terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Fé na santa bicicleta

Pedalando no final de tarde na ciclovia arborizada ouço vindo por trás a ladainha "Ave Maria, cheia de Graça, Senhor convosco" em voz pausada masculina repetida em ladainha feminina "Ave Maria, cheia de Graça, Senhor convosco"; "Bendita sois vós, Bendito é teu Fruto" no chamamento da voz masculina seguido em ladainha feminina "Bendita sois vós, Bendito é teu Fruto". Olho para rua e procuro um carro com alto falante; nada. A ladainha segue em alto e bom som. Lembro da igreja que está a algumas quadras, mas está longe. Olho para as casas procurando de onde vem aquele terço das cinco e nada. O som me segue e vai crescendo lentamente; não consigo entender. Passa por mim uma jovem mulher, lá pelos seus 20 e poucos anos, pedalando numa bicicleta com cestinha, caixa de som e muita compenetração na ladainha. 


Final de passeio, final de tarde, voltando do Ipiranga pelo Centro, Teresa pede para entrar na Igreja de São Francisco. Tio Lú acha ótimo, desviamos um pouco o caminho e damos com as duas igrejas abertas, a Paróquia Santuário de São Francisco de Assis e colada à Igreja das Chagas do Seráphico Pai São Francisco. Fico com as bicicletas, Tio Lú entra na igreja da Paróquia. Teresa o segue emocionada, ajoelhando-se a porta e segue caminhando respeitosamente até se perder no escuro. Me perco acompanhando os fiéis e não percebo quando saem os dois em silêncio. Param a minha frente e pedem que entre. Vou até a porta, faço minhas preces, volto digo que visitem a Igreja das Chagas, fico com as bicicletas, não se preocupem. Teresa bem emocionada dá seus passinhos determinados e é abordada por uma beata. 
"A senhora não pode entrar na igreja vestida desta forma", diz censurando enquanto estende a mão no ar para barrar Teresa vestida com bermuda e camisa de ciclismo. 
"Mulher mal comida é uma merda" dispara Teresa entrando na igreja sem parar e logo a frente ajoelhando-se em respeito ao São Francisco. 
A beata congelou, mão estendida aos céus como uma das Santas dos nichos.


Longe da represa viram as nuvens negras. Chuva vindo. "Vamos embora que tem muito caminho até em casa" gritou um dos ciclistas apontando para o horizonte pesado. Saíram pelo caminho mais rápido para os 35 km de retorno, contra o vento que trazia rapidamente o céu cinza chumbo ameaçador. O vento foi ficando cada vez mais carregado de poeira que doía no rosto, o pedalar a cada metro mais pesado, uns riam, outros reclamavam. "Ninguém fica para trás" gritou um deles e diminuíram mais ainda o ritmo para juntar-se. Uma garoa em diagonal gelada não escondia a nuvem revoltosa engrossando sua negridão assustadora já baixa e pronta para estourar. E justo no descampado, onde não havia abrigo, veio a chuva de gelo, pedrinhas doloridas picando os corpos, braços e pernas descobertos, que fez alguns amaldiçoarem o passeio, a bicicleta, os guias, outros rirem. "Vamos parar!". "Não tem onde, segue pedalando". "Tem uma ponte mais para frente. Corre, acelera que está doendo", respondeu um terceiro. "Graça a Deus estou de capacete"; "Careca" respondeu outro no meio da barulheira do vento furioso e das pedras batendo no asfalto. Ponte logo ali a vista, mas tão longe. Vento forte amainou pouco, as pedrinhas continuaram batendo dolorida nos ciclistas, o asfalto foi enchendo de água, e finalmente todos chegaram, um a um se protegendo, olhando a enxurrada debaixo da ponte e rindo, encharcados, uns tremendo de frio. "Estão todos bem?" perguntou o guia, e ouviu-se "Cara, o Tomas, peito de fora torcendo a camisa, está com rubéola", e olharam-se uns aos outros e desandaram a rir. "Seus idiotas, tenho um casamento amanha. Sou madrinha. Como vou aparecer cheia de manchas roxas? Quem vai acreditar que foi chuva de pedra? Vão dizer rubéola! rubéola!" E a gargalhada geral aqueceu a todos.


Sobem a escada de Basílica de Nossa Senhora de Aparecida dois jovens, um adolescente e outro um pouco mais velho, carregando suas bicicletas nos ombros. Veem minha bicicleta encostada, param ao meu lado e sinalizam um bom dia com a cabeça em respeitoso silêncio à missa já na metade. Olho para trás de novo e na escada vejo um homem juntando suas últimas forças para carregar a bicicleta escada acima. Os garotos viram para trás, olham-se e riem baixinho; "Matamos o velho", cochicha o mais velho voltando o olhar para dentro da basílica e rindo com os olhos. Respiração ofegante o pai encosta sua bicicleta que lhe serve de bengala, entre os filhos e eu. Olha para mim e mal consegue sussurrar um bom dia ofegante. O suor escorre como chuva de verão pela testa, a roupa está ensopada. O pai ordena que os filhos deixem as bicicletas entrem no Santuário. Digo que vá junto com eles que tomarei conta das bicicletas e ele vai. O "...que Deus os acompanhe" encerra a missa e a multidão passa por mim e as quatro bicicletas encostadas na imensa porta talhada em madeira. Não os vejo por um tempo. "Enfartou lá dentro" imagino. Saem compenetrados agradecem minha gentileza. Pergunto de onde vieram e para meu espanto descubro que foi bem distante e por uma estradinha de terra de romeiros a cavalo, quase dose horas pedalando, noite inteira de pedal e breu. "Você está muito bem" digo ao pai. "Não, não estou, mas faço tudo para tirar eles do computador e celular. Passei o dia de ontem dizendo para eles largarem e não me ouviram. Final da tarde convidei para um passeio e sem avisar peguei a estrada da romaria. Chegamos. Nem roupa para trocar tem, só dinheiro no bolso e a ajuda dos outros romeiros. Se não morrer na volta, minha mulher me mata." "Vocês pedalam sempre?" pergunto. "Nem eles, nem eu. Amanha não ando, nem sento. Vai ser uma desgraça, mas valeu". Os dois serelepes riram. "Mas quem avisou a mãe foi meu celular. Olha ela lá. Acho que tá brava." disse o mais novo enquanto o pai a procurava apavorado lá em baixo no estacionamento.

A fluidez subliminar

Ontem tive um arranca rabo sobre onde pedestre cruza a rua e onde deveria cruzar, leia-se onde estão as faixas de pedestres segundo meu interlocutor. Situação mais que comum pela cidade, as faixas de pedestres tiram, ou querem tirar, o pedestre de seu caminho natural para levá-lo, ou tentar obrigá-lo, a cruzar na faixa de pedestre. Se o caminho é uma linha reta porque cruzar três faixas de pedestre esperando dois semáforos abrir para chegar no mesmo lugar? O conceito básico usado pelas autoridades e engenheiros de trânsito continua e continuará sendo dar fluidez ao trânsito motorizado enquanto a população, leia-se os instruídos e motoristas, continuar acreditando que na faixa de pedestre o pedestre cruza mais seguro. Faz sentido, cruza mais seguro, mas será que a verdade é tão simples assim? Da forma como está nem sempre é verdade.

Lícia foi professora de etiqueta numa faculdade de turismo. Numa classe de mais de 70 alunos ela perguntou sobre como eles se sentavam à mesa numa festa ou comemoração de família e imediatamente percebeu a cara de "não entendi" da maioria. Acabou descobrindo que por uma série de razões, inclusive a inexistência de uma mesa propriamente dita, simplesmente nunca sentavam juntos. Não faziam a mais remota ideia sobre o que Lícia estava falando. A etiqueta social tão necessária para um bom trabalho de turismo tinha que ser ensinada a partir da realidade deles, não de uma senhora de elite. 
Com trânsito é igual. Querer que tenham comportamento de europeu sem compreender o sentido daquela coisa costuma não dar certo.

