quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Maradona e Argentina

Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo

Sou Condomi Alcorta, família argentina, filho, neto, bisneto... de argentinos. 

Para mim Maradona é a tradução mais perfeita do que é a Argentina, do que foi sua história, suas glórias, suas desgraças. 

É comum ouvir em Buenos Aires que "Gardel canta cada dia melhor", Carlos Gardel, cantor de tangos, morto em 1935. 

O que já se diz sabemos, mas o que se dirá sobre Maradona agora que ele se foi? 

Argentina chegou a ser o 5º país mais rico do planeta no pós Segunda Guerra Mundial. Com o populismo de Peron começou a desintegrar. Em 1973, quando Peron voltou triunfante do exílio e foi reeleito Presidente, Argentina tinha 4% da população na linha de pobreza. Muito instável, submerso em múltiplos peronismos, de todo matiz, até dos que são oposição ferrenha, Argentina hoje chegou a 40% da população abaixo da linha de pobreza, uma tristeza sem fim. 

Vendo as imagens do velório e do cortejo de Maradona cortando Buenos Aires fica inevitável fazer um paralelo com as homenagens para Airton Senna, talvez uma tradução das diferenças entre os dois países e suas populações.

sábado, 21 de novembro de 2020

Burrice generalizada no balde de sangue do assassinato de João Beto

O Estado de São Paulo
Fórum do Leitor

O assassinato de um cidadão negro no Carrefour de Porto Alegre disparou uma série de protestos, com os quais concordo. Estou na frente da TV vendo o apedrejamento e parcial destruição do Shopping Jardim Pamplona, na rua Pamplona próximo à rua Estados Unidos, onde há um Carrefour, com que não concordo em grau, gênero e número. Completa burrice.

Alguém já ouviu falar de Mahatma Gandhi?

Faz muito que deveríamos ter controlado a violência generalizada que afeta em cheio as populações de baixa renda, que em sua maioria é de origem africana. Uma hora iria ter uma gota d'água e o assassinato de João Beto no dia da Consciência Negra foi um balde de sangue transmitido por todas as mídias. 

Estávamos tendo um segundo turno tranquilo aqui em São Paulo com Boulos e Covas propondo e discutindo com civilidade. É óbvio que o acontecido no Carrefour Pamplona terá efeito na campanha de Boulos e mesmo não sendo eleitor dele fico muito triste. Para sair desta baderna que vivemos necessitamos de diálogo, de troca de ideias, de sensatez. Não concordo com alguns posicionamentos de Boulos, em especial o apoio a invasão de áreas públicas, mas concordo em grau, gênero e número que se deve dar mais atenção ao pessoal mais vulnerável, incluindo ai a classe C. 

Escrevi sobre minha tristeza com a não eleição de Renata Falzoni e o tema vem a calhar agora. Renata não foi eleita porque teve muita gente que não votou nela porque a candidatura veio pelo PV e não em partidos de esquerda mais puros (?). Não tenho dúvida que não votar em Renata foi um erro estratégico. Aos ideológicos lembro ou aviso, como queiram: "Em bicicleta se vai ao socialismo". Quem não entendeu perdeu. Um dos elementos básicos usados para a transformação dos cidadãos e suas cidades mundo afora foi, é e continuará sendo a bicicleta porque ela leva os cidadãos a comportamentos sociais e ambientais que sempre foram e continuam sendo elementos básicos da proposta de equilíbrio e justiça social, linha mestre do socialismo. Pela mais pura falta de maturidade ou mesmo burrice trocaram o fim almejado pela ideologia sonhada numa noite de verão carioca. Estranho porque o discurso é ‘a bicicleta pela bicicleta para a bicicleta’ e quando tiveram a chance de alavancar esta posição optaram pelo "é..., mas...". 

Não dá para manter o problema racial nesta loucura. Felizmente toda a sociedade está abrindo-se para uma discussão sadia e busca de soluções, mas discussão sadia e produtiva só chega a resultados produtivos sem agressões. 

Muito dos problemas que se agravam vem do péssimo exemplo vindo do Governo Federal, mas não só. Vem de toda a sociedade, sem exceção, sem exceção. Há uma gritaria contra o obscurantismo, contra os que negam a ciência, sim há, mas é gritaria e gritaria é na maioria das vezes improdutiva. Falta bom senso, técnica imprescindível para a existência de qualquer ciência.

