quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Mudanças na escala humana?

escala humana é uma medida de referência relativa, utilizada nas artes e na arquitetura e baseada no corpo humano.[1]  (Wikipédia) 
Corpo humano inclui cérebro e suas funções? Pode-se dizer que escala humana é escala mental, e em última instância é sobre o que se trata quando se fala em retornar a vida nas cidades.


É inacreditável que eu esteja digitando no celular meu primeiro texto a ser publicado aqui neste blog. Estou no hospital esperando que meu pai seja chamado para fazer uma tomografia e a cousa vai longe. Ou fico assistindo a porcaria de baixíssimo nível que está passando na TV ou faço algo útil. Tento digitar e consigo, melhor que esperava. (pensamento de velho? talvez)

Enquanto digito me vem a imagem do Leandro digitando num celular uma reunião de trabalho na SVMA SP como se fosse tradução simultânea para alguém que não pode comparecer. Naquela época, acho que 2005, sequer existia smart phone, era no tecladinho mesmo. Foi o primeiro ser humano que vi digitando com toda aquela velocidade, dois dedões enlouquecidos, pior, sem olhar para o teclado, ainda por cima conversando e fazendo comentários sobre o que discutíamos ali. Dei uma espiada no texto e simplesmente não pude acreditar no que estava vendo: perfeito e sem abreviações. Hoje é comum, mas ainda me espanta. Um dia vou conseguir? (Uma década e meia depois estou conseguindo. Retardado? Talvez, depende da referência)

Justo agora que estava dando certo minha tosca digitação, lei de Murphy, fomos chamados para a realização da tomografia numa rapidez sem precedentes, uma hora antes do marcado e previsto. Finalizo pelo quanto com dedões erráticos e olho no corretor. Terminarei em casa no computador.

Chego em casa às 2h30 da madrugada, pego o celular exausto, impulsionado pelo entusiasmo com meu progresso, digito mais alguma coisa que não é salva, sei lá por quê. Fosse máquina de escrever não aconteceria. Pensamento infame! (Mãe, olha que bacana, ele digita e já sai impresso)

Escala humana, o que será hoje? O espaço do celular, fronteira final onde nenhum humano jamais esteve?

Conflito de gerações? Com certeza, conflito de inteligências, mas definitivamente não de biologia. Aí somos todos iguais. Escala humana.

O celular acelerou tudo, mudou a mente das pessoas, faz tudo passar numa rapidez de fazer inveja a uma Ferrari numa autobahn onde não há limite de velocidade. Antigamente, não tão antigamente assim, olhar a paisagem pela janela do carro acalmava, deixava os "pobrema" para trás. Hoje não sei mais para que tem janela, os passageiros vão olho grudado no celular ou no tablete que faz parte do painel ou está grudado nos bancos para os passageiros de trás. O próximo passo será não ter mais motorista, que assim também terá o direito a enterrar seus olhos e mente no tablet mais próximo, quem sabe até ver uma série no Netflix. Paisagem? que paisagem? Quando não, seus dedos estarão digitando mais rápido que a pobre Ferrari.

Paisagem? para que? É chata. Escala humana? O que é isto? Aplicativo novo?

Um dos milagres que a bicicleta oferece é sua escala humana, coisa que a velocidade do automóvel (mal-usado) atropelou. Quantos bits por segundo?

Na mesa ao lado um casal, cada um com seu celular a mão e aos olhos, almoça conversando sabe-se lá com quem. De seus dedos suponho que devam estar saindo mensagens. De suas bocas nada, bocas que só abrem na presença do garfo. Escala digital.

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

A lógica da sustentabilidade das cidades

 

O modelo de cidade que temos não se sustenta mais?

Amyr Klink em entrevista brilhante para o Provoca de Marcelo Tas e TV Cultura disse com sabedoria 'que o plástico não vai acabar, que o problema da poluição não é o plástico em si, mas a consciência de seu uso. O problema não está no que a gente vê, mas no que a gente não vê'

A bicicleta foi usada para transformar a vida nas cidades porque diminui a velocidade do trânsito na rua. Este é o ponto básico, diminuir a velocidade. Menos velocidade, mais vida, mais vida mais economia, mais vida mais integração social: unidos venceremos. Mas parados ou muito lentos perderemos. Há uma relação entre velocidade e economia, velocidade e crescimento, velocidade e desenvolvimento, velocidade e bem-estar social; relação para o bem e para o mal. A documentação sobre isto é farta e extremamente bem fundamentada. Num determinado ponto as curvas se cruzam e o que era benefício passa a ser custo. "É a economia, estúpido!", dito em 1982 por James Carville. Óbvio.