A maioria dos pedestres que circulam pela cidade vem da periferia, onde em muitos lugares não existe sequer calçada. Fora do centro expandido de São Paulo as vias principais, onde passa o trânsito mais intenso e o transporte coletivo, ou tem o mesmo traçado de caminhos de tropeiros, leia-se estradas sinuosas de fazendas seculares que foram loteadas, ou estão em várzeas de córregos. Nos dois casos a prioridade total é para o transporte motorizado, mesmo quando há faixas e até semáforos para pedestres. A fiscalização é voltada para a fluidez do trânsito, ponto. Pior ainda: a responsabilidade da calçada é do lote lindeiro, uma estupidez completa que ninguém muda e que faz do caminhar uma corrida de obstáculos. Enfim, tudo deseduca o pedestre da periferia. E aí vai querer que este cidadão esquecido, desprezado, cruze a faixa de pedestre do bairro chique e todo sinalizado onde as autoridades querem e não no caminho mais curto e racional? Piada!

O número de acidentes envolvendo motociclistas nas cidades do nordeste é assustador. É comum vê-los pilotando sem capacete e autoridades e imprensa caindo de pau no descumprimento da lei. Hospitais estão cheios muito por causa destes motociclistas. "Tem que usar capacete! As autoridades têm que fazer valer a lei!" Desculpem, mas qual é a piada? Autoridade? É respeitado quem respeita, e respeita quem ouve, entende o outro, aceita suas peculiaridades, o que não é o caso. Com esta soberba das autoridades não vai dar certo, estão enxugando gelo. 
Correto seria ter dados confiáveis sobre as causas dos acidentes, então selecionar os principais erros cometidos pelos motociclistas e priorizar. Comunicar na forma e no linguajar local vai ser mais eficiente que uma autoridade impondo regras e leis que são entendidas pelos Europeus.

A educação brasileira é um desastre porque é completamente desvinculada da realidade de seus alunos. O trânsito brasileiro repete os mesmos erros.


quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Crivella está preso? É mesmo?

Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo

Segundo o antropólogo Roberto DaMatta trânsito é reflexo da sociedade. Somos um povo que fura o semáforo vermelho e não sai do lugar quando abre o verde por que está no celular. Cravar o voto num Crivella qualquer se encaixa perfeitamente nesta lógica generalizada. O povo bate palmas quando são retirados os radares e mostra completa indiferença com os vergonhosos números de mortes violentas, mas querem justiça. Crivella, responsável pela pior administração pública que o Rio já teve, foi mandado para prisão domiciliar. Morre atropelado quem acredita que o sinal vermelho vai parar o motorista. E acredita quem quiser que Crivella não terá acesso a celulares e internet. Não vai mudar enquanto acreditarmos que tem Justiça que cola e Justiça que não cola.

O que você quer de Papai Noel?

"Feliz Natal" e a mulher sorrindo estendeu a mão com um pequeno presente regiamente embrulhado. "Você vai gostar. Está precisando". O marido lhe dá um beijo delicado na face, vai soltando o laço, olha nos olhos dela desembrulhando com cuidado e dá com uma pequena caixinha muito bem acabada. "Anel de 30 anos de casado?" pergunta a ela. Rompe o lacre com cuidado. "Um cortador de remédios? Um cortador de remédios?" admirado e rindo muito completa "Vocês estão vendo? Passei do estágio das meias e cuecas, agora cheguei no cortador de remédios."

A tia gorda só aparecia para as numerosas crianças depois que Papai Noel distribuir os presentes. Como qualquer criança inocente e feliz nunca se deram conta. A tia era adorada por todos em qualquer situação. Mandona, voz rouca por conta do cigarro, rápida nas respostas divertidas, fossem as duras broncas ou as de gozação. Era chamada, e se divertia com isto, de panetone do Natal, Papai Noel ansiosamente aguardado desde o nascimento do primeiro sobrinho neto, que agora eram oito.
"Papai Noel está chegando" gritou uma das mães e o agito das crianças foi total. Umas correram para a janela, outras foram para junto da porta, e dois irmãos sentaram-se como que obedientes onde Papai Noel abre seu saco vermelho cheio de presentes. Abriu-se a porta e a gritaria geral disparou. A velha tia gorda fez o ro ro ro tradicional caminhando para a cadeira de balanço que a aguardava. Uma das crianças pequenas mais afoita correu e agarrou a perna do Papai Noel por traz, que deu um passo em falso e começou a despencar quando foi aparada como possível por um dos pais. Saco e presentes voaram para um lado e para lá todos olharam, inclusive Papai Noel, e aí se ouviu gritos desesperados dos dois irmãos obedientes. Todos voltaram atenção para eles. Estavam apavorados, olhos fixos no Papai Noel, e todos voltaram seus olhos para a tia gorda com a barba branca na testa, o imenso sutiã no pescoço e as maravilhosas tetas natalinas a vista. 

"O que você quer de Papai Noel?" perguntou a repórter para a criança favelada.
"Quero que ele acabe com a pandemia para poder abraçar meus avós" respondeu para o desconserto da mãe e repórter. 
Baseado em fato real

O que você quer de Papai Noel?

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Natal


1995. Os preparos para o Natal correram mais de dois dias. Minha parte era ir pegando na rua, na padaria, mercado, frutaria, e até no armarinho da esquina, o que minha mãe pedia. E ajeitar detalhes, e antes de tomar banho montar o básico da mesa. Os finalmentes sempre ficaram a cargo da detalhista e muito caprichosa matriarca. Não era um Natal ostensivo, mas sutil, amoroso, maternal, com decoração pontual espalhada pelas salas e um presépio discreto em cima da cômoda do bar, não estilizado, personagens do tamanho de uma mão de criança, Jesus bebe braços abertos, Maria e José ajoelhados ao lado da manjedoura, ela cabeça levantada, olhos na criança, expressão de mãe cuidadosa, Reis magos próximos, uma vaquinha, um carneirinho, alguns patos, galinhas. 

Desci com Biba, nossa gorducha e bonachona beagle, para o último passeio antes da noite feliz. Abri o portão, ela veio atrás com seus passos lentos, girei para fechar o portão e vi o que parecia ser um rato parado no meio da calçada. E soltou um pio, e outro, e era um filhote de sabiá laranjeira perdido ali depois de seu primeiro voo. Biba olhou, torceu seu nariz farejando, e sentou-se desinteressada. "Quieta!" e coloquei lentamente a coleira no chão. Reabri suavemente o portão, contornei o filhote e o fiz sair pulando no sentido do portão aberto. Passou direto pelo portão e por Biba já deitada que acompanhou o passarinho com os olhos e um discreto levantar de orelhas. Contornei-o novamente e desta vez o fiz entrar pelo portão e seguir pulando para longe da calçada. Passeei rápido com Biba e voltei, e lá estava ele desamparado e quieto olhando para nós dois, eu e Biba. "Pelo menos não está no meio da rua. Aqui você vai estar seguro" pensei olhando para ele. Subi e contei a novidade para minha mãe. 
"Temos um passarinho, filhote de sabiá" 
"Que passarinho? Onde ele está? Está bem?" perguntou um pouco sobressaltada
"Está no corredor quieto meio escondido pelas plantas do vazo. Está bem. Deve ter descido do ninho voando e agora não consegue voltar."
"Telefona para a Carol veterinária para saber o que faz"
Seguindo as recomendações preparei a caixa com paninhos que aqueceriam o filhote, mais uma tampa de pote com água e um pedacinho de mamão. Coloquei-a protegida de gatos. O filhote me acompanhava parado, piando vez em quando. Joguei um pano leve sobre ele, peguei-o delicadamente e quando o soltei na caixa fugiu com energia. entrou voando raso por uma porta aberta e escondeu-se atrás de uma caixa. "Seja o que Deus quiser, não vou te estressar mais. Durma bem. Feliz Natal". Subi e dei o relatório para minha mãe. "Noite de Natal, amanha ele voa, nasce para a vida." respondeu ela com expressão esperançosa, mas preocupada. 

Fui para o banho, coloquei uma bela roupa. Apareci na sala e perguntei se precisava que fizesse mais algo. "Pega o gelo e coloca no bar", respondeu minha mãe. A campainha tocou e fui abrir a porta com o balde de gelo ainda na mão. "Feliz Natal. A noite começa bem" disse sorridente minha irmã tirando o balde de minha mão e entregando o bolo de nozes; "Coloca na geladeira" e entrou. Deixamos a porta entreaberta com sua maravilhosa guirlanda pendurada, tradição de família, e foram chegando, entrando, abraçando com mãos delicadas e olhos nos olhos brilhantes. Pouco depois de entrarem coloquei baixinho músicas clássicas natalinas e Jim Brickman. Fireside, define o que foi aquela noite.