Atirar pedras, mesmo em nome de uma causa justíssima, sem olhar o próprio telhado de vidro, nada mais estúpido.

Burrice é o que sobra neste país, de todas as partes. Não temos memória, não nos interessamos pela história – verdadeira, não nos interessamos pelas referências, “foda-se, eu quero agora, eu quero já!, eu quero da minha forma!”. Assim não dá!

É de uma burrice sem tamanho manter a panela de pressão em fogo alto. Estamos quase percebendo que há muito interesse em ter discurso político correto e não fazer nada. Há décadas a violência é insuportável e se passaram vários governos de esquerda que não conseguiram unificar os procedimentos e dados das polícias, básico do básico para o controle da violência endêmica que afeta pobres e negros, prendendo quem realmente deve ser preso, ou agilizar a justiça para diminuir a vergonha de ter mais de 30% de pobres e negros presos sem apoio da lei. Todos governos – eleitos, diga-se de passagem – não fizeram nada de efetivo, direita, esquerda, centro; e principalmente a população que os elegeu.

Empresas de segurança patrimonial são sucesso absoluto de mercado faz décadas não importando se há crise ou não. Interessante é que quanto mais estas empresas crescem e ganham mercado, mais problemas temos com segurança pública, mais gente discriminada, mais distanciamento social, mais... Alguém fala algo? Não interessa. Silêncio geral, direita, centro e esquerda. Tem que exterminar estas empresas de segurança patrimonial? Não, tem que controlar, tem que mostrar que existe Estado, representante do povo, presente. Quem se interessa?

E viajo eu, o maluco: não é a polícia, é tirar muros; não é segurança privada, é olhar para o outro e respeita-lo; não é a ciclovia, é a cidade; não é gritar, é tentar pensar...
Espero que a oportunidade que esta eleição nos dá não vá para o saco de lixo com o quebra-quebra no Carrefour.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Porque Marina não pedalava na ciclovia

Pelo menos não está no CTB que quando da existência de uma ciclovia o ciclista é obrigado a pedalar na ciclovia e proibido de pedalar na rua. Se estivesse a defesa do motorista que causou o acidente fatal para Marina provavelmente usaria. Marina tinha o direito de pedalar onde bem entendesse. Qualquer um tem este direito.

Branco contou que faz tempo uma menina foi assaltada na ciclovia da Sumaré com uma paulada no rosto. Teve que sofrer operações e ainda está com problemas no rosto. Continuou Branco, "Eu tenho medo de pedalar na ciclovia. Prefiro pedalar na rua, é mais seguro. Marina sabia desta história (a paulada na cara) e provavelmente estava pedalando na rua por causa disto. Não é só assalto, é violência contra a mulher". Depoimentos de próximos a Marina falam o mesmo.
Eu nunca me senti seguro em ciclovia, principalmente à noite. Quando tenho que ir ao apartamento de Teresa, perto do Parque Villa Lobos, vou pedalando na avenida Pedroso de Moraes. Por muita sorte numa noite não tomei um Audi na bunda que veio ultrapassando todos pela direita a uns 120 km/h. Também por muita sorte e em inúmeras ocasiões não me arrebentei pedalando na ciclovia vítima de acidente causado por ciclistas pouco civilizados.

As ciclovias pecam na sinalização vertical, horizontal, semafórica, o que creio tenha sido a causa da morte de Mariana, a jovem modelo que bateu num ônibus na esquina da av. Faria Lima com rua Chopin Tavares de Lima. Os semáforos para o ciclista e para a conversão do ônibus ficam juntos, um em cima do outro, o que causa confusão e acidentes.
 
A iluminação pública essencial para evitar assaltos, colisões e atropelamentos é ruim ou inexistente na maior parte das ciclovias. Usar a iluminação geral da rua ou avenida em algumas situações não basta para ciclistas e principalmente pedestres. A CET sabe disto e implanta iluminação especial para pedestres onde pode. Os resultados positivos não deixam dúvidas.   

