdade conveniente. 
A segurança da aviação trabalha exatamente para achar a verdade e não a versão destas distorções criadas pela mente. Vão atrás dos fatos, dos dados, de erros em cascata, que é o que normalmente acontece, a procura da causa sem se preocupar com vítimas e culpados. Tudo é direcionado para que o fato não ocorra de novo, que os problemas sejam sanados. O inverso do que vemos no Brasil onde os problemas mais bestas se repetem eternamente.

Trabalhei com trânsito num dos países mais violentos do planeta. Sem dados é impossível melhorar a situação. Daí o porque eu durante um bom tempo andei pedindo que se desse mais atenção e melhorasse a qualidade da perícia e dos legistas. Não dá para esperar horas para que a perícia apareça. 

PS.: dez dias depois de toda esta história, dez dias de certezas incertas sobre a desaparição da bolsa laranja plástica e minhas coisas, abro a mochila maior, coloco a mão no fundo e acho a receita. Conclusão: nunca aconteceu nada do que imaginei ter acontecido. A bolsa plástica está em outra mochila, a receita está onde coloquei, o corta vento deve estar em algum canto que ainda não sei onde... Só não me considero completamente demente porque sei que estas loucuras acontecem com todos. A mente literalmente mente.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Guarujá

Rádio Eldorado FM
O Estado de São Paulo

Bom dia. Boa entrevista do ouvidor. Mas fica a pergunta: o que mais? O que tem no fundo, por trás, desta explosão de reação? Só com Marielle é que no Brasil se está indo a fundo e procurando o que normalmente não se procura nem fala, os bastidores dos bastidores. Os bastidores para valer nunca vêm à tona. O ouvidor até deu algumas respostas sobre o que não se vê nem se fala, mas é preciso ir muito mais fundo. Como cidadão digo que a violência, roubos e assaltos, corria solta e corriqueira de uma forma inaceitável. Sou contra queimar arquivo, que é o que está acontecendo, mesmo que esta não seja realmente a intenção. Sem levantar todos tapetes nunca saberemos a verdade e nunca vamos parar com as violências. Investigação para valer tem que ter padrão aeronáutico: não interessa culpados, nem mortos, interessa as causas, a verdade, e só com ela, a verdade, se pode corrigir os males e ter segurança