Manhã seguinte desci com Biba para ver como estava o pequeno sabiá. Fui recebido por uma furiosa mamãe sabiá piando, cantando, chamando seu filhote não se via de onde. Desimpedi o caminho do filhote, me afastei pelo corredor, e vi a mãe sabiá descer do telhado, chamar insistente o filhote, que saiu de seu esconderijo e se aproximou da mãe. Abri o portão e fui caminhar com Biba, um rápido e preocupado passeio. Voltamos e os dois não estavam mais. Voaram. Subi e contei a boa nova para minha mãe. 
"Meu filho; agora sim, de fato Feliz Natal" e me chamou para um longo afetuoso abraço e beijo. Sentamos juntos e ficamos em comunhão de mãos dadas olhando pela grande e iluminada janela a copa da árvore e o céu azul.

Feliz Natal a todos. 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

quem controla é a população

Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo

O pessoal não consegue entender como se vai controlar o Natal inglês onde o Governo autorizou 3 famílias reunidas em uma única casa ou apartamento. A resposta é muito simples: quem controla são os vizinhos, é a população, e a conciência de coletividade. Se alguém perceber que a reunião natalina do visinho extrapolou o determinado pelo Governo chamará a polícia, disto não tenha dúvida. Básico em qualquer país civilizado.
Inexiste estabilidade e paz social se a população não aceitar regras e não forem eles próprios a implementar a ordem estabelecida. Inexiste a possibilidade de uma autoridade ou policial para controlar cada cidadão. 
Todas sociedades com altos índices de desenvolvimento social e econômico entenderam e aplicaram estes princípios, sem qualquer exceção. E todo país onde cada um faz o que acha que é certo e bom para o país dá errado, sendo ótimo exemplo Brasil. 
Um país se faz pelo seu coletivo, ou não há país. Natal com coesão social mesmo na panedemia é outra história.


Quando se tem coesão social há consciência do que é a cidade. Só a partir daí é possível fazer a transformação dos sonhos de todos e de cada um, ou de cada um e de todos, como queira. Esta matéria do NY Times é demais, em vários sentidos, até mesmo para quem não lê inglês: 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Clássico: esqueci a roda dianteira da bicicleta na garagem

Fazia muito tempo que não pegava a bicicleta de estrada. Muita ansiedade, abre mapa, fecha, pensa, programa, abre mapa, olha de novo, calcula o que fazer num dia, noutro e noutro mais. Pequeno trecho de rua de terra até chegar no hotel, sem problema, espaço no quarto, sem problema. Câmaras reservas, "Será que vai ter muito fiapo de pneu de caminhão no acostamento? Acho que não, passa pouco caminhão." Quanta ansiedade! Deito no travesseiro e começo o sono sonhando com a paisagem. 

Tchan! Clássico: esqueci a roda dianteira da bicicleta na garagem. Só dei conta quando tirei todas malas do carro. "Idiota!" Fim de brincadeira. Ou você ri da vida ou a vida ri de você. "Idiota! idiota!" Auto insulto não faz mal a ninguém. Está uma tempestade daquelas. Sigo rindo com minha idiotice, não resta o que fazer. Tomo folego, corro com guarda-chuva numa mão e malas noutra, abro a porta do chalé, largo as malas, dou meia volta, subo as escadas correndo até a recepção para pegar a bicicleta. "O senhor já olhou bem no carro? Esqueceu mesmo?" pergunta a recepcionista olhando a bicicleta sem roda e aí me dou conta que deixei a roda dianteira encostada na lateral direita do carro. "Merda! Manobrei na garagem. Onde caiu; onde os carros passam? Está inteira? Passaram por cima? Vou ter que pagar conserto de algum carro? Quanto vai custar a brincadeira? Quanto custa montar uma roda nova igual? Não vou conseguir outro aro igual..." e com a bicicleta no ombro desço correndo para o quarto. Com os pés ensopados a encosto com carinho na parede, encosto uma cadeira nela para que não seja derrubada por acidente, procuro o celular "Onde está? onde está?, onde está?". Rodeio, rodeio, mexo tudo e finalmente o encontro. Ligo para São Paulo, falo com o zelador, ele vai falar com o porteiro. "Seja o que Deus quiser." Bom tempo depois, incluindo subir de volta para o restaurante, engolir um bem sem graça X frango salada no francês melecado, olho no WhatsApp e acalmo; a roda está sã e salva. 

A chuva diminuiu, mas ainda cai gostosa, desço, pés ensopados, giro a chave, fecho o guarda-chuva, e finalmente me instalo no quarto. Adoro o barulho de chuvas e tempestades. Chuveiro quente, cama e durmo feito anjo. 

Acordo, vou tomar o café da manhã. Volto para o quarto e dou com a meia bicicleta encostada com cuidado na parede. Quanto custa um DHL? Ou compro uma roda por aqui? Consigo convencer alguém alugar uma roda dianteira? 

Saio com o carro. As ruas ainda estão molhadas pela tempestade que cruzou quase toda noite, mas daria para pedalar. A paisagem da Serra da Mantiqueira é linda e as estradas bem cuidadas. Em Serra Negra só tem bicicletarias simples; paro, olho e não vejo solução para meu caso. Vou para Águas de Lindoia menos de 20 km do hotel num sobe desce em zig-zag e paisagem maravilhosa para pedalar. DHL? Pelos dias que ficarei aqui vale a pena? 

Final de tarde sem chuva volto para o hotel e vejo a placa "piscina". Trouxe a sunga (quando falo maiô os netos riem e perguntam o que é isto?"), vou ver a piscina, opa, dá bem para nadar. Pouco depois estou nadando. Barbaridade! Quase um ano sem nadar virei âncora; uma piscina e paro para tomar fôlego, outra piscina e agarro-me à borda, e assim vou até pendurar a língua. Foram quatro dias de piscina e exaustão. Felizmente a roda da frente foi esquecida em São Paulo. Não daria conta de pedalar e nadar. Pandemia de merda!
Hotel Pousada Shangri-la; maravilhoso 

sábado, 12 de dezembro de 2020

Prioridade total para o essencial e a geração futura

Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo

O plano nacional de vacinação para a Covid 19 foi apresentado pelo Governo Federal ao STF e não à população. Divulgado por diversas agências de notícias e noticiários, prevê iniciar-se pelos idosos e só na quarta etapa imunizará pessoal de serviços essenciais. Mais, segundo matéria do próprio Estadão digital "o quantitativo não daria conta de imunizar nem 20% de todos profissionais de todo país". Absurdos e absurdos federais! Tenho netos, meus amigos têm filhos e netos, e o futuro destes e de toda população do país está em manter funcionando os serviços essenciais, sistema de saúde e todos ligados a educação do país. O JN divulgou uma pesquisa que aponta que parte da população não aceita vacinação obrigatória ou não quer ser vacinada. O futuro está, como sempre esteve, a história prova, não o que o indivíduo acha certo e pretende fazer, mas o que é correto fazer para o futuro do coletivo, todos. Prioridades. Mas o que fazer, a baderna é tanta que o JN terminou com uma nota dos cientistas que trabalharam no plano de vacinação nacional onde assinam que foi não lhes foi entregue o texto final para leitura; e fazendo a recomendação que faço aqui: prioridade para o essencial.
Eu, Arturo Condoí Alcorta, tenho 65 anos e como todo brasileiro que passou dos 60 e por qualquer razão saiu ou foi saído da ativa virei descartável, não interessando qual o saber acumulado pela vida. Prefiro deixar minha vacina para quem realmente possa ajudar o futuro deste Brasil.


sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Olha o que fala

- Como você quer morrer?

- Atropelado por um caminhão de lixo

- Caminhão de lixo? Para que?

- Assim até na hora da minha morte vou fazer meus amigos rirem. Imagine só no velório chega um com cara triste e pergunta "Do que ele morreu?" E o povo responde "De caminhão de lixo!". A risada vai ser geral.

Duas semanas depois da conversa um caminhão de lixo dobra a esquina sem dar seta e ele quase para debaixo das rodas. "Olha o que fala" pensou suando frio. 


Lixeiro pode passar a pá e varrer os restos da rua? Uai, economizaria no velório e enterro.