Não fui assaltado numa ciclovia por que sou louco de pedra. Três pré adolescentes fecharam a ciclovia da Pedroso de Moraes no estilo filme de polícia americano. Quando entendi o que ia acontecer levantei a cabeça, olhei em direção a eles, dei um sprint acelerando o quanto pude pensando "Me arrebento, mas pelo menos um vai ficar estendido no chão, aí a brincadeira começa" e quando estava em cima abriram. Pedalei mais uns metros e parei, virei o corpo e me diverti com a expressão de pânico deles. Deram o fora rapidinho. Não pedalo no trecho da ciclovia Faria Lima próximo a av. Pedroso de Moraes nem que me paguem.  
Histórias de assaltos em ciclovias são inúmeras. Pouca gente se dá ao trabalho de fazer B.O. ou avisar a Polícia. Assim não dá.

Sei que ciclovias são necessárias, concordo com boa parte delas, mas cada dia mais e mais ciclistas têm medo de pedalar nelas. Algo está muito errado e tem que ser corrigido o mais rápido possível.

O Brasil perdeu mais uma rara inteligência. Não podemos nos dar a este luxo. 
Beijo Marina. 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O que será do julgamento do acidente que matou Marina?

Depois de muito tempo, mais de uma semana, fui até o local ver. Restou uma tênue mancha de sangue no concreto. Não foi no ponto que imaginei tendo como base as imagens aéreas mostradas na TV. Foi um pouco mais a frente, nos primeiros metros do viaduto da av. Paulo VI sobre a rua João Moura. 

A visibilidade de aproximação do motorista é ampla, limpa, frontal e lateral, auxiliada pela leve inclinação em declive e curvatura do terreno que permite ver o trânsito com clareza a boa distância. O sujeito estava dirigindo uma SUV média, alta, o que melhora mais ainda a visibilidade. Marina só estaria invisível se estivesse na sombra de um ônibus, caminhão, van, ou de uma SUV muito grande, mas um motorista atento perceberia o desvio de qualquer destes veículos. O motorista não viu Marina porque ou não estava prestando atenção no trânsito ou porque não tinha condição física de vê-la, ou as duas situações juntas? Estas situações são tipificadas pelo CTB como infrações, ou seja, culpa. 
Pelo estrago no vidro vai ser fácil saber o diferencial de velocidade entre a SUV e Marina. A pancada foi bem forte. Pelo ponto de impacto no para-brisa, próximo a coluna, é possível que ela tenha quebrado o pescoço. Duvido que um capacete faria diferença dado o afundamento no vidro. Estranho o espelho retrovisor próximo ao ponto de impacto estar inteiro.

Um detalhe que quase me escapa e é crucial: a SUV estava com os faróis acesos? Faz toda diferença. Marina tinha em sua bicicleta e vestimenta refletivos - que só refletem com a luz dos faróis. O CTB obriga a bicicleta ter refletores e não obriga lanterna e farol, o que considero correto e já comentei em outra postagem. O CTB diz de maneira clara que veículos automotores devem circular com faróis acesos à noite. Tem muito motorista que anda só com a lanterna, o que aumenta muito a probabilidade de um atropelamento (pedestre) ou de uma colisão com ciclistas. No CTB e na lei criminal deveria estar tipificado que em caso de acidente sem os faróis ligados o motorista é automaticamente culpado. 

Segundo o motorista as duas outras pessoas que estavam no carro não perceberam Marina antes e depois do impacto. Estranho a versão dada pelo motorista que não tenham olhado para trás para ver o que tinha acontecido. Fosse uma pedra atirada no para-brisa o instinto é olhar para trás para ver o que aconteceu. Se a defesa do motorista levantar esta hipótese há uma pergunta que mata a charada. E nada como uma boa acareação.

Já escrevi muitas vezes que deveríamos investir mais em perícia técnica e medicina legal, ou seja, na ciência criminal como instrumento de esclarecimento de causa morte. Não tenho sonho de seriados de TV, mas sonho dar o máximo de condição para fazer funcionar a contento o que é base para um julgamento justo. Não podemos continuar com o baixíssimo índice de esclarecimento de mortes violentas e acidentes de trânsito. Especulação por especulação, faço eu aqui. A justiça não pode margear esta possibilidade. Justiça e precisão devem andar abraçadas.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Renata Falzoni: 26074 votos para vereadora



Renata Falzoni não entrou. Os 26.074 votos, que a coloca como 33° mais votada em São Paulo, não foram suficientes para estar na próxima vereança. São 55 vagas, mas nosso sistema soma o número total de votos de cada partido para só então fazer a partilha e ver quem entra na Câmara dos Vereadores. Renata é a segunda suplente.