Poluição, lixo, assim como o dito grande vilão de nossos urbanos problemas, o automóvel, são pauta de discussão e busca de soluções faz muito. Nas cidades (e países) mais adiantados (e, portanto, educados) já se fez muito para solucionar estes problemas, pelo menos a olhos vistos. Mas como diz Amyr Klink, o problema mesmo está no que os olhos não veem. O automóvel está aí em cada centímetro de nossas vidas portanto é mais fácil acertar com pedras atiradas. O lixo nem tanto porque depois que sai de casa desaparece como por milagre pelo trabalho dos lixeiros. Sumiu, acabou, resolvido. Resolvido? Lixo não vai acabar e fiquem certos o automóvel também não, aliás são dois problemas que só aumentam.

O lixo gerado por vários países ricos continua sendo empurrado para debaixo do tapete ou para bem longe onde não possa ser visto ou sentido por narizes empinados. Lixo descartável não raro segue viagem sem visto nem passaporte para países pobres. Ou, se recicláveis, iam para a China que parece que não vai mais aceitar os ditos recicláveis. E reciclados voltam para nossas casas com tigelas, embalagens... A reciclagem, que ainda é muito baixa e ineficiente, ajuda e muito, mas continua sendo um problema urbano grave. "É a economia, estúpido!", dito em 1982 por James Carville. Óbvio.

Como diz Amyr, plástico é artigo básico para nossa civilização e é óbvio que sem ele nossa estrutura de sobrevivência não funciona, a individual, a coletiva, portanto a urbana. Esta é uma das cidades que não vemos, se não vemos não conhecemos, se não conhecemos, portanto, não existe, não é problema nosso.

Mesmo tendo vasta experiência passada que nos deu soluções funcionais o drama de nossas vidas urbanas segue a passo de lesma, em alguns casos de ostra, para uma solução. Aí não é uma questão econômica, mas pura estupidez coletiva.

O mercado imobiliário está a toda. Vai gerar muitos empregos de baixo valor agregado. Isto é bom ou não? O dito progresso será visível em edifícios cada vez mais altos. Bom para a economia de quem? Pelo que diz o plano diretor será bom para diminuir os problemas do transporte e facilitar as mobilidades. O que há por trás disto que não vemos, que não sabemos, que não nos interessamos.
Aqui em São Paulo, na esquina das ruas Pará com Itacolomy, vão ser colocados abaixo quatro ou cinco casas para a construção de mais um prédio que ainda não se sabe comercial ou residencial, provavelmente residencial, pouco importa. A questão é que nestas casas estão instaladas dois restaurantes, um consultório, e mais sei lá o que. Qual o problema? 
Primeiro, a esquina é um ponto de encontro da população local, pelo sim ou pelo não é um polo gerador de empregos, e carrega o que resta da memória do bairro. Vai ser demolido e com ele acabam empregos diretos e indiretos, geração de impostos, vida e principalmente geração de riquezas não visíveis que de alguma forma beneficiam quem precisa, mas é ou parece invisível.

O progresso que as grandes capitais do mundo vinham tendo antes da pandemia agora está sendo questionado. Como será a cidade ideal para todos? Mais uma vez estamos num impasse sobre para onde vai a humanidade que em sua maioria vive em cidades. É uma questão econômica, simples assim? Não é só, mas ou a cidade tem suas finanças equilibradas, no positivo, ou se está degradando tudo e num futuro não muito distante vai se distribuir pobreza e violência. Ok, não é simples assim, mas a história mostra que é o que acontece.
Londres perdeu 300 mil habitantes durante a pandemia que não conseguem renda para continuar na cidade. Uma barbaridade de nova-iorquinos saiu da cidade no mesmo período. Mesmo antes já havia uma discussão sobre as cidades ficando cada vez mais caras e os pobres sendo empurrados para longe, um problema que não é de hoje. As soluções não são fáceis e não há fórmula mágica. O único que podemos fazer é procurar ver o que não está na cara. 