Vou extrair um pré molar. É o segundo dente que perco por causa do bruxismo. O primeiro parti em quatro, este parti em dois, estou progredindo. E vem à cabeça todo tipo de pensamento, quantos piores melhor. Vai doer, vai sangrar, não vou poder comer por alguns dias, quanto tempo vai durar... E a morte de uma amiga lá pelos anos 70 vem à tona. Lembro da beleza radiante daquela jovem baixinha, corpo perfeito, rosto radiante de conversas inteligentes, mas sou incapaz de lembrar seu nome. Foi extrair um dos sisos, operação mais que trivial, e ficou na cadeira. Ela tinha uma má formação e o dentista não pode fazer nada a não ser tentar desesperadamente deter a hemorragia que jorrava sangue pelo consultório em golfadas até que a vida dela esvaísse por completo. Do telefone de disco a enfermeira em surto histérico aos uivos ainda tentou chamar ajuda, mas não chegaram a tempo. Nem o laudo do IML que revelou a má formação limpou o trauma do dentista. 

Final da tarde sento eu na cadeira para extrair o pré molar. De fato a única preocupação é se tenho sorte e o dente partido sai inteiro. O que partiu em quatro saiu aos pedaços e foi um problema para a dentista. Fui proibido por todos de ir para o dentista pedalando, não pela ida, mas pela volta. Saco! vou ter que pegar táxis.

Não me preocupa o dentista. Hoje todos usam óculos de proteção. Em 1970 e poucos o dentista não só deve ter ficado com a cara toda ensanguentada, mas também cego por uns instantes.


"Olha a língua!" Melhor, olha os pensamentos negativos. Não se guie por eles; aprenda com eles. 

Estranho dizer, mas agradeço ter sentido a morte do ciclista em minhas mãos na cabeceira da Ponte Cidade Jardim. Era um meio de tarde, vi a confusão de longe e logo o ciclista estendido no asfalto junto a sua bicicleta retorcida. Um pouco a frente um carro parado com seu motorista cabisbaixo sendo consolado por outro motorista. "Acabou de acontecer" me responderam enquanto parava a bicicleta e sentava no asfalto para ver como o ciclista estava. Seu pulso parou em minhas mãos e lá fiquei para acompanhá-lo na sua passagem. Era uma tarde agradável. Olhei em volta e aprendi ali mais um pouco do que é a vida. 


Hoje de noite vou colocar meu pré molar debaixo do travesseiro para ver se nunca mais quebro outro dente.

Dentro de uns dias volto a pedalar, correr, e comer.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Pedalar nas ruas é perigoso: verdade ou mentira. Goebbels responde.

Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo

"Uma mentira contada mil vezes se tornará verdade" disse Joseph Goebbels, responsável pela comunicação nazista. Esta técnica de comunicação sempre foi usada com boas ou más intensões. Hoje temos as 'fake news' que fazem o lugar de Goebbels. As barbaridades ditas por Trump e seu dito amigo Bolsonaro que o digam. 
A pandemia que estamos vivendo está deixando muito claro o que é verdade e o que é mentira, e quais as consequências de acreditar em um ou outro. Acreditar em mentira mata - literalmente! 
Quem trabalha com segurança, a verdadeira, a que previne acidentes, diz que "o pior perigo é acreditar em besteira". Espero que estejamos aprendendo isto a custo de vidas.

"Pedalar nas ruas é muito perigoso". Esta e outras besteiras mais foram e continuam ditas mil vezes tanto para chamar a atenção do Poder Público para a questão da bicicleta quanto para encobrir as besteiras que os próprios ciclistas sempre fizeram e continuam fazendo quando pedalam nas ruas.  
"Todo veículo mal conduzido é perigoso" diz Luiz Dranger com toda razão. Estranho que há ciclistas que passam anos sem sofrer um único acidente. Devem ser muito sortudos, abençoados por Deus. Ou não, estou falando besteira? Será que conduzem a bicicleta com a técnica correta, respeitando regras e tomando cuidados básicos? 

Aulus Selmer lá pelas 7:00 h. dá ótimas dicas sobre saúde e bem estar na Rádio Eldorado. Gosto e recomendo. Não faz muito desandou a falar sobre bicicletas e pedalar na cidade. Sou velho neste negócio e reconheço um novato a distância até pelo cheiro. Hoje Aulus soltou que está se transportando em bicicleta e considera perigoso, um direito dele. Falando numa rádio que tem bem mais de 100 mil ouvintes precisa ter um pouco de cuidado com o que fala, ou justificar em cima de dados, não de achismos. 
Sobre justificar com dados recomendo a leitura de "Como mentir com estatísticas; de Darrel Huff", um clássico. 

O problema de um erro, melhor, de uma informação incompleta e tendenciosa repetida mil vezes é que acaba desviando da verdade, do que dá bons resultados, da verdadeira segurança. Pedalar pelas ruas é perigoso? Depende de uma série de fatores. O primeiro, ponto de partida, é se você tem disposição para pedalar com segurança. Se NÃO tem disposição, pedalar vai sempre ser perigoso, aconteça o que acontecer, por que o ciclista sempre estará propenso a cometer erros; está provado e comprovado através de dados precisos e da ciência, a de verdade. Segurança no trânsito é ciência. Brasil é o país do achismo por isto temos este banho de sangue.

Meia verdade é meia verdade ou mentira? Depende do fim.

Muito dos problemas que temos, brasileiros, com segurança, não só no trânsito, decorrem de mentiras repetidas mil vezes. Mentira tem pernas curtas, um dia é pega e abre-se a verdade. Mas mentira atávica pode perenizar no povo. Que vida você quer? Que Brasil queremos? Talvez na terra plana dos bolsonaristas pedalar seja seguro - longe das bordas.

Quais são os interesses que existem por trás do "pedalar nas ruas é perigoso"?

Recebi uma dica de que deveria colocar um link sobre a forma correta de pedalar no trânsito. Dica mais que preciosa por duas razões. Eu pressupus que meus leitores têm as mesmas informações que tenho, o que o primeiro erro. 

No trânsito pressupor que os outros estão na mesma frequência que você é muito perigoso. Nunca pressuponha nada, sempre se comunique correta e antecipadamente com os outros. Em quase 100% dos casos não foi o outro que não entendeu, foi você que não soube se comunicar. Parta deste princípio e sua segurança será muitíssimo maior sempre.

Lá vai o link: http://escoladebicicleta.com/notransito.html

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Microcarros não são novidade.


Goggomobil 1950. 
atrás em verde um Messerschmitt

Messerschmitt, Vespa, Isetta

Fiat 500, o original de 1957

Perua inglesa Moris Minor Traveller 1958, estacionada atrás de uma SUV média.
A Traveller 58 era a SUV do pós guerra. Aço em falta; traseira construída em madeira.


Mini Moris, 1959, o original, primeiro carro com motor e câmbio transversais,
muito pequeno por fora, muito espaçoso por dentro.
Revolucionário, "a" referência para todas os pequenos até hoje 

O conceito de microcarro não é nenhuma novidade, muito pelo contrário. Carros populares até quase duas décadas do pós Segunda Guerra Mundial, quando cidades e sociedade foram destruídas, foram mais comuns que se possa imaginar. 
Com o tempo os automóveis foram crescendo de tamanho até chegar ao que temos hoje, modelos muito maiores e sofisticados que os de sua origem. Alguns exemplos são gritantes, como a comparação entre o Renault Clio original e o que acaba de ser lançado na Europa. Bombou total!

Os automóveis cresceram por diversas razões, principalmente para atender os padrões de segurança exigidos atualmente. A construção de um automóvel moderno é infinitamente mais complicada e sofisticada que a de um do pós Guerra. O melhor exemplo de simplicidade é o Citroen 2CV, um projeto extremamente simples e funcional. Tem um destes programas de TV americanos sobre restauração de automóveis, a maioria americanos, e lhes foi entregue um 2CV. Os profissionais não entenderam nada, nunca haviam visto algo tão simples, com tão poucas peças, tão funcional.  

A genialidade do Citroen Ami elétrico que acaba de ser lançado está em sua extrema simplicidade. As consequências começam no impacto ambiental da produção, passam por uma reeducação minimalista do motorista e passageiro, e termina numa mais sensata interferência na vida das cidades que temos. Citroen Ami remete ao 2CV: os dois são meio de transporte com definições claras sobre público usuário e meio ambiente. 2CV foi criado para transportar uma família do campo sem quebrar os ovos (de galinha). O Ami olha a realidade da população urbana, das cidades de nossos dias e do futuro. 