Colocando outros olhos nestes 26.074 votos o que dizer? Decepção? Com certeza. Suzaninha, que conhece melhor, diz que a votação foi expressiva. Pelo histórico de Renata foi expressiva?

A cidade tem milhões de cidadãos pedalando sempre que podem, adoram a bicicleta, mais centenas de milhares que pedalam para se transportar no dia a dia. Diferente do que pensam muitos isto não caiu do céu e muito menos foi obra do Haddad, mas resultado um processo longo muitas vezes doloroso. Renata Falzoni provavelmente foi a principal alavanca deste processo. Quem viveu o processo sabe; eu sei. 
O legado de Renata vai muito além da causa da bicicleta. Bate na vida de mais da metade da população; as mulheres, até mesmo as que não concordam com ela. Renata foi para aventuras e praticou esportes, muitos radicais, numa época que definitivamente não pegava bem para mulheres; e fez tudo divulgando em programas de TV e rádio que fizeram sucesso.
 
Fato é que não foi eleita uma das peças de mudança social mais importantes dos últimos 50 anos não só de São Paulo, mas deste país.

O povo do Brasil não tem memória. A sensação de muitos que fizeram algo por este país acaba num "fui um idiota". Triste. 

Espero que Renata esteja bem. Ela definitivamente merecia mais, muito mais. Ainda na campanha quando a própria me disse que precisava de uns 40 mil votos e que era difícil pensei "40 mil? Não é possível. Renata passa disto fácil". Ledo engano.

 O bom desta eleição foi a reprovação da população aos populismos mais perigosos, principalmente aos que se dizem direita e definitivamente não o são. O problema não é ser direita ou esquerda. O problema é ser fanático seguidor de um salvador da pátria. Aí dançemo!

sábado, 14 de novembro de 2020

Santa cabra

 "Todas cidades não têm suas ovelhas de Deus. Pois então, a nossa tem a cabra de Deus". Não era uma cabra, mas um bode, coisa estranha para quem leva muita Fé em Deus e não no diabo. 

Desde muito cedo a menina puxava para igreja a cabra, cá para nós um bode, algumas vezes meio que empacada. Entravam, menina sentava-se na primeira fila e a cabra se acomodava ao lado da imagem de São Francisco. "Santa cabra, nunca emporcalhou a igreja". Menina e cabra cresceram juntas, a cada dia mais religiosa, a já adolescente. Nas procissões ficaram conhecidas pelo povo e não tardou pela região. "Santas, sempre vêm com São Francisco ao lombo da cabra". 
Uma tose mal curada fez com que a jovem trabalhasse muito para comprar um pequeno aparelho de som para seguir pelas ruas rumo a missa cantando suas ladainhas. Tocava baixinho, coisa de quem reza para si e os seus. Passaram pelas ruas rumo a missa, a procissão local, e as que duas vezes ao ano se fazia ao Santuário. 
Numa primavera chuvosa o bode, diga-se cabra, adoeceu e subiu aos céus envolta de um pranto silencioso da jovem mulher. Foi levada ao cemitério em carroça puxada por um burro velho que não parou de zurrar. Dobraram as pernas da cabra, diga-se bode, e prenderam no centro da carroça como ovelha de presépio toda ornada por flores. Terminados os preparativos que a própria jovem fez com esmero, deu um último olhar para sua companheira de fé, virou as costas, passou a mão acariciando todo corpo do burro até pegar o cabresto, dar um último suspiro, e acompanhada de pais, irmãos, familiares e amigos de fé iniciar a última caminhada. Passou pelo povo consternado pelo bode que toda sua vida fizeram de cabra e em nome da pureza santa nunca pode pular a cerca como pela "santa" jovem que sempre foi cordial e gentil com todos. 
Nas missas não conseguia levantar a cabeça e os olhos, nem se levantar ou ajoelhar-se como pede os ritos da fé; talvez sequer ouvisse o padre. Luto que nunca terminava e preocupava a todos. Que não viessem lhe falar; nada adiantava. Aos afagos em sua cabeça levantava os olhos fundos e nenhuma palavra. 
"Vão em paz e que Deus os acompanhe", e como sempre fazia esperou que todos saíssem, aquele dia um pouco mais. Levantou-se, voltou-se para a saída e deu com a bicicleta do padeiro parada aos pés de São Francisco. A muito custo, e uma bicicleta nova, o povo e o próprio delegado convenceram o padeiro de não dar queixa do roubo a bicicleta. Os pães ficaram no banco da igreja intocados e com o véu do luto. Conversaram com a jovem e envelhecida mulher que todos dias lustrava a bicicleta guardada no cocho da santa cabra, leia-se bode. 
"Mas você não sabe sequer pedalar! Fazer o que com esta bicicleta?" disse a mãe.  
"Aprendo!". 
O pai furioso com aquela loucura que já muito durava soltou gritos em tom ameaçador "Bicicleta não é coisa para mulher. Lugar de mulher é na cozinha. Deus não há de querer você nesta bicicleta. Vá pra seu quarto, amanhã dou fim nesta bicicleta".
Agarrada à bicicleta fez silêncio, acalmou a respiração, secou as lágrimas, se recompôs colocando delicadamente as duas mãos no guidão. Olhou com carinho nos olhos da mãe e da irmã mais jovem ao lado e só então respondeu ao pai.
"Meu bode era santo. Nunca cagou na igreja ou aos pés de São Francisco. Você sempre chamou meu bode de cabra, pois então. Peço desculpas ao padeiro, já deveria, mas meu santo bode me enviou esta bicicleta. Ele entendeu minha solidão, você não".    
Saiu de casa, encontrou outra morada. Voltou aos ritos da missa. E teve as bençãos do padre quando foi vista pedalando com roupas do candomblé e pequeno bode empalhado de chifres vistosos na garupa. Sua mãe nunca mais fez a buchada que o pai tanto gosta; e nunca se tocou no assunto.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