Uma coisa me parece absolutamente clara: a solução, principalmente aqui em São Paulo e no Brasil, definitivamente não é demolir e reconstruir. O que geramos de entulho é absurdo, inaceitável. A perda da memória, das referências, num país onde a violência é epidêmica, uma selvageria completa. Num país que de certa forma silenciou com a morte de 600 mil concidadãos talvez explique.



Ideias geniais podem se transformar em mágicas perigosas. Bom exemplo é esta febre de construir casas com containers. O vídeo a seguir diz que...

 

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Como matar o pobre diabo?

Muitos ao ler o título deste texto vão pensar imediatamente "Capetão Cloroquina". Não, não me refiro a ele. Primeiro, eu não ofenderia o diabo. Segundo, o capitão de pobre não tem nada. Por último eu o considero inominável, a não ser pelo próprio nome que espero seja realmente messiânico e fique marcado como adjetivo para algo muito além do mal, mais além do ignóbil. Dito isto, vamos em frente.

Quem não teve vontade de matar aquele que incomoda, é chato, ou comporta-se de maneira socialmente inapropriada, o pobre diabo. Afinal, que mal faria matar uns e outros? Em pensamento talvez seja um alívio, mas matar para valer geralmente não compensa. O pós geralmente é, vamos dizer, desagradável, ineficiente.

Qual é o problema?
- É normal. Garanto que não é só você que quer matar o velho.
No caso aqui o problema é, por ironia do intestino, o texto for lido por quem se sentiria ofendido. Sim, ironia do intestino, porque pode dar merda. 
Se posso fazer uma sacanagem ou matar em palavras e pensamentos porque não fazê-lo com requintes?

Politicamente incorreto? Bom, ser politicamente correto para mim é coisa de gente que é religiosamente correta, segue a cartilha e a catequese que lhe convém. Medo mesmo, dependendo é pânico na cabeça, tenho é destes religiosamente corretos. Estes deixo ao juízo final de Deus. 👍👍👍👍👿👍

Rir de piadas ou comentários politicamente incorretos é sinal de inteligência, diz a ciência. Soltar uma barbaridade "politicamente incorreta" não necessariamente é concordar com a barbaridade, mas se expressar da forma que consegue, que está habituado no trivial.
Procissão é o carnaval das carolas. Já há as que sequer conseguem e se resumem a pagar o dízimo pelo aplicativo. Aleluia! Viva a santa inquisição! Para o inferno com os libertinos! Tudo pela causa!

Quanto mais aberta a sociedade mais eficiente ela é, foi, será, isto inclui suas formas de expressão. 
Por outro lado, sociedades violentas não funcionam, não resta a mais remota dúvida. Rir é violento?
Chico Anísio faria sucesso em nosso tempo, ou seja, desde o nascimento do politicamente correto, ou seria execrado, preso e condenado? Seria queimado na fogueira ou fuzilado? Incluí as diversas pontas de religiosos radicais, os de fé e os de ideologia, e isto infelizmente não é piada nem politicamente incorreta, mas real. 

"Eu mato, eu mato, quem roubou minha cueca para fazer pano de prato" diz o divertido refrão da música de carnaval que adoro e vivo cantando. 

Vira e mexe, melhor, com frequência falo barbaridades. Amo todos aqueles com os quais posso jogar ping-pong de barbaridades. Só me culpo quando sou inapropriado com desconhecidos que não entendem e se ofendem com minha língua ferina. Humor é uma questão de timing e só funciona no fio da navalha. Mas entre iguais se não falo besteiras fico com algo entalado na garganta e o desentalar é o que me faz ser mais aberto, justo.  

Erra quem acredita que o pobre diabo é o outro. O pobre diabo que se deve matar, melhor, controlar, é o que temos dentro de nós próprios. E não é um único diabo. Temos dentro de nós um inferninho completo que ninguém segura; e tome muito cuidado com aqueles que tudo faz crer santidades, pois destes, como em bundinha de bebê, nunca se sabe o que vai sair.