Citroën 2CV 1948, revolucionário, extremamente simples e funcional,
e barato, mas a fábrica não conseguia entregar

Citroën Ami 2020, todo modular, para duas pessoas. 


Origens e referências

Micro carro para um passageiro; virada do século XIX
Deutsches Museum Verkehrszentrum


Messermischt: condutor com passageiro em tandem
Deutsches Museum Verkehrszentrum

Protótipo de triciclo revolucionário
Deutsches Museum Verkehrszentrum

Scooter BMW, saiu de produção, mas genial.
Condutor tem cinto de segurança 4 pontos

Renault Twizy, para dois em tandem. 
Passageiro vai atrás do motorista

Twzy evolui a ideia do Messerschmitt.
A scooter BMW é a evolução da Vespa.
Micronilo evoluiu da Isetta


Isetta e Microlino
Tamanho parecido, funcionalidade não


Microlino, mais caro e mais rápido que Citroen Ami

A Isetta original (conhecida no Brasil como Romi Isetta) tem 3,035 metros de comprimento, 60 cm maior que o Citroen Ami. Era Movida a motor de 2 tempos, muito poluente e barulhento, tinha opções de 245 cc com 13.6 hp a 400 cc com 18.5 hp, alcançadas em alta rotação, ou seja, ou se dirigia meio pé na tábua ou não ia. Não encontrei o peso, mas imagino que esteja por volta de pelo menos uns 500 kg (mais de 25 kg por hp). Traduzindo: Estes microcarros pós Segunda Guerra Mundial eram carros muito lentos, fracos, praticamente inaceitáveis para os padrões atuais. Eram chatos de dirigir, mas divertidíssimos. Como termo de comparação, uma moto Honda CG 150 tem 14.3 hp e deve pesa 117 kg 0.800 kg por hp). 
A nova Isetta elétrica, a Microlino da Micro, conhecida pelos seus patinetes, pesa 513 kg. A original (Romi) Isetta pesa 350 kg. A diferença de dirigibilidade entre as duas é tão grande que é impossível entender para quem nunca sentou na Isetta. Sentei, andei, e eu e Ciro, meu primo, rezávamos para chegar na próxima esquina, e ríamos muito, muito mesmo. 

taxi elétrico londrino aproximadamente 1890

Micro carro elétrico comum em grandes cidades

Recomendo ver esta matéria da https://www.noticiasautomotivas.com.br/fiat-500/ que mostra as diferenças entre os projetos do Topolino e do 500. Aí dá para entender como a indústria automobilística foi racionalizado o projeto para otimizar o uso e função de cada espaço.

Que Forças Armadas temos?

Fórum do Leitor 
O Estado de São Paulo

Os militares que atuam no Governo Bolsonaro mais que manchar a imagem das Forças Armadas do Brasil deixam uma profunda preocupação com a capacidade destas vitais instituições nacionais em cumprir sua missão constitucional de zelar pela defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa destes, da lei e da ordem. Só cumpre sua missão quem tem qualidade e sabe usa-la com inteligência, o que não é o caso dos militares do Governo Bolsonaro, nossa referência do comando das Forças Armadas. "Uma coisa é muito clara: se a política entra pela porta da frente de um quartel, a disciplina e hierarquia saem pela porta dos fundos" disse Mourão com conhecimento de causa. Não é um caso só de política. Disciplina e hierarquia só são possíveis quando há autoridade reconhecida e respeitada pelos seus méritos. Quem é bem preparado atua com eficiência mesmo em campos desconhecidos. A ineficiência gritante, até no estabelecimento de logística de vacinação da população, faz pensar e assusta. Que Forças Armadas temos?

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Maradona e Argentina

Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo

Sou Condomi Alcorta, família argentina, filho, neto, bisneto... de argentinos. 

Para mim Maradona é a tradução mais perfeita do que é a Argentina, do que foi sua história, suas glórias, suas desgraças. 

É comum ouvir em Buenos Aires que "Gardel canta cada dia melhor", Carlos Gardel, cantor de tangos, morto em 1935. 

O que já se diz sabemos, mas o que se dirá sobre Maradona agora que ele se foi? 

Argentina chegou a ser o 5º país mais rico do planeta no pós Segunda Guerra Mundial. Com o populismo de Peron começou a desintegrar. Em 1973, quando Peron voltou triunfante do exílio e foi reeleito Presidente, Argentina tinha 4% da população na linha de pobreza. Muito instável, submerso em múltiplos peronismos, de todo matiz, até dos que são oposição ferrenha, Argentina hoje chegou a 40% da população abaixo da linha de pobreza, uma tristeza sem fim. 

Vendo as imagens do velório e do cortejo de Maradona cortando Buenos Aires fica inevitável fazer um paralelo com as homenagens para Airton Senna, talvez uma tradução das diferenças entre os dois países e suas populações.

sábado, 21 de novembro de 2020

Burrice generalizada no balde de sangue do assassinato de João Beto

O Estado de São Paulo
Fórum do Leitor

O assassinato de um cidadão negro no Carrefour de Porto Alegre disparou uma série de protestos, com os quais concordo. Estou na frente da TV vendo o apedrejamento e parcial destruição do Shopping Jardim Pamplona, na rua Pamplona próximo à rua Estados Unidos, onde há um Carrefour, com que não concordo em grau, gênero e número. Completa burrice.

Alguém já ouviu falar de Mahatma Gandhi?

Faz muito que deveríamos ter controlado a violência generalizada que afeta em cheio as populações de baixa renda, que em sua maioria é de origem africana. Uma hora iria ter uma gota d'água e o assassinato de João Beto no dia da Consciência Negra foi um balde de sangue transmitido por todas as mídias. 

Estávamos tendo um segundo turno tranquilo aqui em São Paulo com Boulos e Covas propondo e discutindo com civilidade. É óbvio que o acontecido no Carrefour Pamplona terá efeito na campanha de Boulos e mesmo não sendo eleitor dele fico muito triste. Para sair desta baderna que vivemos necessitamos de diálogo, de troca de ideias, de sensatez. Não concordo com alguns posicionamentos de Boulos, em especial o apoio a invasão de áreas públicas, mas concordo em grau, gênero e número que se deve dar mais atenção ao pessoal mais vulnerável, incluindo ai a classe C. 

Escrevi sobre minha tristeza com a não eleição de Renata Falzoni e o tema vem a calhar agora. Renata não foi eleita porque teve muita gente que não votou nela porque a candidatura veio pelo PV e não em partidos de esquerda mais puros (?). Não tenho dúvida que não votar em Renata foi um erro estratégico. Aos ideológicos lembro ou aviso, como queiram: "Em bicicleta se vai ao socialismo". Quem não entendeu perdeu. Um dos elementos básicos usados para a transformação dos cidadãos e suas cidades mundo afora foi, é e continuará sendo a bicicleta porque ela leva os cidadãos a comportamentos sociais e ambientais que sempre foram e continuam sendo elementos básicos da proposta de equilíbrio e justiça social, linha mestre do socialismo. Pela mais pura falta de maturidade ou mesmo burrice trocaram o fim almejado pela ideologia sonhada numa noite de verão carioca. Estranho porque o discurso é ‘a bicicleta pela bicicleta para a bicicleta’ e quando tiveram a chance de alavancar esta posição optaram pelo "é..., mas...". 

Não dá para manter o problema racial nesta loucura. Felizmente toda a sociedade está abrindo-se para uma discussão sadia e busca de soluções, mas discussão sadia e produtiva só chega a resultados produtivos sem agressões. 

Muito dos problemas que se agravam vem do péssimo exemplo vindo do Governo Federal, mas não só. Vem de toda a sociedade, sem exceção, sem exceção. Há uma gritaria contra o obscurantismo, contra os que negam a ciência, sim há, mas é gritaria e gritaria é na maioria das vezes improdutiva. Falta bom senso, técnica imprescindível para a existência de qualquer ciência.

Atirar pedras, mesmo em nome de uma causa justíssima, sem olhar o próprio telhado de vidro, nada mais estúpido.

Burrice é o que sobra neste país, de todas as partes. Não temos memória, não nos interessamos pela história – verdadeira, não nos interessamos pelas referências, “foda-se, eu quero agora, eu quero já!, eu quero da minha forma!”. Assim não dá!