A perda de Marina Harkot e os comentários sobre o acidente

Recebi a triste notícia da morte de Marina no início da noite de domingo e fui me informar.  UOL: Ciclista de 28 anos morre atropelada em SP; motorista fugiuTerminado a notícia fui para os comentários e fiquei mais triste que estava. O que está acontecendo? Uma coisa é opinião, outra é vomitar achismos e preconceitos. Está difícil ter esperança neste país, muito difícil.
Tive a pachorra de responder a um dos comentários que me causaram profundo assombro e voltei para casa atordoado pedalando numa noite agradabilíssima, cheia de estrelas. Certamente Marina estava por lá.
Muitas horas depois já em casa escrevi um comentário (a seguir) na UOL e tive um ataque de choro que não parou de doer fundo até muito tarde. Foi difícil dormir

Marina querida, fique bem. Carinho.

Comentário
Conversei com Marina uma única vez. De conversa inteligente, interessada e interessante lhe ofereci acesso a minha pequena biblioteca, em particular aos livros sobre a história das mulheres ciclistas e sobre bruxas. Um processo de inquisição no país Basco deu início ao fim a estúpida caça secular às bruxas porque o inquisitor, culto, curioso e inteligente, buscou a verdade dos fatos. Superstições, achismos, crendices perseguiram e seguem perseguindo mulheres e outras minorias, inclusive ciclistas. A saber, quanto o maior número de usuários de bicicleta melhor o IDH e mais rico é o país; quanto menor mais pobre - dados ONU. Muito triste com a perda de Marina e deprimido com os comentários que li. A principal razão para termos um país tão injusto e atrasado está no achismo. As mortes no trânsito são prova cabal disto. Marina optou por ler, estudar, pesquisar, pensar, buscar a verdade, ou seja dar um futuro ao Brasil. Obrigado Marina. Fará muita falta

Comentário do leitor Ronaldo lido logo após o recebimento da notícia:
A grande SP não é local para se andar de bicicleta . Uma somatória de problemas nos leva a essa situação: Geografia da cidade, falta de sinalização, iluminação precária , falta de educação no trãnsito (tanto dos motoristas quanto dos bikers), etc . Não adianta insistir. Quer andar de bike, ser cicloativista ou o que for, saia fora da grande SP. Claro que não se pode tirar a culpa do motorista que fugiu sem prestar socorro, foi errado e deve sofrer as penas pelo erro, mas, volto dizer, a Grande SP não é lugar para Bikes !