"Ou você ri da vida, ou a vida vai rir de você"

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Quase romaria até Aparecida

Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três; fui! E assim saí no domingo 10 de outubro 7h00 de casa para pedalar até Aparecida do Norte. Romaria? Não exatamente, mais para ver ver que para crer. Treino? Com certeza. Dúvida? Aguento ou não fazer os 180 km em duas etapas: São Paulo - São José dos Campos 100 km, dormir e encarar mais 84 km até Aparecida.
Os primeiros 100 km, exatos, foram bem, mas o entusiasmo do meio para o final aumentou minha média e tiveram seu custo na derradeira última subida, curta e não muito inclinada, que foi um sofrimento memorável. Psicológico ou físico? Provavelmente os dois juntos, mas acima de tudo custo da burrice de não exagerar. Hoje falei com o Zé, amigo meu que mora em SJC, e expliquei por que mesmo passando a 100 metros da casa dele não o fui ver. Ele riu. "Eu sabia!"

Peguei uma leve garoa neste primeiro dia. A meteorologia afirmava que choveria e se choveu não foi em mim. Fiquei decepcionado com os poucos romeiros que ultrapassei, mesmo tendo ouvido que em razão da pandemia não seriam muitos. Ainda muito distante de Aparecida encontrei romeiras sentadas com os pés cheios de esparadrapos ao ar.  A fé vai levá-los ao destino final, mas a que custo? Me pergunto se isto é fé ou o que será?  

A exaustão diminui depois da massagem que me faço durante o banho. Saio para caminhar um pouco o que ajuda a diminuir as dores nas pernas. De resto estou bem. A cabeça está ótima, mas com dúvidas que no dia seguinte consigo chegar a Aparecida. Excitação e exaustão me fazem demorar para dormir.
Descendo para tomar o café da manhã entra um americano no elevador. Good morning, good morning, e pergunto se está trabalhando aqui no Brasil, ele diz que não, que está num congresso de religiosos. Saímos do elevador e ele me diz todo feliz que "Ontem rezamos para uma menina que não mexia mais as pernas e ela saiu andando". "That's good" respondo.
O restaurante e o lobby estão lotados de americanos religiosos tomando café da manhã. Pego uma mesa vazia próxima a um senhor negro muito parecido com o gorducho que dança, canta e encanta no clip 'Come on to me' do Paul MacCartney; só que sem a barba. Simpático, sorridente, falante, trocamos um bom dia. Me sirvo e sento numa posição diagonal a ele. Percebo que num momento ele arregala os olhos como um lobo tarado de desenho animado, giro a cabeça e vejo que está olhando as costas, qual seja bunda, da senhora negra, alta, bem delineada, arrumadinha e com marido. O casal se serve, volta a mesa, conversam com o gordinho simpático; sem dúvida conhecidos. O marido se levanta e vai se servir, a mulher segue atrás um pouco depois, e eu me controlo para não cair na gargalhada com o gordinho simpático olho arregalado para o teto numa expressão inequívoca "que puta gostosa". Queria ser milionário para leva-lo para Salvador. Bato aposta que viraria umbandista.

Subo para o quarto, escovo os dentes, pego minhas coisas, desço, e quando estou passando pelo lobby lotado de religiosos americanos não posso deixar de pensar que esta fé faz as pernas paralisadas de uma menina se moverem, mas não faz a terceira perna do simpático senhor gorducho ser tão fiel aos mandamentos. 

Ainda em São Paulo procurei a melhor forma de entrar e sair de São José dos Campos, o que foi para lá de providencial. O trecho conurbado da cidade é longo, sem acostamento, com movimento pesadíssimo, terrível para pedestres e principalmente para ciclistas, que existem, estão lá no dia a dia. A solução na chegada a São José dos Campos foi cruzar a Dutra na altura da UNIPE e seguir por rua, calçada e gramado até depois da Johnson & Johnson, caminho completamente seguro. A saída para Aparecida, também planejada para longe da estrada, foi por dentro da cidade até pegar a avenida GM e de lá cruzar a Dutra para seguir em frente; uma tranquilidade.

não é romeiro, é trabalhador
O triste é que as autoridades simplesmente negam a existência de pedestres e ciclistas trabalhadores da Dutra conurbada, situação comum a todas as cidades deste país. A saber, em Guarulhos, onde o problema é o mesmo e as autoridades negavam a existência de ciclistas e pedestres, foi feita a contagem em horário de trabalho nas indústrias e apareceu um ciclista a cada 17 segundos. Espero estar vivo para ver estes absurdos pelo menos humanizados. 