É de uma burrice sem tamanho manter a panela de pressão em fogo alto. Estamos quase percebendo que há muito interesse em ter discurso político correto e não fazer nada. Há décadas a violência é insuportável e se passaram vários governos de esquerda que não conseguiram unificar os procedimentos e dados das polícias, básico do básico para o controle da violência endêmica que afeta pobres e negros, prendendo quem realmente deve ser preso, ou agilizar a justiça para diminuir a vergonha de ter mais de 30% de pobres e negros presos sem apoio da lei. Todos governos – eleitos, diga-se de passagem – não fizeram nada de efetivo, direita, esquerda, centro; e principalmente a população que os elegeu.

Empresas de segurança patrimonial são sucesso absoluto de mercado faz décadas não importando se há crise ou não. Interessante é que quanto mais estas empresas crescem e ganham mercado, mais problemas temos com segurança pública, mais gente discriminada, mais distanciamento social, mais... Alguém fala algo? Não interessa. Silêncio geral, direita, centro e esquerda. Tem que exterminar estas empresas de segurança patrimonial? Não, tem que controlar, tem que mostrar que existe Estado, representante do povo, presente. Quem se interessa?

E viajo eu, o maluco: não é a polícia, é tirar muros; não é segurança privada, é olhar para o outro e respeita-lo; não é a ciclovia, é a cidade; não é gritar, é tentar pensar...
Espero que a oportunidade que esta eleição nos dá não vá para o saco de lixo com o quebra-quebra no Carrefour.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Porque Marina não pedalava na ciclovia

Pelo menos não está no CTB que quando da existência de uma ciclovia o ciclista é obrigado a pedalar na ciclovia e proibido de pedalar na rua. Se estivesse a defesa do motorista que causou o acidente fatal para Marina provavelmente usaria. Marina tinha o direito de pedalar onde bem entendesse. Qualquer um tem este direito.

Branco contou que faz tempo uma menina foi assaltada na ciclovia da Sumaré com uma paulada no rosto. Teve que sofrer operações e ainda está com problemas no rosto. Continuou Branco, "Eu tenho medo de pedalar na ciclovia. Prefiro pedalar na rua, é mais seguro. Marina sabia desta história (a paulada na cara) e provavelmente estava pedalando na rua por causa disto. Não é só assalto, é violência contra a mulher". Depoimentos de próximos a Marina falam o mesmo.
Eu nunca me senti seguro em ciclovia, principalmente à noite. Quando tenho que ir ao apartamento de Teresa, perto do Parque Villa Lobos, vou pedalando na avenida Pedroso de Moraes. Por muita sorte numa noite não tomei um Audi na bunda que veio ultrapassando todos pela direita a uns 120 km/h. Também por muita sorte e em inúmeras ocasiões não me arrebentei pedalando na ciclovia vítima de acidente causado por ciclistas pouco civilizados.

As ciclovias pecam na sinalização vertical, horizontal, semafórica, o que creio tenha sido a causa da morte de Mariana, a jovem modelo que bateu num ônibus na esquina da av. Faria Lima com rua Chopin Tavares de Lima. Os semáforos para o ciclista e para a conversão do ônibus ficam juntos, um em cima do outro, o que causa confusão e acidentes.
 
A iluminação pública essencial para evitar assaltos, colisões e atropelamentos é ruim ou inexistente na maior parte das ciclovias. Usar a iluminação geral da rua ou avenida em algumas situações não basta para ciclistas e principalmente pedestres. A CET sabe disto e implanta iluminação especial para pedestres onde pode. Os resultados positivos não deixam dúvidas.   

Não fui assaltado numa ciclovia por que sou louco de pedra. Três pré adolescentes fecharam a ciclovia da Pedroso de Moraes no estilo filme de polícia americano. Quando entendi o que ia acontecer levantei a cabeça, olhei em direção a eles, dei um sprint acelerando o quanto pude pensando "Me arrebento, mas pelo menos um vai ficar estendido no chão, aí a brincadeira começa" e quando estava em cima abriram. Pedalei mais uns metros e parei, virei o corpo e me diverti com a expressão de pânico deles. Deram o fora rapidinho. Não pedalo no trecho da ciclovia Faria Lima próximo a av. Pedroso de Moraes nem que me paguem.  
Histórias de assaltos em ciclovias são inúmeras. Pouca gente se dá ao trabalho de fazer B.O. ou avisar a Polícia. Assim não dá.

Sei que ciclovias são necessárias, concordo com boa parte delas, mas cada dia mais e mais ciclistas têm medo de pedalar nelas. Algo está muito errado e tem que ser corrigido o mais rápido possível.

O Brasil perdeu mais uma rara inteligência. Não podemos nos dar a este luxo. 
Beijo Marina. 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O que será do julgamento do acidente que matou Marina?

Depois de muito tempo, mais de uma semana, fui até o local ver. Restou uma tênue mancha de sangue no concreto. Não foi no ponto que imaginei tendo como base as imagens aéreas mostradas na TV. Foi um pouco mais a frente, nos primeiros metros do viaduto da av. Paulo VI sobre a rua João Moura. 

A visibilidade de aproximação do motorista é ampla, limpa, frontal e lateral, auxiliada pela leve inclinação em declive e curvatura do terreno que permite ver o trânsito com clareza a boa distância. O sujeito estava dirigindo uma SUV média, alta, o que melhora mais ainda a visibilidade. Marina só estaria invisível se estivesse na sombra de um ônibus, caminhão, van, ou de uma SUV muito grande, mas um motorista atento perceberia o desvio de qualquer destes veículos. O motorista não viu Marina porque ou não estava prestando atenção no trânsito ou porque não tinha condição física de vê-la, ou as duas situações juntas? Estas situações são tipificadas pelo CTB como infrações, ou seja, culpa. 
Pelo estrago no vidro vai ser fácil saber o diferencial de velocidade entre a SUV e Marina. A pancada foi bem forte. Pelo ponto de impacto no para-brisa, próximo a coluna, é possível que ela tenha quebrado o pescoço. Duvido que um capacete faria diferença dado o afundamento no vidro. Estranho o espelho retrovisor próximo ao ponto de impacto estar inteiro.

Um detalhe que quase me escapa e é crucial: a SUV estava com os faróis acesos? Faz toda diferença. Marina tinha em sua bicicleta e vestimenta refletivos - que só refletem com a luz dos faróis. O CTB obriga a bicicleta ter refletores e não obriga lanterna e farol, o que considero correto e já comentei em outra postagem. O CTB diz de maneira clara que veículos automotores devem circular com faróis acesos à noite. Tem muito motorista que anda só com a lanterna, o que aumenta muito a probabilidade de um atropelamento (pedestre) ou de uma colisão com ciclistas. No CTB e na lei criminal deveria estar tipificado que em caso de acidente sem os faróis ligados o motorista é automaticamente culpado. 

Segundo o motorista as duas outras pessoas que estavam no carro não perceberam Marina antes e depois do impacto. Estranho a versão dada pelo motorista que não tenham olhado para trás para ver o que tinha acontecido. Fosse uma pedra atirada no para-brisa o instinto é olhar para trás para ver o que aconteceu. Se a defesa do motorista levantar esta hipótese há uma pergunta que mata a charada. E nada como uma boa acareação.

Já escrevi muitas vezes que deveríamos investir mais em perícia técnica e medicina legal, ou seja, na ciência criminal como instrumento de esclarecimento de causa morte. Não tenho sonho de seriados de TV, mas sonho dar o máximo de condição para fazer funcionar a contento o que é base para um julgamento justo. Não podemos continuar com o baixíssimo índice de esclarecimento de mortes violentas e acidentes de trânsito. Especulação por especulação, faço eu aqui. A justiça não pode margear esta possibilidade. Justiça e precisão devem andar abraçadas.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Renata Falzoni: 26074 votos para vereadora



Renata Falzoni não entrou. Os 26.074 votos, que a coloca como 33° mais votada em São Paulo, não foram suficientes para estar na próxima vereança. São 55 vagas, mas nosso sistema soma o número total de votos de cada partido para só então fazer a partilha e ver quem entra na Câmara dos Vereadores. Renata é a segunda suplente.

Colocando outros olhos nestes 26.074 votos o que dizer? Decepção? Com certeza. Suzaninha, que conhece melhor, diz que a votação foi expressiva. Pelo histórico de Renata foi expressiva?