Minha resposta ao comentário:
Ronaldo, boa tarde. Sinto pela morte de Marina, quem tive o prazer de conhecer. Só com laudo pericial saberemos o que aconteceu e só assim poderemos evitar outras mortes. A fuga do motorista é inaceitável e nossas leis tem que ser realistas e endurecer. Populismo mata. Obscurantismo mata. A área onde Marina pedalava tem padrões de sinalização muito próximos ou iguais aos de várias capitais europeias. Quem diz que São Paulo não é local para bicicleta desconhece a realidade. Bicicleta, goste ou não sempre foi uma realidade paulistana nas periferias e a única novidade é a classe média pedalando. Nosso trânsito, digo Brasil, é uma carnificina por causa de achismos, da negação da realidade. O princípio básico de qualquer segurança está na ciência, no conhecimento, e principalmente no que for comprovado como realidade dos fatos. Marina lutava justamente para ter uma cidade mais humana, real; lia e não brincava de achismos.

Outros comentários publicados na UOL:
  • Desculpe, mas ela foi extremamente ingênua ao acreditar que andar de bike à noite em SP é minimamente viável. Não é, sem contar o fato de ser mulher e estar sozinha. Nesse caso isso não foi determinante, mas é um fator de risco altíssimo que não deve ser desprezado. Lamento muitíssimo por ela, sua juventude, sua vida ceifada assim tão brusca e violentamente. No entanto, acredito que isso deve servir de alerta para todos os ciclistas.
  • Com tanta pesquisa, não conseguiu descobrir que andar de bicicleta em SP de madrugada é suicidio.
  • Canhotas ciclistas que acham que a bicicleta deve ser acima de motos, ônibus etc. Não respeitam as leis de trânsito e ainda projetam ciclovias sem segurança, onde a bicicleta disputa na rua espaço com carros , caminhões e ônibus. Tá errado e deve se chamar ciclovia da morte
  • etc....
Deprimente o que vivemos. 

sábado, 7 de novembro de 2020

Vitória da sensatez

Já é noite aqui e estou vendo notícias sobre a vitória de Biden e Kamala Harris. Sei lá porque depois do almoço liguei a TV no exato momento que estavam noticiando a definição da eleição. Desandei a chorar de alegria e esperança. Me vesti e fui para rua gritar, passando como um insensato incompreensível louco para a maioria dos que me ouviam. Estranho, não esperava numa rua típica da esquerda e de gente esclarecida que "Biden ganhou, acabou, eleição definida" não provocasse gritos de apoio, alegria, e coro de protesto ao que vivemos. Um casal jovem sinalizou sua felicidade e uma senhora parada no cruzamento repicou com muito entusiasmo "Biden!" sinalizando positivo, e só. O mais, olhares, quando tanto.
Seguindo em frente e com uma subida para pedalar fui perdendo os fôlegos, do entusiasmo e dos pulmões. Deixa estar, desinteresse, foda-se, ou incapacidade para compreender o que a queda de um Trump significa me indaguei já suando a subida. "Eu queria estar lá", ouvi mais tarde. Confesso que eu também. Bem vindo Biden e Kamala, bem vinda a democracia, os direitos humanos e o respeito ao meio ambiente. Bem vindo o alento da sensatez.

Em 1986 ganhei de um dos funcionários do Banco Mundial que trabalhava no sertão Pernambucano um livro que fez muita diferença: To have or to be? do Erich Fromm, livro este que estou relendo agora. Foi editado e lançado em 1976 e é assustador sua leitura. É atual 44 anos depois ou estamos 44 anos defasados. Defasados com certeza.

Um comentarista político disse que esta eleição americana definiria muito do populismo no mundo. Populismo, de qualquer matiz, é o pior câncer que um planeta já em em UTI pode ter. Aliás, populismo é responsável montanhas de merdas de nossa história. A queda de Trump é muito mais que um voto de esperança. É a esperança que sensatez um dia vença.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Twzy e Amie, dirigir aos 14, e o futuro das cidades

Renault Twizy

Citroën Ami

São dois mini mini carros, leia-se microcarros, elétricos que não devem ser vistos como automóveis, mas como mobilidade urbana. Ou serão automóveis? O conceito de microcarros definitivamente não é novo, remonta aos primórdios do automóvel, mas estes dois microcarros em particular apontam não só para a salvação de um dos maiores e mais importantes setores industriais e econômicos de nossa era, como também dão um cheque (mate?) no sonho da construção de "cidades sem carro" tão gritada em utopias. Várias razões, mas uma em particular muito simples de entender: na França, país de origem dos dois microcarros, maiores de 14 anos com uma habilitação específica podem conduzir estes carrinhos elétricos. 14 anos? Sim, 14! Cheque mate! 