Passar de frente a fábrica da GM me dá agonia. Está desativada. O sindicato bateu o pé muito além do que deveria, com prefeitura e outros sindicatos avisando que estavam esticando a corda muito além do limite. Estupidez pura ou fanatismo quase religioso? O complexo industrial da GM é imenso e fechado. Dói. 
Demoro quase uma hora e meia para ver a Dutra cheia de romeiros e a partir de então fico assustado com a quantidade deles. Nem na romaria de 300 anos estava tão cheia. Começa a garoar, não coloco a capa tendo fé que não vai piorar. A ciência da meteorologia rapidamente supera minha leda fé.
Muitos não se preocupam em caminhar lado a lado com outros romeiros ficando com o corpo quase dentro da faixa de rodagem. Os caminhões passam raspando e ninguém se assusta. Pedalando tenho que tomar cuidado nas ultrapassagens, em algumas delas olhar para trás e quando der invadir a pista para seguir em frente. Foda-se o ciclista. Fodam-se os ciclistas, que cada vez aumentam mais. A bem da verdade os ciclistas também estão fazendo e andando para tudo, pedestres, caminhões e até ciclistas mais lentos como eu. Mais lento, diga-se de passagem, pedalando numa média um pouco acima de 20 km/h. Um me ultrapassa sem avisar pela direita quase tocando em meu guidão. Fé na romaria, mas não nos princípios cristãos. 
A garoa vira chuva, a chuva vira torrencial. Estou encharcado, com frio. Paro debaixo de uma ponte onde muitos se abrigam e aproveitam as duas bases de apoio cheias de frutas, café, bolinhos e um final de paçoca deliciosa. Paro um pouco, tiro fotos, ensopado e me sentindo culpado pela burrice visto a capa. Já é hora do almoço. Quando estou subindo na bicicleta vejo que o pessoal do apoio está servindo marmitas, grandes, com arroz, carne moída, feijão e batata. Os primeiros a se servir têm cara de ser os mais ricos do pedaço. Um senhor menos abonado em pé e parado ao meu lado olha com inveja os que comem absortos.
Volto a estrada que mesmo com a chuva torrencial está cheia. Não demora muito e cai um raio a uns 1.000 metros, se tanto. Um sinal que já deu o que tinha que dar? Ultrapassar os romeiros encharcados que a cada km enchem mais o acostamento fica cada vez mais perigoso. Não é uma questão de fé parar. Fé definitivamente não é obsessão.   

Já fiz 50 e faltam um pouco menos de 40 km. Taubaté está passando a minha direita. Olho minha velocidade, com a chuva devo diminuir um pouco, vou demorar algo em torno de 3 horas a Aparecida. Sinto meu cansaço, minhas pernas, meus incômodos; se quiser chego. Vale a pena? Daqui para frente será cada vez mais perigoso ultrapassar os romeiros. Pensando bem sensatez faz mais sentido, sempre faz sentido. Vou para a rodoviária e o pneu traseiro está furado. "Yo no creo en brujas, pero que las hay las hay. Este pneu é mais um sinal. Chega." Compro a passagem, sento-me para esperar o ônibus e a chuva acalma. "Sigo em frente por Pindamonhangaba?" Chega de loucura, de volta para casa. Enquanto espero faço o remendo e encho o pneu. 

Na rodoviária do Tiete desço do ônibus e dou de cara com dois ciclistas parados olhando desolados a chuva torrencial que despenca. Ainda vão para Santo André. Um tem 43 anos e o outro, que está com joelho doendo muito, 47. Contam que fizeram a romaria numa tacada só, 18 horas pedalando. Foi uma loucura e reconhecem que deveriam ter feito em pelo menos duas etapas, como eu pretendia. 
Não é difícil encontrar os que achem bacana pagar promessa fazendo os 180 km numa tacada só. A fé está relacionada em fazer a coisa certa ou em sofrer? Bato aposta em fazer o certo. Não sei se Nossa Senhora de Aparecida está feliz com tanta devoção irracional e fanatizada.