A cidade tem milhões de cidadãos pedalando sempre que podem, adoram a bicicleta, mais centenas de milhares que pedalam para se transportar no dia a dia. Diferente do que pensam muitos isto não caiu do céu e muito menos foi obra do Haddad, mas resultado um processo longo muitas vezes doloroso. Renata Falzoni provavelmente foi a principal alavanca deste processo. Quem viveu o processo sabe; eu sei. 
O legado de Renata vai muito além da causa da bicicleta. Bate na vida de mais da metade da população; as mulheres, até mesmo as que não concordam com ela. Renata foi para aventuras e praticou esportes, muitos radicais, numa época que definitivamente não pegava bem para mulheres; e fez tudo divulgando em programas de TV e rádio que fizeram sucesso.
 
Fato é que não foi eleita uma das peças de mudança social mais importantes dos últimos 50 anos não só de São Paulo, mas deste país.

O povo do Brasil não tem memória. A sensação de muitos que fizeram algo por este país acaba num "fui um idiota". Triste. 

Espero que Renata esteja bem. Ela definitivamente merecia mais, muito mais. Ainda na campanha quando a própria me disse que precisava de uns 40 mil votos e que era difícil pensei "40 mil? Não é possível. Renata passa disto fácil". Ledo engano.

 O bom desta eleição foi a reprovação da população aos populismos mais perigosos, principalmente aos que se dizem direita e definitivamente não o são. O problema não é ser direita ou esquerda. O problema é ser fanático seguidor de um salvador da pátria. Aí dançemo!

sábado, 14 de novembro de 2020

Santa cabra

 "Todas cidades não têm suas ovelhas de Deus. Pois então, a nossa tem a cabra de Deus". Não era uma cabra, mas um bode, coisa estranha para quem leva muita Fé em Deus e não no diabo. 

Desde muito cedo a menina puxava para igreja a cabra, cá para nós um bode, algumas vezes meio que empacada. Entravam, menina sentava-se na primeira fila e a cabra se acomodava ao lado da imagem de São Francisco. "Santa cabra, nunca emporcalhou a igreja". Menina e cabra cresceram juntas, a cada dia mais religiosa, a já adolescente. Nas procissões ficaram conhecidas pelo povo e não tardou pela região. "Santas, sempre vêm com São Francisco ao lombo da cabra". 
Uma tose mal curada fez com que a jovem trabalhasse muito para comprar um pequeno aparelho de som para seguir pelas ruas rumo a missa cantando suas ladainhas. Tocava baixinho, coisa de quem reza para si e os seus. Passaram pelas ruas rumo a missa, a procissão local, e as que duas vezes ao ano se fazia ao Santuário. 
Numa primavera chuvosa o bode, diga-se cabra, adoeceu e subiu aos céus envolta de um pranto silencioso da jovem mulher. Foi levada ao cemitério em carroça puxada por um burro velho que não parou de zurrar. Dobraram as pernas da cabra, diga-se bode, e prenderam no centro da carroça como ovelha de presépio toda ornada por flores. Terminados os preparativos que a própria jovem fez com esmero, deu um último olhar para sua companheira de fé, virou as costas, passou a mão acariciando todo corpo do burro até pegar o cabresto, dar um último suspiro, e acompanhada de pais, irmãos, familiares e amigos de fé iniciar a última caminhada. Passou pelo povo consternado pelo bode que toda sua vida fizeram de cabra e em nome da pureza santa nunca pode pular a cerca como pela "santa" jovem que sempre foi cordial e gentil com todos. 
Nas missas não conseguia levantar a cabeça e os olhos, nem se levantar ou ajoelhar-se como pede os ritos da fé; talvez sequer ouvisse o padre. Luto que nunca terminava e preocupava a todos. Que não viessem lhe falar; nada adiantava. Aos afagos em sua cabeça levantava os olhos fundos e nenhuma palavra. 
"Vão em paz e que Deus os acompanhe", e como sempre fazia esperou que todos saíssem, aquele dia um pouco mais. Levantou-se, voltou-se para a saída e deu com a bicicleta do padeiro parada aos pés de São Francisco. A muito custo, e uma bicicleta nova, o povo e o próprio delegado convenceram o padeiro de não dar queixa do roubo a bicicleta. Os pães ficaram no banco da igreja intocados e com o véu do luto. Conversaram com a jovem e envelhecida mulher que todos dias lustrava a bicicleta guardada no cocho da santa cabra, leia-se bode. 
"Mas você não sabe sequer pedalar! Fazer o que com esta bicicleta?" disse a mãe.  
"Aprendo!". 
O pai furioso com aquela loucura que já muito durava soltou gritos em tom ameaçador "Bicicleta não é coisa para mulher. Lugar de mulher é na cozinha. Deus não há de querer você nesta bicicleta. Vá pra seu quarto, amanhã dou fim nesta bicicleta".
Agarrada à bicicleta fez silêncio, acalmou a respiração, secou as lágrimas, se recompôs colocando delicadamente as duas mãos no guidão. Olhou com carinho nos olhos da mãe e da irmã mais jovem ao lado e só então respondeu ao pai.
"Meu bode era santo. Nunca cagou na igreja ou aos pés de São Francisco. Você sempre chamou meu bode de cabra, pois então. Peço desculpas ao padeiro, já deveria, mas meu santo bode me enviou esta bicicleta. Ele entendeu minha solidão, você não".    
Saiu de casa, encontrou outra morada. Voltou aos ritos da missa. E teve as bençãos do padre quando foi vista pedalando com roupas do candomblé e pequeno bode empalhado de chifres vistosos na garupa. Sua mãe nunca mais fez a buchada que o pai tanto gosta; e nunca se tocou no assunto.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

A perda de Marina Harkot e os comentários sobre o acidente

Recebi a triste notícia da morte de Marina no início da noite de domingo e fui me informar.  UOL: Ciclista de 28 anos morre atropelada em SP; motorista fugiuTerminado a notícia fui para os comentários e fiquei mais triste que estava. O que está acontecendo? Uma coisa é opinião, outra é vomitar achismos e preconceitos. Está difícil ter esperança neste país, muito difícil.
Tive a pachorra de responder a um dos comentários que me causaram profundo assombro e voltei para casa atordoado pedalando numa noite agradabilíssima, cheia de estrelas. Certamente Marina estava por lá.
Muitas horas depois já em casa escrevi um comentário (a seguir) na UOL e tive um ataque de choro que não parou de doer fundo até muito tarde. Foi difícil dormir

Marina querida, fique bem. Carinho.

Comentário
Conversei com Marina uma única vez. De conversa inteligente, interessada e interessante lhe ofereci acesso a minha pequena biblioteca, em particular aos livros sobre a história das mulheres ciclistas e sobre bruxas. Um processo de inquisição no país Basco deu início ao fim a estúpida caça secular às bruxas porque o inquisitor, culto, curioso e inteligente, buscou a verdade dos fatos. Superstições, achismos, crendices perseguiram e seguem perseguindo mulheres e outras minorias, inclusive ciclistas. A saber, quanto o maior número de usuários de bicicleta melhor o IDH e mais rico é o país; quanto menor mais pobre - dados ONU. Muito triste com a perda de Marina e deprimido com os comentários que li. A principal razão para termos um país tão injusto e atrasado está no achismo. As mortes no trânsito são prova cabal disto. Marina optou por ler, estudar, pesquisar, pensar, buscar a verdade, ou seja dar um futuro ao Brasil. Obrigado Marina. Fará muita falta

Comentário do leitor Ronaldo lido logo após o recebimento da notícia:
A grande SP não é local para se andar de bicicleta . Uma somatória de problemas nos leva a essa situação: Geografia da cidade, falta de sinalização, iluminação precária , falta de educação no trãnsito (tanto dos motoristas quanto dos bikers), etc . Não adianta insistir. Quer andar de bike, ser cicloativista ou o que for, saia fora da grande SP. Claro que não se pode tirar a culpa do motorista que fugiu sem prestar socorro, foi errado e deve sofrer as penas pelo erro, mas, volto dizer, a Grande SP não é lugar para Bikes !