As micro mobilidades elétricas são apontadas como boa parte da solução para todos males de mobilidade urbana. Não caio nesta. Quem pedalou numa ciclovia cheia de micro mobilidades elétricas, bicicletas, patinetes, skates, pseudoscooters..., sabe o que falo. Vale para países e cidades onde a população respeita para valer as regras de trânsito. Não me sai da cabeça a raiva constante que passei tentando pedalar civilizadamente no centro histórico de Amsterdam. 

Diz-se que estes elétricos são menos poluição, maior rapidez e facilidade nos deslocamentos, menos uso de espaço público... É assim com toda novidade: uma maravilha... até que começam a surgir os porens. É esperar para ver. 

Os dois carrinhos, microcarros ou automóveis, como queira, confesso sem nenhuma vergonha que adoraria tê-los, não sei bem para que, mas tê-los-ia. Quem já dirigiu um carro elétrico ou híbrido sabe a delícia que é. Silêncio total com rapidez e suavidade, reconfortante para o sentimento de culpa de dirigir pelas ruas. Não precisa ir muito longe; estou cansado de ouvir "Você tem que experimentar uma bicicleta elétrica!" dito com um sorriso sincero e estimulante. Bicicleta elétrica: a ordem do dia. Seja elétrico ou você estará mais por fora que umbigo de vedete! Tem que seguir a manada. Desculpem, mas não quero. 

O uso de microcarros é livre na Europa para pessoas com problemas de mobilidade, idosos, cadeirantes e outros. São inúmeros fabricantes, mas todos em pequena escala, até pouco com modelos a combustão, de microcarros a microfurgonetas de diversos tamanhos. A maior furgoneta da Ligier tem um pouco mais de 3 metros, uma gracinha muito prática e eficiente, facilmente vista em capitais europeias. Meu pai quer trocar a Mercedes 4 portas por um destes microcarros ou até um carrinho de golf, mas a legislação brasileira não permite. 

O que Twzy e Ami têm de diferente é que por trás estão gigantes do setor, ou seja, produção em alta escala, custo final mais baixo, acessível. Mais, o Citroen Ami é um projeto modular, de uma simplicidade de construção maravilhosa, inteligentíssima, um caminho que ou a humanidade segue ou segue, ponto. Os pequenos fabricantes trabalharam e seguirão em nichos específicos de mercado. Para os gigantes interessa mercado, o povo, a massa, a cidade grande, capitais, uma escala completamente diferente com um impacto social muito maior, o quanto maior veremos, mas sem dúvida bemmmm maior. 

A verdade é que a mobilidade ativa vai entrar na era da briga de cachorro grande. Ou aprende a brigar ou vai ser do jeito deles. A brincadeira começou pelo "life is to good to drive a French car", soluções inteligentíssimas, mas de origem que traz consigo uma história de nariz torcido. Como será a brincadeira quando entrar urso grande na brincadeira? GM, BMW, VW, Toyota, Honda, Fiat... os chineses, que de urso não são nada panda e estão jogando pesado... 

E a cidade, como ficará? É uma total incógnita. Não depende mais do que pensávamos até pouco, mas desta pandemia e quem sabe de pandemias, se é que virão outras, uma possibilidade aventada por vários cientistas. Em qualquer cenário os microcarros parecem ser a única certeza: oferecem mobilidade com isolamento social; e o automóvel ressurge das cinzas. 

Com a popularização dos microcarros haverá ganhos para a cidade, dentre eles a diminuição do uso do espaço urbano, público e privado. Como são projetados para distâncias mais curtas é certo que a médio prazo modificarão os hábitos da população. E aí vem a pergunta: será mais um carro na garagem? Dependendo da política pública aumentará o abismo social e com ele alguns problemas das cidades. 

Mobilidade ativa é uma coisa, mobilidade elétrica é outra completamente diferente; e microcarro elétrico é automóvel, ponto.