Meu pneu de trás murchou. Entro no Metro e compro passagem. Na hora que vou cruzar a catraca sou parado por um segurança que diz que "bicicleta só até as 16h00. São 16h15". Sento num canto e troco a câmara. A cola está velha e não colou o remendo. "Saco!"
Entro em casa, solto a mochila, tomo água, faço pipi, volto para guardar a bicicleta e encontro o pneu da frente furado. "É, sem dúvida, foi sábio ter parado. Mais um sinal". Talvez volte a pedalar na Dutra que tem trechos lindos. Nunca mais em tempo de romaria. Tudo tem limite.

sábado, 2 de outubro de 2021

desdentado e sem comer

A idade chegou e perdi mais um dente, o terceiro. Ontem tive que extrair mais um pré molar. Causa: bruxismo. Com isto acordei e não pude tomar um café da manhã normal, normal para mim. Olhei minha papaia raspada, papinha no prato, ouvi o silêncio do entorno de minha casa e não gostei da brincadeira. Quero pão torradinho e quentinho, manteiga sem sal, geleia, mel, café expresso! 
"Quanta frescura!" pensei.

Na volta do dentista peguei um taxi. Chovia, dobrei a bicicleta, coloquei-a no porta-malas e seguimos viagem conversando. Foi um inferno de trânsito, tudo parado, muita conversa. Ele, motorista dito "pai-avô", aos 60, filha com 15 anos. 
- É difícil, mas precisa fazer esta criançada cair na real. 
- Minha mulher faz trabalho beneficente e ela vai junto. Já começou a entender as coisas. Já não diz mais que dá (para comprar), que é só pagar no cartão (de crédito).

Manhã nublada, silenciosa e eu parado encarando a papinha de papaia. A dobrável está encostada na sala. Vai chover, não vou poder sair de casa, muito bom, não vou passar vontade. Sem saber bem o que fazer com, melhor, sem dente, fico parado no meio da sala num desorientado mimado. "Que direito tenho eu?"
Durmo só, na minha cama, no meu quarto, na minha casa que está num lugar silencioso, sem violência. Tenho uma pequena geladeira. Tenho uma vida normal. Normal? Para quem?
"Como será lá?"

Ela se levanta com cuidado para não acordar os outros que ainda dormem no pequeno e mal ventilado quarto. Ela dormia junto com a filha mais nova num colchão velho e meio deformado; a mais velha com os dois irmãos no colchão jogado no chão, corpos invertidos, pé com cabeça, cabeça com pé, para caber todo mundo. Abre a porta que ficou encostada para ventilar um pouco, estica a perna sobre os corpos, e sai para a cozinha. Ainda meio atordoada da noite mal dormida, regra nesta vizinhança que gosta de uma festa ou de conversar noite adentro. Cheira o que resta de leite, não está estragado ainda, coloca mais água e põe para esquentar. O pão de forma que foi deixado aberto é colocado sobre a mesinha coberta por pano limpo, florido, comprado na liquidação. Os pratos amontoados ao lado do pão, pote econômico de margarina, e uma faca. Leite quente, água do café ralo fervendo, hora de acordar os meninos, um por vez, a casa só tem um banheiro, pequeno, pintura do teto mofada, com ladrilhos imitando mármore cinza nas paredes brilhando, um orgulho, chão de cimento queimado, vaso sanitário sem acento, mas com uma velha tampa de lixo para evitar mosquito. Tudo limpo. Um por vez. 
Pelo vitro apertado ela olha o amontoado sem fim de casinhas sem pintura ou telhado, tudo laje e caixa d'água, e lá longe vê as árvores da praça na avenida. Por uns instantes preocupada com o velho senhor maltrapilho que dorme debaixo da lona e que não terá sequer café da manhã para tomar. Fica na espera de um filho dela que desce com meio pacote de biscoito. Um dia o magérrimo velho estava ainda mais quieto que o normal naquele fim de tarde da volta do trabalho dela, nem agradeceu como de costume. Um dos filhos não entregara o pão velho pela manhã. Justificando acabrunhado "Estava com muita fome".


Fico com a colher cheia de papa de papaia no ar, congelado, lembrando da matéria na TV sobre as dificuldades que a população está tendo depois da pandemia. Minha paz, minha segurança, meu dia a dia me dá o direito, a capacidade de pensar. 
Coloco a papai gelada na boca e sinto o local onde foi feita a extração do dente. Não é uma dor, mas um leve desconforto.
"Como estará a boca deste pessoal?"