Minha resposta ao comentário:
Ronaldo, boa tarde. Sinto pela morte de Marina, quem tive o prazer de conhecer. Só com laudo pericial saberemos o que aconteceu e só assim poderemos evitar outras mortes. A fuga do motorista é inaceitável e nossas leis tem que ser realistas e endurecer. Populismo mata. Obscurantismo mata. A área onde Marina pedalava tem padrões de sinalização muito próximos ou iguais aos de várias capitais europeias. Quem diz que São Paulo não é local para bicicleta desconhece a realidade. Bicicleta, goste ou não sempre foi uma realidade paulistana nas periferias e a única novidade é a classe média pedalando. Nosso trânsito, digo Brasil, é uma carnificina por causa de achismos, da negação da realidade. O princípio básico de qualquer segurança está na ciência, no conhecimento, e principalmente no que for comprovado como realidade dos fatos. Marina lutava justamente para ter uma cidade mais humana, real; lia e não brincava de achismos.

Outros comentários publicados na UOL:
  • Desculpe, mas ela foi extremamente ingênua ao acreditar que andar de bike à noite em SP é minimamente viável. Não é, sem contar o fato de ser mulher e estar sozinha. Nesse caso isso não foi determinante, mas é um fator de risco altíssimo que não deve ser desprezado. Lamento muitíssimo por ela, sua juventude, sua vida ceifada assim tão brusca e violentamente. No entanto, acredito que isso deve servir de alerta para todos os ciclistas.
  • Com tanta pesquisa, não conseguiu descobrir que andar de bicicleta em SP de madrugada é suicidio.
  • Canhotas ciclistas que acham que a bicicleta deve ser acima de motos, ônibus etc. Não respeitam as leis de trânsito e ainda projetam ciclovias sem segurança, onde a bicicleta disputa na rua espaço com carros , caminhões e ônibus. Tá errado e deve se chamar ciclovia da morte
  • etc....
Deprimente o que vivemos. 

sábado, 7 de novembro de 2020

Vitória da sensatez

Já é noite aqui e estou vendo notícias sobre a vitória de Biden e Kamala Harris. Sei lá porque depois do almoço liguei a TV no exato momento que estavam noticiando a definição da eleição. Desandei a chorar de alegria e esperança. Me vesti e fui para rua gritar, passando como um insensato incompreensível louco para a maioria dos que me ouviam. Estranho, não esperava numa rua típica da esquerda e de gente esclarecida que "Biden ganhou, acabou, eleição definida" não provocasse gritos de apoio, alegria, e coro de protesto ao que vivemos. Um casal jovem sinalizou sua felicidade e uma senhora parada no cruzamento repicou com muito entusiasmo "Biden!" sinalizando positivo, e só. O mais, olhares, quando tanto.
Seguindo em frente e com uma subida para pedalar fui perdendo os fôlegos, do entusiasmo e dos pulmões. Deixa estar, desinteresse, foda-se, ou incapacidade para compreender o que a queda de um Trump significa me indaguei já suando a subida. "Eu queria estar lá", ouvi mais tarde. Confesso que eu também. Bem vindo Biden e Kamala, bem vinda a democracia, os direitos humanos e o respeito ao meio ambiente. Bem vindo o alento da sensatez.

Em 1986 ganhei de um dos funcionários do Banco Mundial que trabalhava no sertão Pernambucano um livro que fez muita diferença: To have or to be? do Erich Fromm, livro este que estou relendo agora. Foi editado e lançado em 1976 e é assustador sua leitura. É atual 44 anos depois ou estamos 44 anos defasados. Defasados com certeza.

Um comentarista político disse que esta eleição americana definiria muito do populismo no mundo. Populismo, de qualquer matiz, é o pior câncer que um planeta já em em UTI pode ter. Aliás, populismo é responsável montanhas de merdas de nossa história. A queda de Trump é muito mais que um voto de esperança. É a esperança que sensatez um dia vença.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Twzy e Amie, dirigir aos 14, e o futuro das cidades

Renault Twizy

Citroën Ami

São dois mini mini carros, leia-se microcarros, elétricos que não devem ser vistos como automóveis, mas como mobilidade urbana. Ou serão automóveis? O conceito de microcarros definitivamente não é novo, remonta aos primórdios do automóvel, mas estes dois microcarros em particular apontam não só para a salvação de um dos maiores e mais importantes setores industriais e econômicos de nossa era, como também dão um cheque (mate?) no sonho da construção de "cidades sem carro" tão gritada em utopias. Várias razões, mas uma em particular muito simples de entender: na França, país de origem dos dois microcarros, maiores de 14 anos com uma habilitação específica podem conduzir estes carrinhos elétricos. 14 anos? Sim, 14! Cheque mate! 

As micro mobilidades elétricas são apontadas como boa parte da solução para todos males de mobilidade urbana. Não caio nesta. Quem pedalou numa ciclovia cheia de micro mobilidades elétricas, bicicletas, patinetes, skates, pseudoscooters..., sabe o que falo. Vale para países e cidades onde a população respeita para valer as regras de trânsito. Não me sai da cabeça a raiva constante que passei tentando pedalar civilizadamente no centro histórico de Amsterdam. 

Diz-se que estes elétricos são menos poluição, maior rapidez e facilidade nos deslocamentos, menos uso de espaço público... É assim com toda novidade: uma maravilha... até que começam a surgir os porens. É esperar para ver. 

Os dois carrinhos, microcarros ou automóveis, como queira, confesso sem nenhuma vergonha que adoraria tê-los, não sei bem para que, mas tê-los-ia. Quem já dirigiu um carro elétrico ou híbrido sabe a delícia que é. Silêncio total com rapidez e suavidade, reconfortante para o sentimento de culpa de dirigir pelas ruas. Não precisa ir muito longe; estou cansado de ouvir "Você tem que experimentar uma bicicleta elétrica!" dito com um sorriso sincero e estimulante. Bicicleta elétrica: a ordem do dia. Seja elétrico ou você estará mais por fora que umbigo de vedete! Tem que seguir a manada. Desculpem, mas não quero. 

O uso de microcarros é livre na Europa para pessoas com problemas de mobilidade, idosos, cadeirantes e outros. São inúmeros fabricantes, mas todos em pequena escala, até pouco com modelos a combustão, de microcarros a microfurgonetas de diversos tamanhos. A maior furgoneta da Ligier tem um pouco mais de 3 metros, uma gracinha muito prática e eficiente, facilmente vista em capitais europeias. Meu pai quer trocar a Mercedes 4 portas por um destes microcarros ou até um carrinho de golf, mas a legislação brasileira não permite. 

O que Twzy e Ami têm de diferente é que por trás estão gigantes do setor, ou seja, produção em alta escala, custo final mais baixo, acessível. Mais, o Citroen Ami é um projeto modular, de uma simplicidade de construção maravilhosa, inteligentíssima, um caminho que ou a humanidade segue ou segue, ponto. Os pequenos fabricantes trabalharam e seguirão em nichos específicos de mercado. Para os gigantes interessa mercado, o povo, a massa, a cidade grande, capitais, uma escala completamente diferente com um impacto social muito maior, o quanto maior veremos, mas sem dúvida bemmmm maior. 

A verdade é que a mobilidade ativa vai entrar na era da briga de cachorro grande. Ou aprende a brigar ou vai ser do jeito deles. A brincadeira começou pelo "life is to good to drive a French car", soluções inteligentíssimas, mas de origem que traz consigo uma história de nariz torcido. Como será a brincadeira quando entrar urso grande na brincadeira? GM, BMW, VW, Toyota, Honda, Fiat... os chineses, que de urso não são nada panda e estão jogando pesado... 

E a cidade, como ficará? É uma total incógnita. Não depende mais do que pensávamos até pouco, mas desta pandemia e quem sabe de pandemias, se é que virão outras, uma possibilidade aventada por vários cientistas. Em qualquer cenário os microcarros parecem ser a única certeza: oferecem mobilidade com isolamento social; e o automóvel ressurge das cinzas. 

Com a popularização dos microcarros haverá ganhos para a cidade, dentre eles a diminuição do uso do espaço urbano, público e privado. Como são projetados para distâncias mais curtas é certo que a médio prazo modificarão os hábitos da população. E aí vem a pergunta: será mais um carro na garagem? Dependendo da política pública aumentará o abismo social e com ele alguns problemas das cidades. 

Mobilidade ativa é uma coisa, mobilidade elétrica é outra completamente diferente; e microcarro elétrico é automóvel, ponto.