segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Cidade brasileira; caos e segurança


A bicicleta me levou a cantos de várias cidades, do Brasil e do exterior, que normalmente um cidadão comum não vai, aliás, geralmente nem sabe que existe. A cidade existente de um cidadão comum é o trajeto que ele faz em seu carro ou transporte de massa, portanto é essencialmente a cidade das vias principais e do caminho para o trabalho, estudo ou diversão. O que está fora desta rota sequer é visto. A cidade fora dos hábitos é um território praticamente desconhecido. A quantidade de gente que nunca foi ao centro de suas cidades é muito grande. Parecido com criança que acha que só existe o frango congelado do supermercado. Frango vivo ciscando pode ser apavorante.

Várias pessoas foram levadas pela bicicleta a circular em uma cidade que lhes é bem pouco conhecida, até mesmo a que passa na porta do carro diariamente. Quem sai do carro, de suas pequenas janelas e alta velocidade, simplesmente fica impressionado com o local onde vive, seja para o bem ou o mal. A maioria descobre que a cidade, principalmente à noite, é muito mais simpática do que (não se) vê de dentro de uma caixa de vidros pretos. Normalmente o cidadão motorista que está pedalando quer ir descobrir, ou melhor, redescobrir o que já é conhecido; ou que acreditam que seja. Passar devagar, caminhando ou pedalando, pela avenida na qual estão fartos de ficar parados no congestionamento, já o máximo da emoção de novas descobertas. Conhecer a rua de cima ou de baixo, parar na praça, no boteco é mágico. Mas dificilmente aceitam entrar em locais desconhecidos, mais simples, ou passar por uma favela, uma área dita violenta, mesmo que você, guia experiente e respeitado, assine em baixo que conhece o pedaço e que ali não é o que se imagina ou dizem. Os que aceitam o “desafio” geralmente tem um choque de culturas e verdades.

Entrei algumas vezes em favelas. Uma delas no Rio de Janeiro, quando tive que levar uma empregada doméstica para casa porque estava com caxumba ou coisa semelhante. Quando me pediram o favor de subir a menina dei pulos de alegria pela chance de ver o morro por dentro. Na subida do Morro do Vidigal passamos por 4 revistas armadas dos traficantes. Como estava levando gente da comunidade seguimos sem problemas. A via, a medida que chegava mais próxima ao topo do morro, estreitava, trazendo uma apavorante claustrofobia até para um visitante acostumado a lugares estranhos. Os últimos quarteirões permitiam a passagem só de meu pequeno carro. Um caminhão ali, se passasse, passaria raspando as paredes dos casebres. A casa da menina ficava exatamente no topo, com uma incrível vista: de um lado São Conrado, d’outro Leblon e Ipanema. Deslumbrante. Quanta inveja. A riqueza da vista só permitida aos mais pobres, olheiros e comandantes do morro.

Na Paraisópolis, Morumbi, São Paulo, a situação foi diferente. Entrei com Jonas para fazer vistoria no trecho que deveria receber então o início de uma ciclovia que nunca saiu do papel, a Paraisópolis – Shopping Butantã / Eliseu de Almeida. Fora da favela umas poucas pessoas na rua, os carros que passavam apresados. Dois quarteirões a frente, já dentro da favela, gente tranqüila conversando ou caminhando, um comércio simples e variado, nem sinal de armas e traficantes. Quando começamos a tirar fotos veio alguém, um pau mandado, verificar o que estávamos fazendo lá, e só. Estava na cara que éramos alienígenas no pedaço e que o sujeito estava checando para os donos do pedaço. Eu e Jonas ficamos pasmados com a vida borbulhando ali e o contraste com o bem organizado, limpo, rico, sofisticado, cheio de seguranças e ao mesmo tempo absolutamente morto bairro que fica logo ao cruzar a rua de volta à civilização; seja esta o que quer que seja que a esta altura não sei mais.

O que você prefere? Que cidade queremos? Esta é a pergunta que me faço e que ouvi ser repetida por Henrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá e responsável direto maior transformação urbana destas últimas décadas. Peñalosa fez um comentário assustador: São Paulo, a cidade mais rica do país, não tem crianças circulando nas ruas. Deprimente! Nas favelas têm. Ironia, vida corre solta para os desprotegidos e é um presídio para os privilegiados. O sonho dos “bacana”, “gente fina”, é circular num carro blindado. Ou será brindado? A verdade blindada não leva a uma vida que deve ser brindada.

Contraste é o que mais há em nossas cidades. E como fazemos questão de não olhar o outro lado de nossos muros o que há no lado pobre é por princípio um conto de terror. Não é bem verdade. Onde está a cidade feliz? Onde estão as pessoas livres? Quem é livre? O que é liberdade? Não nos damos conta que o conto de terror real é não buscar melhorias para nossa própria vida e que este passo passa obrigatoriamente pela melhoria da vida do próximo, de todos e principalmente dos menos favorecidos. Não se trata de piedade, socialismo barato, mas de sensatez, de lógica. Melhorar a condição básica dos necessitados - leia-se melhorar a cidade - é o caminho mais curto e simples para chegar aos resultados que nós desejamos. Se quer se auto-proteger, ser egoísta, pelo menos seja com inteligência. Não existe solução para um lado só. Quanto melhor o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) geral, melhor a vida individual. Ou vamos todos, ou não vai ninguém. É escolher entre a burrice do blindado ou ser brindado pela vida.

A bicicleta me deixa cada dia mais ansioso sobre o futuro. Vejo cidades escondidas com grande potencial para construir uma vida melhor. O que muitas vezes parece uma baderna urbana nos dá inúmeras oportunidades. Duro é mudar uma cidade projetada, quadriculada, cartesiana, protegida, construída para fins específicos. Vide Brasília. Caos pode ser aproveitado, arranjado, transformado de várias formas. O que está petrificado, cercado, isolado, blindado, definitivamente arranjado, está doente, está dissociado da realidade da vida moderna, das urgências para o bem de todos. É necessário se abrir ao caos. Não precisa aceitar, mas pelo menos reconhecer e aproveitar ensinamentos para um novo conceito de segurança e felicidade. Afinal, uns tem morte por falta de segurança, bala perdida, brutalidade; outros comentem suicídio social por medo da vida, por medo da mudança. A bicicleta oferece a liberdade de ver e sentir o caos da vida com equilíbrio e sensatez. O carro dá a chance de passar rápido e não ver nada que desagrade. Dizem que bicicleta é insegura e que o carro é seguro. Depende muito, mas eu tenho mesmo é medo de andar de carro, muito medo. Estarei ficando louco?

2 comentários:

  1. Arturo,
    Esse seu texto é genial. Faltou só citar o Levi-Strauss francês, que disse que o Rio era o contra ponto do mundo. Os pobres vivem no alto e os ricos downstairs. E confirmo que circular de bike é mais seguro que de carro ! Abração

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  2. Belo desabafo Arturo. Confirmo que teus comentários são igualmente válidos em Curitiba e em Johanesburgo.
    Abraços!

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